Monday 30 September 2013

Ópera e a Cidade

Percurso musical em 5 actos, homenagem à Maria Callas (Fonte: Lifo)
No início de 2011, a dívida da Ópera Nacional da Grécia (ONG) ultrapassava os 17 milhões de Euros e a organização corria um sério risco de ser encerrada. Quando há duas semanas o director artístico da ONG deu uma conferência de imprensa para apresentar a temporada 2013-2014, o quadro era bastante diferente:

- A dívida é neste momento 4.697.609 Euros (baixou 73%);

- O orçamento para a programação 2012-2013, inicialmente estimado em 3.890.000 Euros, teve que baixar para os 2.580.000; no entanto, a afluência subiu para 90.000 espectadores, e a receita da bilheteira somou 2.220.000 Euros (apenas 360.000 abaixo do valor investido nas produções);

- Todas as produções no teatro principal da ONG, o Olympia, assim como aquelas apresentadas na sala de concertos Megaron e no Teatro Herodes Atticus tiveram uma taxa de ocupação entre 80% e 100% - havendo sempre um número de bilhetes gratuitos para desempregados;

- A ONG chegou a mais 20.000 pessoas fora de portas, tanto em Atenas como na periferia, com o apoio da Fundação Stavros Niarchos, que lhe permitiu desenvolver uma série de actividades de outreach e fazer uma digressão em várias cidades gregas (a Fundação Niarchos está a construir um novo centro cultural, desenhado por Renzo Piano, que será a nova casa da ONG e da Biblioteca Nacional a partir de 2016).

Um milagre? Nem por isso. Decisões difíceis, um forte compromisso, um claro sentido de missão, muito trabalho e, consequentemente, apoio privado/individual. Não podemos ignorar o facto de tudo isto acontecer num momento em que a Grécia está a atravessar uma extrema crise económica e a sofrer severas medidas “correctivas”, que têm destruído a economia do país. O subsídio estatal para a ONG diminuiu 5 milhões de Euros nos últimos dois anos, o que tem causado sérios problemas nas operações da organização.

Gostaria muito de saber de que forma cortaram nos custos operacionais, o maior ‘peso’ na gestão de uma instituição como esta. Infelizmente, este tipo de dados não foi partilhado publicamente, por isso, só podemos imaginar o quanto deve ter sido difícil. Na falta destes dados, gostaria de me concentrar nas iniciativas tomadas – apesar das dificuldades ou, talvez, por causa delas – no sentido de pôr a ONG de volta no mapa e de criar uma ligação com a cidade e as pessoas.

Ter que cortar o orçamento das produções em casa não significou que a ONG tivesse cortado também no todo da sua actividade. Antes pelo contrário. Este momento de crise foi precisamente o momento em que a ONG decidiu ser extrovertida, original e inovadora. Através de uma série de iniciativas, conseguiu estar mais presente que nunca na vida dos Atenienses e, fisicamente ou virtualmente, na vida dos Gregos que vivem longe da capital.

Há dois anos, uma das suas primeiras iniciativas de outreach tinha sido o “autocarro lírico”, que percorria as ruas da capital grega apresentando destaques dos próximos espectáculos. Simples, informal, directo, conseguiu tocar os transeuntes.


Mais tarde, desenvolveu um projecto chamado “Ópera na Mala”. Esta é uma forma ‘flexível’ de apresentar ópera em espaços não-convencionais, apenas com o cenário que cabe numa mala e com um piano em vez de orquestra. A ONG foi a praças, mercados, átrios de museus e encontrou-se com pessoas que de outra forma talvez não tivesse tido contacto com esta arte. Alguns destes concertos reuniram perto de 4000 espectadores.


Concerto no Mercado Varvakios (Fonte: Lifo)
Os ensaios abertos em espaços públicos são uma outra forma de estar próximo das pessoas e partilhar com elas o que normalmente acontece de porta fechada. No verão passado, a ONG apresentou Madama Butterfly no Teatro Herodes Atticus no âmbito do Festival de Atenas. Alguns dias antes da estreia, houve um ensaio aberto próximo do teatro, na rua pedonal que circunda Acrópole e a antiga Ágora. Na passada quinta-feira, uma semana depois da apresentação da nova temporada, houve um ensaio aberto da orquestra no porto de Pireu – um programa de uma hora com destaques da temporada -, assim como um ensaio aberto da companhia de bailado da ONG no porto de Salónica – um ensaio da peça “Viagem à Eternidade”, homenagem ao realizador Theo Angelopoulos.



