Monday, 21 February 2011

Museus: as novas igrejas?

Recentemente, num dos seus programas A Point of View na BBC Radio 4, Alain de Botton falou de museus. Mais concretamente, questionava porque é que os museus são tão pouco inspiradores (o texto desse programa pode ser lido aqui).

De Botton compara os museus às igrejas e identifica algumas semelhanças: ambos gozam de um estatuto sem paralelo; são espaços para onde levaríamos um grupo de estrangeiros a quem gostaríamos de mostrar o que nos encanta e o que veneramos; preambulamos pelas salas dos museus com a mesma calma reverência que manifestamos nas igrejas.

E aqui acabam-se as semelhanças para De Botton. Considera que as religiões dão às pessoas a orientação de que precisam, não apenas as ferramentas para desenvolverem um pensamento crítico; e usam a arte religiosa como meio para promoverem a fé, para lembrarem aos fiéis que devem ter uma mente saudável e de serem pessoas boas e piedosas. “O Cristianismo”, diz De Botton, “nunca nos deixa com dúvidas quanto à utilidade da arte. (…) Olhem para o quadro de Nossa Senhora se querem lembrar-se de como é a ternura. Olhem para aquele quadro da cruz se querem uma lição rápida sobre coragem. Olhem para aquela Última Cena e treinem para não serem cobardes e mentirosos”.

Ao contrário das igrejas, argumenta Alain de Botton, os museus são notoriamente incapazes de fazer a ligação entre os objectos que guardam e as necessidades da nossa alma. Apresentam-nos de forma académica, que não se consegue relacionar com o verdadeiro potencial que a arte tem de nos fazer mudar para melhor. Em vez de legendas neutras, deveriam colocar por baixo de cada quadro um conjunto de orientações do género “olhem para este quadro e lembrem-se de ter paciência” ou “usem esta escultura para meditarem sobre o que poderiam fazer para tornar o mundo mais justo”. De Botton conclui: “Os conservadores deveriam associar as obras de arte à tarefa directa de nos ajudarem a viver: a atingirmos o auto-conhecimento, a lembrarmo-nos do perdão e do amor e a permanecermos sensíveis aos sofrimentos da nossa espécie e do seu planeta que está em perigo. Só então os museus poderão dizer que cumpriram a nobre, mas ainda elusiva, ambição de se tornarem em novas igrejas”.

Confesso, há muito tempo que não lia algo tão pouco inspirador sobre o lugar que os museus e a arte possam ter na nossa vida. Algo tão paternalista, tão limitativo. Algo que revela até uma certa ignorância relativamente à missão que os próprios museus têm assumido perante a sociedade e que muitos (não, não todos…) têm conseguido traduzir em excelentes práticas.

A seguir ao 11 de Setembro, o Metropolitan Museum of Art em Nova Iorque registou um aumento no número de visitantes. O ataque terrorista tinha tido o seu impacto no fluxo de turistas, no entanto, muitos novaiorquinos procuraram um refúgio naquele museu. Procuraram a beleza, a paz; procuraram a sua ‘humanidade’. Não a encontraram porque as legendas lhes deram instruções quanto ao caminho. Encontraram-na no seu contacto directo com a arte num lugar seguro.

No entanto, é verdade que nem toda a arte fala por si com todos nós. A minha frustração é grande em muitas exposições de arte contemporânea, de onde saio tal como entrei, porque eu não sei apreciá-la, mas também quem sabe não se preocupa em me ajudar a descobri-la. Mas lembro-me, também, de quanto a minha experiência foi ‘aumentada’ em algumas exposições, onde a priori saberia fazer o ‘percurso’ sozinha, mas onde o museu soube apresentar os contextos à volta da criação das obras e dos respectivos artistas, um trabalho que vai além da preparação de legendas que indicam o título da obra, a data e os materiais usados.


Nunca me esquecerei da experiência que foi a visita à exposição Gwen John and Augustus John na Tate Britain em 2004. Nada sabia sobre os dois irmãos pintores até lá. E provavelmente teria gostado da sua obra de qualquer forma. No entanto, o que tornou a visita inesquecível foi toda história que o museu me soube contar sobre eles: sobre a sua infância, os seus amores, a sua família e amigos, a sua relação com outros artistas e com o seu tempo. Foram fotografias, livros, cartas pessoais que contribuíram para que as obras ganhassem uma outra dimensão na minha mente e no meu coração, sem perderem absolutamente nada do seu valor artístico.


E também nunca me esquecerei da forma como o Museo Thyssen-Bornemisza soube revelar-me (através da simples apresentação de obras lado a lado e com recurso a textos curtos e de linguagem acessível a todos os que não têm uma licenciatura em história de arte ou outras ciências afins) a forma como Amedeo Modigliani desenvolveu o seu estilo próprio e as influências que recebeu dos seus contemporâneos. E assim, aquilo que no início fazia lembrar um Cézanne, um Picasso, um Brancusi, uma escultura africana, transformou-se aos poucos, diante os meus olhos, em Modigliani e só Modigliani. Foi a exposição Modilgliani e o seu tempo em 2008.

Numa coisa Alain de Botton tem razão: provavelmente a maioria dos museus não sabe contar histórias. Não só os museus de arte (aos quais De Botton limita a sua análise, talvez porque para ele, como para muitos, subentende-se que ‘museus’ significa ‘museus de arte’), mas também os de história, de história natural, de história social, de ciência e tecnologia. Mas já são muitos, muitos mesmo, aqueles que percebem a importância da interpretação para o grande público. Aqueles que reconhecem que nem toda a gente sabe ou deve saber tudo. No entanto, não procuram dizer-me o que devo ou não sentir, o que devo ou não pensar. Isto é entre mim, visitante, e a obra / o objecto. Não é algo que compete a nenhum conservador ou educador de museu. Esta relação não é uma relação forçada, direccionada. E é legítimo, até, que não venha a existir relação nenhuma. O visitante não será menos inteligente por causa disso, menos boa pessoa, e a peça não terá menos valor.

Não sei quem disse a Alain de Botton que os museus ambicionam ser novas igrejas. E, muito sinceramente, tenho dúvidas também que as religiões, ou pelo menos os seus sacerdotes mais iluminados e inspirados, procurem assumir o papel que De Botton descreveu no seu programa na rádio. Os mediadores mais inteligentes, aqueles que melhor sabem fazer o seu trabalho, não são aqueles que nos dão as respostas. São aqueles que sabem ajudar-nos a procurá-las.

NotasCharlotte Higgins comenta sobre as ideias de Alain de Botton no jornal Guardian, no artigo Museums: bland, academic and failing to speak to our souls?. Apesar de discordar com alguns pontos (aqueles sobre o principal papel dos museus e a relevância dos métodos usados pela museologia na interpretação dos conteúdos), concordo com as linhas gerais da sua argumentação.

Ainda a propósito dos museus - igrejas, sugiro a leitura de dois textos sobre a decisão do Musée d´Orsay de proibir as fotografias: Musée d'Orsay: la carte postale contre le téléphone portable e La photo au musée, ou l’appropriation. Aproveito para agradecer a MP ter-me enviado estas referências.

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