Monday 20 October 2014

A não perder? E... porquê?

OAE, temporada 2014-2015 (imagens retiradas da página de Facebook da OAE)

Tornou-se muito comum, quando se promove um evento cultural, de mencionar o quê - quando – onde e de seguida acrescentar a frase mágica "A não perder!". Às vezes, acrescenta-se mais duas linhas, basicamente para nos informar que o artista x é o melhor no seu campo ou mundialmente conhecido. A julgar pelas informações que nos são enviadas por uma série de instituições culturais, não há nada que possamos perder e há uma série de artistas que são os melhores no seu campo e mundialmente conhecidos. A primeira afirmação não é verdadeira e a segunda não é precisa.

Considerando a crescente oferta de eventos e actividades culturais, as pessoas têm muito por onde escolher. Para algumas pessoas, dada a sua experiência e conhecimentos, a escolha é mais fácil, pois não precisam que outros lhes digam o que devem ver, o que não podem perder. Para outros, menos informados sobre uma série de artistas e o seu trabalho, há alguma necessidade de orientação. Algumas informações adicionais que possam ajudá-los a compreender o que há de importante e relevante para eles, o que é que eles, realmente, não gostariam de perder.

Infelizmente, a declaração "A não perder" - a menos que se trate de um amigo, alguém em cuja opinião confiamos - não serve este propósito, não chega. Afinal, todos dizem o mesmo. Da mesma forma, ao mencionar que o/a artista é o/a melhor não é convincente o suficiente para quem não o/a conhece e não provoca necessariamente um desejo de conhecer melhor o seu trabalho. A verdade é que há uma série de artistas que são muito bons no que fazem. Existe realmente um "melhor"?

Assim, o que muitas pessoas pensam é "Porquê?". Porque é que não posso perder o concerto, o jogo, a exposição? O que há de tão importante, tão especial, tão diferente, tão inovador, tão tocante, tão atraente, tão bonito, tão provocante, tão relevante que vai valer a pena investir o meu tempo e dinheiro para vê-lo em vez de ver ou fazer outra coisa?

OAE, temporada 2014-2015 (imagens retiradas da página de Facebook da OAE)

Isto representa um grande desafio para as pessoas que trabalham na comunicação. Há uma necessidade de ir além do habitual, além da informação óbvia e fácil sobre o quê - quando - onde, e de procurar aquele género de informação - bem como a sua representação visual - que pode esclarecer, surpreender, intrigar e apelar às pessoas com quem as instituições culturais desejam comunicar. Há também uma necessidade de escolher os canais adequados para tornar esta informação disponível e facilmente partilhável.

É com grande prazer que tenho vindo a acompanhar o lançamento da campanha da temporada 2014-2015 da Orchestra of the Age of theEnlightenment (OAE). Algumas informações sobre as suas origens antes de falarmos da campanha:

A OAE foi criada na década de 1980 com o objectivo de começar do zero, de repensar toda a instituição chamada "orquestra": as suas regras, os seus códigos, as suas restrições (vejam a sua curta biografia). Na sua primeira declaração de missão afirmavam que a OAE é para "evitar os perigos implícitos no tocar como uma questão de rotina; procurando opções criativas exclusivamente comerciais; ensaiando pouco; dando uma ênfase excessiva em certas opções, imposta por um único director musical; tornando os objectivos de gravar mais importante do que os objectivos criativos ". [Wallace, Helen (2006). Spirit of the Orchestra]. Hoje, lê-se no website, "Ainda promove a mudança e ainda se destaca pela excelência, diversidade e experimentação. E, mais de duas décadas depois, ainda não há uma outra orquestra no mundo parecida com esta."

