Monday 22 September 2014

Gay, preto, deficiente... podemos parar de falar nisso?

Gay Jazz Festival, Filadélfia (Foto: Bruno Bollaert, retirada do Examiner)

Em Maio passado, o magazine Philly anunciou que ia ser feita História com a organização do primeiro Gay Jazz Festival nos EUA. O anúncio intrigou-me. Pareceu-me que a História estava provavelmente a dar um passo atrás. Visitei o website do William Way LGBT (Lesbian-Gay-Bisexual-Transgender) Community Center que ia receber este evento – e estou a citar - “revolucionário” e procurei mais informações. Lia-se: “Filadélfia tem uma tradição como uma grande cidade da música. Somos também uma cidade que afirma as vidas das pessoas LGBT. A organização do primeiro LGBT jazz festival na América do Norte oferece a oportunidade de apresentarmos a rica e vibrante cultura da nossa cidade. (…) O festival marcará o fim do ciclo anual de música do William Way LGBT Community Center e irá destacar a intersecção entre a orientação sexual e a identidade de género dentro da comunidade do jazz.”

Acredito que um princípio importante no encontro com outras pessoas, outras culturas, é ouvir primeiro as próprias pessoas, tentar conhecê-las e entendê-las melhor; os seus pensamentos, as suas experiências de vida, as suas sensibilidades, as suas necessidades e convicções. Assim, estou certa que o Centro deve ter tido uma ideia muito clara sobre a necessidade de um gay jazz festival, mas mesmo assim, mesmo depois de consultar o seu site, não era claro para mim porque é que uma iniciativa como esta havia de ser considerada “visionária”. Porque é que músicos de jazz gay precisam de um gay jazz festival para apresentarem o seu trabalho? Isto ajudaria a sensibilização sobre os direitos das pessoas LGBT? Seria porque não lhes é normalmente dado espaço nos festivais de jazz organizados nos EUA e no estrangeiro? Porque é que o objectivo de um festival de música deveria ser destacar “a intersecção entre a orientação sexual e a identidade de género dentro da comunidade do jazz” (e como é que isto seria feito?) e não simplesmente os artistas e a sua música?

Faço muitas vezes estas mesmas perguntas em relação aos artistas com deficiência. As pessoas que com eles trabalham e as associações que os representam dizem que normalmente não vêem o seu trabalho apresentado nos habituais festivais ou como parte da programação dos espaços culturais em geral. O seu trabalho é considerado de inferior qualidade e muitas vezes, quando um espaço programa um espectáculo ou uma exposição, considera que já cumpriu as suas obrigações para com os artistas com deficiência e não é necessário mais ao longo da temporada. Está é, sem dúvida, uma realidade. Mas estaremos a avançar e estaremos de alguma forma a resolver o problema organizando festivais ou exposições “especiais” de artistas com deficiência?

Michelle Ryan, "Intimacy", Unlimited 2014 (imagem retirada do website do Unlimited)

Entre 2 e 7 de Setembro houve mais uma edição do festival Unlimited em Londres, um grande evento, com encomendas especialmente feitas para serem aí apresentadas. Um evento que “celebra a visão artística e a originalidade dos artistas com deficiência”. Num país como o Reino Unido, que, comparado com outros, já deu vários passos necessários no sentido do respeito dos direitos das pessoas com deficiência, qual é o papel de um festival como o Unlimited hoje em dia?

Entre 13 de Setembro e 15 de Outubro, o Musée de Grenoble organiza o Mês da Acessibilidade. Lê-se no website que o museu convida as pessoas com deficiência a descobrir as suas exposições e actividades ao longo do ano, disponibilizando a ajuda necessária. Sendo assim, qual o objectivo deste mês “especial”?

Considerando estas e outras iniciativas, pergunto-me quem é que assiste a estes festivais, exposições, actividades e o que é que acontece depois? Será que atraem apenas os já “convertidos” ou um público mais amplo? Serão os artistas gay ou negros ou com deficiência mais reconhecidos como artistas pelo sector e pelo público? Estaremos a seguir em direcção a uma representação inclusiva, onde serão vistos em primeiro ligar como artistas, ou os curadores e o público vão na mesma para assistir a algo “especial”, circunscrito num tempo e espaço específico, um tempo e um espaço “próprio”? Ajudam-nos estes festivais a aprender a preocupar-nos mais e mais com a arte e menos e menos com o “resto”?