Por fim, mais de 5000 pessoas seguiram o percurso musical em cinco actos no dia 15 de Setembro, celebrando o 36º aniversário da morte de Maria Kallas. “Esta participação foi uma afirmação clara de todos nós”, disse uma pessoa à revista Lifo. “É necessário criar ligações entre a arte e a vida da cidade, o que se tornou absolutamente essencial nas actuais circunstâncias.”

Tudo isto faz recordar a carta aberta que Michael Boder, director musical do teatro Liceu de Barcelona, enviou à administração no ano passado, quando foi anunciado que, devido às dificuldades financeiras, o teatro ia encerrar por dois períodos de um mês. Tínhamos comentado na altura esta carta, considerando a resposta de Boder uma excelente lição de gestão (ler aqui). Aqui está um excerto: “Nesta situação difícil para Espanha e a sua população, podíamos dar concertos gratuitos para os desempregados. Afinal de contas, temos os recursos necessários! Podíamos organizar concertos e projectos para crianças, jovens e idosos. (…) Mas temos que tocar, ou iremos desaparecer! Devíamos ter que tocar mais, não menos. (...) Ao mesmo tempo, o Liceu podia também transmitir uma mensagem social: ‘Vejam, estamos a tocar para vós e estamos aqui, fazemos música e toda a gente está convidada para ouvir em vez de falar.’ (...) Que objectivo poderia fazer mais sentido numa altura de crise? Afinal de contas, a cultura traz conforto em tempos difíceis e dá também ideias.”


Ensaio aberto de Madama Butterfly (Fonte: página Facebook da ONG) 
Tocar mais, não menos. Mostrar às pessoas que estamos a tocar para elas, que estamos aqui. Esta tem sido a missão e mensagem da Ópera Nacional da Grécia nos últimos dois anos e meio. Julgando pela reacção das pessoas, podemos concluir que esta é mesmo a mensagem que queriam ouvir. Em retorno, mostram o seu afecto e dão o seu apoio.

Monday 23 September 2013

Blogger convidado: "Onde há vontade, vai haver um poço...", por Sunil Vishnu (Índia)

Sunil Vishnu é o homem que seguiu o seu sonho: fazer teatro. Juntamente com um amigo da faculdade fundou EVAM em 2003 na cidade de Chennai, Índia. Como organização independente, a EVAM enfrenta uma série de desafios para sobreviver, crescer e manter a qualidade do seu trabalho. O que é que isto significa exactamente para uma companhia de teatro na Índia, onde os apoios do Estado são muito baixos, o mecenato para a cultura quase inexistente e onde existe um desinteresse geral relativamente às artes? Sunil ficou surpreendido ao descobrir que havia um ‘poço’ de interesse, carinho e dinheiro mesmo ali para a EVAM e partilha aqui connosco a sua experiência e aprendizagens. mv


A equipa da EVAM.
Quando comecei a escrever este artigo e estava a pensar num título achei que este, inspirado num provérbio, seria perfeito, porque descreve, para mim, o estado dos fazedores de arte no mundo. O provérbio fala da vontade humana – a única coisa que faz um artista continuar, apesar dos desafios que enfrenta – e o ‘poço’ – os meios que lhe permitem criar arte e partilhá-la com o público, ou seja, financiamento e recursos. Ao longo dos anos, a vontade permanece a mesma, mas os poços secaram. A solução neste momento não é cavar mais fundo ou encontrar novos poços, mas ir ter com todas as pessoas na aldeia que têm água e pedir-lhes para a partilharem contigo, partilhando assim a propriedade do seu sonho. É isto que o mundo chama crowdfunding e é neste contexto que escrevo este artigo.