OAE, temporada 2014-2015 (imagens retiradas da página de Facebook da OAE)

Esta filosofia é também aplicada na relação que a OAE procura criar com as pessoas, e especialmente com os mais jovens. Numa altura em que várias orquestras lutam para renovar o seu público e permanecer vivas e relevantes - sem saber bem como fazê-lo -, a OAE há muito que investe neste género de relação. Entre as suas várias iniciativas, gostaria de destacar "The Night Shift” (O Turno da Noite), uma série de concertos nocturnos, informais e descontraídos, que quebram uma série de tradições que tendemos a associar aos concertos de música clássica. Mais de 80% das pessoas que frequentam esses concertos têm menos de 35 anos e cerca de 20% estão a frequentar um concerto de música clássica pela primeira vez. Oiçam o que elas têm a dizer:




Há um tom fluido, descontraído, acessível na forma como a OAE comunica com as pessoas. Torna-se óbvio que a sua missão e objectivos estão claros para eles, são sinceros, gostam de partilhar o que mais amam com todos aqueles que possam estar interessados ​​(incluindo aqueles que não sabem que poderiam estar interessados​​). A sua visão clara reflecte-se na sua linguagem (verbal e visual), bem como nas plataformas que usam para comunicar (por exemplo, um canal Vimeo muito rico em conteúdos e uma página de Facebook muito viva e envolvente).


OAE, temporada 2014-2015 (imagens retiradas da página de Facebook da OAE)

A campanha da nova temporada tem um claro e forte visual activista. Os músicos fazem parte dela, são os protagonistas. Os cartazes nas ruas apresentam um visual contemporâneo, lindamente integrado no seu ambiente urbano. As mensagens curtas que encontramos nos cartazes são complementadas com depoimentos dos músicos e outros membros da equipa que falam sobre a sua peça favorita da temporada. O trompista da OAE, Martin Lawrence, diz: "Estou ansioso em relação a este concerto [a Sinfonia do Novo Mundo], principalmente por causa da energia maníaca e a espontaneidade do maestro Adam Fischer. Estou fascinado em saber qual será a sua abordagem a estas peças de cavalo-de-guerra - não vai ser normal ... Espero muito drama, pianissimos monstruosos e ficar na borda da minha cadeira.” Conhecem muitas orquestras de música clássica que comunicam assim?

A OAE quer ser e permanecer relevante. Não assumem que as pessoas sabem, estão lá para tornar tudo mais claro, mais compreensível, mais agradável. Eles são acessíveis, apaixonantes, humanos. Têm um bom sentido de humor e não têm medo de mostrá-lo. Não dizem às pessoas "Não podem perder-nos" ou "Somos os melhores". O seu muito sugestivo lema é "Nem todas as orquestras são o mesmo" ... E ooh ... eles deixam certamente claro para mim o quanto devia lamentar por estar a perdê-los!


Ainda neste blog:







Monday 6 October 2014

Preservar para quê?

Imperial War Museum

No meu segundo ano em Londres, em 1994, da janela da minha cozinha via a cúpula do Imperial War Museum (IWM). Era uma vista bonita de um museu bonito. Para a surpresa de muitas pessoas, este é o meu museu favorito em Londres.

No caminho para o primeiro Congresso de Museologia Militar, estava a pensar que nunca considerei o Imperial War Museum, que ia fazer uma apresentação nesse dia, um museu militar. Para mim, o IWM é um museu de pessoas (não deveriam todos sê-lo?). Um museu de militares e de civis, de homens e de mulheres, de adultos e de crianças, de seres humanos e de animais (estou a lembrar-me de algumas das exposições que lá vi). É muito mais do que datas, batalhas, tácticas, tipos de armas e tratados. É um museu que conta as histórias de pessoas que foram afectadas pela guerra.


Postal promocional das novas galerias da Grande Guerra no Imperial War Museum

A apresentação do IWM estava incluída num painel que iria debater os Museus Militares e o Centenário da Grande Guerra. A primeira oradora foi Maria Fernanda Rollo, professora universitária e coordenadora do projecto Portugal 1914. Trata-se de um portal na Internet com conteúdos muito ricos, recolhidos com a colaboração de várias instituições e profissionais de vários meios, assim como com a colaboração do público em geral. O objectivo é a promoção de uma cidadania activa e empenhada na promoção da defesa, preservação e salvaguarda de um património colectivo, assim como sensibilizar a população em geral para a importância da memória e da sua preservação. “Este é um museu virtual, que conta histórias, onde aprendemos com as afectividades. É um museu vivo”, disse Maria Fernanda Rollo.