Já escrevi no passado sobre a promoção de espectáculos que envolviam artistas com deficiência onde o público não foi “avisado” deste facto. As pessoas compraram os seus bilhetes, viram o espectáculo, podem ou não ter sentido algum desconforto e algumas acabaram agradavelmente surpreendidas com a qualidade do que tinham acabado de ver. Não terá sido este um passo em frente? Um passo no sentido de aprender que “o resto” não fazia, realmente, diferença? E o nosso objectivo – o objectivo dos artistas, programadores, curadores, profissionais da educação e da comunicação, associações de pessoas com deficiência – não devia ser trabalhar no sentido de tornar a diferença “mainstream”?



Quando li o livro “Museums and Migration” (ed. Laurence Gouriévidis) este verão, gostei de ver que este tinha sido o princípio seguido em algumas exposições de museus em países como o Canadá, a Austrália ou o Reino Unido, países com altos níveis de imigração e que conheceram por vezes estratégias governamentais que tinham como objectivo lidar com “a tensão entre o reconhecimento de uma sociedade culturalmente diversa e a necessidade de articular uma identidade nacional que projecta uma nação culturalmente coesa” (Mary Hutchison and Andrea Witcomb, p.228). Estes museus foram além do festival étnico, da Semana da China – Índia – Paquistão – Nigéria – Bolívia, etc. (que normalmente focam a música e a comida), e procuraram formas de tornar as histórias das comunidades migrantes parte da história nacional e de promover “sentimentos positivos em relação a pessoas que se sentem em casa entre culturas diferentes e a ideia que pessoas em várias partes do mundo vivem no seio de culturas que já são transnacionais, cosmopolitas e que se caracterizam por um hibridismo cultural” (Kylie Message, p. 60).

Penso que esta é a forma de ir para a frente; é deixar de chamar a atenção para a diferença e tornando-a parte da história. Já citei uma vez Morgan Freeman que considera o Mês da História Negra “ridículo”, recusando-se a ver a sua história reduzida a um mês, e que, quando lhe perguntaram “Então, como é que nos vamos ver livres do racismo?”, respondeu simplesmente: “Parem de falar nele!”. Precisamos ainda de meses-festivais-feiras-espectáculos de gays, negros, deficientes? Talvez, sim, precisemos ainda, não o nego. Mas temos também um plano para ir um passo mais além?


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Monday 8 September 2014

O que está para além?

Freeman Tilden
Quando li o livro “Civilizing the Museum”, de Elaine Heumann Gurian, pouco mais de um ano atrás, lembro-me de ter tido um pensamento e dois sentimentos. Pensei em como era possível ter chegado pela primeira vez aos seus textos e ao seu pensamento visionário tão tarde, após 20 antes de estudo e de trabalho nesta área. Tive um sentimento aconchegante de conforto, quando percebi que ideias e preocupações que estavam constantemente na minha cabeça não eram propriamente novas e que alguém como a Elaine as tinha formulado de uma maneira tão bonita e completa, influenciando tantas pessoas e instituições com as quais trabalhou.  Mas tive também um sentimento amargo de frustração, apercebendo-me do quão lenta é, realmente, a mudança, uma vez que questões levantadas pela Elaine há já algum tempo continuam a ser actuais hoje em dia.

Quando acabei o livro de Freeman Tilden “Interpreting our heritage” no mês passado, sorri. Tive o mesmo pensamento e os mesmos dois sentimentos. Como é que é possível ter lido o Tilden apenas agora?! Como é inspiradora a sua escrita, como tudo se torna claro quando se lêem os seus seis princípios para a interpretação e os seus vários exemplos. E como é decepcionante ver que, mais de meio século depois, aprendemos pouco e fizemos ainda menos.

Tilden escreveu o seu livro em 1957, quando tinha 74 anos e depois de uma longa carreira como jornalista, escritor e dramaturgo. Russell E. Dickenson salienta no prólogo da quarta edição que “Na sua associação com os parques, Tilden desenvolveu um interesse em como os parques nacionais formaram a identidade americana, assim como a identidade individual, incitando os cidadãos a procurarem encontrar sentido e inspiração nos preciosos recursos naturais e históricos.”

