Sunday, 24 May 2015

Post scriptum

Na semana de 11 de Maio, a minha caixa de email encheu-se de convites para a celebração da Noite e do Dia dos Museus. No Facebook, a intensidade não foi menor, com os museus e as suas tutelas a lembrar que todos os caminhos iam levar a um museu. Um ambiente de grande festa, uma oferta enorme em todo o país, que foi também traduzida em números: de acordo com os meios de comunicação, houve 140 actividades por ocasião da Noite Europeia dos Museus (16 de Maio) e 430 actividades no Dia Internacional dos Museus (18 de Maio), em 70 museus diferentes. A verdade é que poucas das actividades propostas responderam ao desafio do ICOM para reflectir sobre "Museus para uma sociedade sustentável" (e fiquei a pensar qual será, realmente, a percepção que os museus têm deste desafio anual e se este tem qualquer impacto nas suas práticas - no Dia dos Museus e no resto do ano). Dito isto, a riqueza e a intensidade da programação apresentada, bem como o ambiente de festa, poderiam fazer pensar que o sector dos museus em Portugal mostra sinais claros de prosperidade. Assim, a notícia a 18 de Maio que alguns funcionários de museus estavam em greve, contestando a redução do pagamento de horas extraordinárias, bem como o facto de terem sido obrigados a trabalhar numa segunda-feira (o dia destinado ao descanso semanal), foi uma espécie de nota marginal (ver reportagem da TV)

Post Scriptum: 

No início de 2015, um dos primeiros tweets de David Fleming foi: "Espero que os museus encontrem a sua voz em 2015 e alertem o público para os impactos da austeridade no que somos capazes de fazer comparado com antes." Foi um alerta que ficou comigo, ainda por mais, porque David é o Director dos National Museums Liverpool e é preciso admitir que não estamos muito acostumados a directores de museus nacionais, neste e noutros países, que sejam tão francos publicamente e que mostrem claramente que a sua lealdade encontra-se em primeiro lugar com o seu museu e as responsabilidades que este tem perante os cidadãos e não com o governo de um determinado momento.

Mais recentemente, Rebecca Atkinson-Lord, uma encenadora e produtora britânica, sugeriu no Guardian que as organizações culturais precisam de um código de boas práticas durante a austeridade, que devem começar a falar publicamente dos cortes e a deixar que os danos sejam visíveis.

"Quase todas as organizações reduzem a sua actividade, simplificam, reavaliam modelos de negócio e procuram ver se algures terão sobrado alguns trocos. Agora, até mesmo as organizações mais robustamente financiadas recebem o apoio de horas de trabalho não remunerado que os seus funcionários investem para poderem servir e apoiar a arte que amam. Os políticos gostam de denunciar empregadores que exploram trabalhadores não remunerados, mas é tempo de eles perceberem que a maior exploração da boa vontade do nosso sector é o próprio governo. O sector britânico das artes e da cultura, um líder mundial e uma significativa fonte de receita a partir dos gastos em lazer e no turismo, é construído sobre uma fundação de exploração de trabalho não remunerado – com a qual todos nós voluntariamente compactuamos, não querendo sacrificar a ecologia das artes que amamos."

Esta é uma declaração poderosa, que não diz respeito apenas ao sector cultural britânico. Fez-me pensar em duas coisas:

Durante a conferência O Lugar da Cultura, organizada em Abril passado pelo Secretário de Estado da Cultura, vários colegas da área das artes performativas - uma área em grande parte caracterizada pelo trabalho intermitente - confessaram que, dadas as condições actuais de trabalho, se sentem totalmente exaustos e perguntam-se constantemente a si próprios se vale a pena continuar ou se devem simplesmente desistir, parar. Como e porquê alguém deveria continuar, quando, com muita frequência, é-lhe sugerido que ofereça o seu trabalho de graça ou que receba pagamento apenas através da receita de bilheteira; quando, para poder apresentar um espectáculo, deve fazer absolutamente tudo: produção, promoção, trabalho de maquinista, limpeza, venda de bilhetes, bem como ensaiar e interpretar…

Não foram partilhadas histórias semelhantes pelos profissionais dos museus... E, no entanto, todos nós sabemos que, se a maioria dos museus continua neste momento a funcionar, é porque, quanto maiores os cortes, mais as equipas dos museus investem: investem o seu tempo, a sua expertise, fazem horas extraordinárias para as quais não são pagas e até mesmo compram material necessário para o museu com o seu próprio dinheiro ou fazem bolos e preparam café em casa, quando o museu não pode gastar dinheiro em coffee breaks na organização de conferências ou seminários…

Assim, uma pessoa pergunta-se: o que é preciso para dizer "Basta!"? O que é preciso para reconhecer e deixar que a sociedade saiba que este sector é sustentado graças ao sacrifício, investimento pessoal e exploração de quem nele trabalha? Terá sentido a sociedade portuguesa os efeitos brutais dos cortes no sector cultural? Irá alguma vez o governo (este ou o próximo) assumir a responsabilidade de dar a este sector as condições para funcionar adequadamente, se as coisas ainda estão a acontecer, se tudo continua como se nada tivesse mudado?

E uma última nota: é uma ilusão pensar que as coisas realmente continuam... Independentemente do esforço que se faz, muitas das actividades e eventos propostos acabam por ser uma repetição do que aconteceu várias vezes antes, faltando-lhes originalidade, entusiasmo ou relevância. Planeamento e tarefas que precisam do envolvimento de peritos são efectuados por pessoas que fazem um pouco de tudo e o melhor que podem. Infelizmente, isso não é bom o suficiente. Não é bom o suficiente para os profissionais da área e não é bom o suficiente para a sociedade que este sector procura servir. Todos nós merecemos melhor. Porém, para obtermos o que merecemos, é urgente deixarmos de colaborar para a nossa própria exploração e para a degradação dos serviços oferecidos por este sector à sociedade. Nós não podemos ser co-responsáveis ​​pelo estado actual das coisas, nem pela sua perpetuação e agravamento.


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2 comments:

  1. Maria

    Ao contrário do que dava a entender no FB, nada no seu PS se refere ao "sempre em festa" que comentei no post que colocou no FB.

    Fiquei dececionado.

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  2. Olá, Miguel.

    Não sei porque é que a leitura do meu texto o leva a concluir que sou defensora do "sempre em festa". Pelo contrário, o que defendo é que estamos a contribuir (com sacrifício próprio)para um ambiente de festa, que cria a ilusão de que está tudo bem, em vez de tornarmos o mais pública possível a realidade que se vive no sector cultural e o impacto dos cortes e do desinvestimento.

    Abraço,
    Maria

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