Postal promocional das novas galerias da Grande Guerra no Imperial War Museum

Sorri quando ouvi esta afirmação. Porque, implicitamente, Maria Fernanda Rollo estava a revelar a sua percepção dos museus: espaços mortos, espaços onde não se contam histórias, espaços onde a afectividade não tem lugar. Esta é uma percepção amplamente partilhada por várias pessoas na nossa sociedade a vários níveis (lembram-se porque é que a Paula Rego quis que o museu que alberga as suas obras em Cascais se chamasse “Casa das Histórias” e não “museu”?). Mas sorri também ao ouvir a minha amiga Gina Koutsika fazer a sua animada e estimulante apresentação sobre as iniciativas do IWM para a comemoração do centenário. A Gina mostrou-nos como um museu pode (e deve) ser vivo, cheio de histórias e de sentimentos, próximo das comunidades que pretende servir. Este não é um museu no mundo virtual, é real, existe.


Postal promocional das novas galerias da Grande Guerra no Imperial War Museum

Quando o debate começou, lembrei-me de uma outra visita, há quase 10 anos, ao In Flanders Fields Museum (Ypres, Bélgica). Mais um museu notável, na cidade que esteve no caminho do exército alemão e que ficou completamente destruída durante a guerra. Um museu cheio de histórias humanas, onde o visitante pode assumir a identidade de um dos habitantes da cidade e seguir a sua história pessoal durante a guerra. O que mais me marcou naquela visita, e que não voltei a encontrar em nenhum outro museu, foi a forma simples como se mostrou que um objecto pode ser muitas histórias. Através da exposição de um monte de lenços brancos, o museu falava-nos dos múltiplos usos daquele objecto: podia ser um sinal de rendição; ou uma forma de alguém se proteger dos gases letais tapando o seu nariz; ou algo para tapar os olhos de quem enfrentava o esquadrão da morte.


In Flanders Fields Museum

Lembrei-me ainda do Musée de la Grande Guerre du Pays de Meaux (França) e do seu maravilhoso projecto “Léon Vivien”. Os bons museus encontram formas imaginativas de usar as suas colecções, dando-lhes vida e criando ligações com as pessoas. Léon Vivien é um personagem fictício, um soldado, cuja história é contada numa página especial no Facebook através de vários objectos, seguida e comentada por milhares de pessoas. Os bons museus sabem sê-lo tanto no mundo real como no mundo virtual.



A questão da memória surgiu no debate quando o Tenente-General Mário de Oliveira Cardoso, outro dos oradores neste painel, citou o filósofo, ensaísta e escritor George Santayana: “Quem não se lembra do passado está condenado a repeti-lo”. Lembrar o passado, preservar o conhecimento histórico. Sim, é este o objectivo de várias instituições, incluindo o dos museus. Mas porquê? Com que propósito? Estará a ser alcançado? Estarão essas histórias a ser preservadas e lembradas simplesmente para se criar um repositório ou porque podem criar ligações ao presente, a vidas humanas actuais, não apenas as nossas mas as dos outros também? Poderão as histórias preservadas e lembradas ajudar-me a criar uma ligação ao Outro, fazer a sua história minha?

Na Europa, não faltam museus militares, de história, da primeira e segunda guerra, do holocausto. Todos têm como objectivo preservar o passado histórico e mostrar a importância da memória. “Nunca mais” é o lema que encontramos em muitos deles. Estarão estes museus conscientes que recentemente, no seguimento das atrocidades cometidas em Gaza, voltou a ser ouvido em algumas cidades europeias o grito “Morte aos Judeus”? Terão reagido? Terão aproveitado a oportunidade para dar bom uso às suas colecções e mostrar para que serve preservar o passado histórico e ter memória? Não é precisamente num momento como este que um museu deveria intervir publicamente e contribuir para esclarecer e formar a opinião pública? Caso, contrário, preservar para quê?


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