É isto que Tilden desejava para os cidadãos e eram precisamente estas as suas expectativas da interpretação e dos intérpretes. “Os intérpretes decidem que histórias vão contar, como contá-las e a quem, uma responsabilidade séria [p.2]; (…) O principal interesse do visitante está em qualquer coisa que toque a sua personalidade, as suas experiências e os seus ideais [p.36]; (…) Mas o objectivo da interpretação é estimular o leitor ou o ouvinte a desejar ampliar os seus horizontes de interesses e conhecimentos e a procurar entender as grandes verdades que estão por trás de qualquer afirmação de factos [p.59]; (…) Não com os nomes das coisas, mas expondo a alma das coisas – aquelas verdades que estão por trás do que estamos a mostrar ao visitante. Nem pregando; nem sequer dando sermões; não através da instrução, mas através da provocação [p.67]; (…)  colocar o visitante na posse de pelos menos uma ideia perturbadora, que possa crescer num fértil interesse [p.128]”.

Resumindo assim a visão de Tilden, aqui estão os seus seis princípios para a interpretação:

1. Qualquer interpretação que não relacione de alguma forma o que está a ser apresentado ou descrito com algo na personalidade ou experiência do visitante, será estéril.

2. A informação em si não é interpretação. A interpretação é uma revelação baseada em informação. Mas são coisas completamente diferentes. No entanto, toda a interpretação inclui informação.

3. A interpretação é uma arte, que combina muitas artes, quer os materiais apresentados sejam científicos, históricos ou arquitecturais. Qualquer arte pode ser ensinada, até certo ponto.

4. O principal objectivo da interpretação não é a instrução, mas a provocação.

5. A interpretação deve procurar apresentar um todo em vez de uma parte e deve dirigir-se ao indivíduo no seu todo e não apenas a alguma das suas facetas.

6. A interpretação dirigida a crianças (digamos até aos 12 anos) não deve ser uma diluição da apresentação aos adultos, mas deve seguir uma abordagem fundamentalmente diferente. Para estar no seu melhor, requer um programa separado.

Claro que, enquanto lia isto, estava a pensar nos museus; na riqueza que se encontra neles e que está inacessível para muitas pessoas. Em muitos casos, por opção: a opção daqueles que têm a grande responsabilidade de interpretar, revelar, provocar, chegar aos corações de muitas pessoas e não apenas aos cérebros de algumas, mas que, tendo o poder de decisão, a sua principal preocupação é comunicarem com e serem reconhecidos pelos seus pares. Esta é uma razão, para mim, a principal, a mais determinante. Uma outra razão é que, neste contexto, os profissionais que têm preparação técnica nesta área lutam para ser ouvidos e, não poucas vezes, são vencidos. Uma outra razão ainda, não menos importante, é que muitas outras pessoas que trabalham nesta área não têm preparação técnica para aquilo que lhes é solicitado fazer, e não lhes é proporcionada esta preparação. Lembro-me uma vez num curso de formação, durante uma discussão acesa em relação às responsabilidades dos profissionais de museus que trabalham para eles próprios e para os seus pares, uma senhora levantou a mão e disse: “Por favor, não digam que estamos apenas preocupados com nós próprios e com os nossos pares. Eu simplesmente não sei fazer as coisas de outra forma e é por isso que aqui estou”…

É a combinação destes factores que faz com que Heumann Gurian, Tilden, Cotton Dana (para mencionar outro dos meus favoritos) soam amargamente relevantes e contemporâneos, mais de 20 ou 50 ou 100 anos depois.

Acontece que acabei de ler o livro de Tilden e comecei a escrever estas palavras no meio de um parque nacional, o Parque Nacional de Tzoumerka na Grécia. A beleza da paisagem cortava a respiração. Pensava constantemente nas palavras de Tilden: “A interpretação leva o visitante para além do seu prazer estético, em direcção à compreensão das forças materiais que se juntaram para produzir a beleza que está à sua volta.” É isto que as pessoas que conheci fizeram por mim. Levaram-me - com simplicidade, entusiasmo e um conhecimento profundo das coisas – além, muito além do que era visível para mim. Não eram todos profissionais, mas eram pessoas que tinham amor por aquele sítio, que desejavam partilhá-lo. Assim, tornaram a minha experiência em algo ainda maior.


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Ponte de Plaka, Parque Nacional de Tzoumerka, Grécia