Como é que sobrevivem e crescem os artistas e as organizações culturais independentes? Vejamos a minha organização, a EVAM. A EVAM é uma próspera organização artística que procura criar um impacto positivo na vida das pessoas usando como meio o teatro, através de espectáculos, a gestão de eventos artísticos e a educação. No ano em que festejamos o nosso 10º aniversário e tendo evitado com sucesso a ameaça de fecharmos, olho para as várias fontes de financiamento que tivemos ao longo dos anos. Começámos por investir o nosso dinheiro (2 Lakhs – 3000 USD) em 2003. Seis meses depois tivemos o nosso primeiro patrocinador (o banco privado HSBC) e pensámos em adoptar o modelo da publicidade, onde as marcas procurariam a EVAM como meio para chegarem a potenciais clientes. A receita de bilheteira e os patrocínios sustentaram-nos até 2004. Nesse ano decidimos fazer espectáculos para outras organizações cobrando um determinado preço e lançámos, juntamente com outras entidades, o Hindu MetroPlus Theatre Fest, sendo que a gestão de eventos artísticos e festivais passou a ser a nossa nova fonte de receitas. Em 2009 iniciámos os projectos educativos, realizando workshops e adicionando uma nova fonte de financiamento. Tudo isto sem nos dirigirmos ao Estado – cujo apoio para as artes é, de qualquer maneira, fraco. Esta foi uma opção. Chamem-na ego, auto-estima ou imprudência, queríamos fazer o nosso trabalho à nossa maneira, sem comprometermos a criação artística.

Depois, apercebemo-nos que os nossos sonhos estavam a tornar-se maiores, mas que o poço estava a secar. Procurámos outros poços, mas outros artistas estavam a fazer o mesmo. Foi nessa altura que iniciei o meu fellowship no Kennedy Center em Washington. A primeira grande aprendizagem teve a ver com o mecenato cultural. A Índia não tinha nem a cultura nem o apetite para isso. Existe uma apatia geral no que diz respeito às artes, que são também entre as disciplinas menos preferidas no nosso sistema educativo. Apesar disto, sabia que tínhamos uma ‘família’ de públicos e de pessoas importantes na sociedade que poderiam querer contribuir financeiramente e participar na ‘viagem’ da nossa organização, não como investidores a tempo inteiro ou patrocinadores, mas mais como um ‘convidado especial’ num filme.

Foi aqui que as aprendizagens do fellowship (sonhar alto – concentrar em arte de excelência – partilhar o sonho com a tua família – tornar a família parte) vieram em primeiro plano: os membros da minha família não podiam patrocinar um dos meus espectáculos, mas podiam dar algum dinheiro como indivíduos para um projecto específico se acreditassem nele. Foi nessa altura, em 2012, que uma ONG chamada Nalandaway lançou um novo portal de crowdfunding, Orange Street, que oferecia aos artistas uma plataforma para apresentarem projectos relacionados com uma causa e procurarem financiamento. Inicialmente, fui céptico. Porque é que um membro do público, que gasta neste momento 1000 rupias (16 USD) por ano para ver os meus espectáculos,  me daria dinheiro para criar algo, se poderia contribuir directamente para a causa? No entanto, avançámos e criámos um vídeo, explicando o que estávamos a fazer e porque é que estávamos à procura de financiamento. O nosso projecto era a criação de uma peça, The long way home por Shekinah Jacob, que iríamos apresentar em todo o país e sensibilizar relativamente ao tráfico de crianças. 


Precisávamos de 5 lakhs (8000 USD) para realizar o projecto. Horas depois de o colocar na plataforma, alguém investiu 5000 rupias (80 USD) e ficámos boquiabertos. Apenas no primeiro dia recebemos 7500 rupias (120 USD) de pessoas que nem sequer conhecíamos! Ao mesmo tempo, iniciámos uma campanha interna: começámos a telefonar, enviar emails e sms a todos os nossos stakeholders, pessoas que conhecíamos, membros do público; pusemos um anúncio no Facebook, no Twitter e no nosso website. Lentamente mas continuamente as contribuições cresceram, isto era mesmo possível!



Mas chegou o tempo em que esgotámos todos os contactos que poderíamos fazer e o poço parecia estar a secar novamente. A minha equipa estava ocupada a preparar o espectáculo e fazer muitas outras coisas e não tinha mais tempo para a campanha. A nossa acção perdeu momentum e pensámos “OK, talvez seja tudo o que possamos fazer”.

Foi nesse momento que a banda Jersey Rhythmes nos telefonou de New Jersey e disse: “Olhem, queremos contribuir, vamos fazer um espectáculo de angariação de fundos para vós!”. Ficámos estupefactos! Uma banda de New Jersey que não nos conhecia estava, realmente, a acompanhar a nossa campanha na Índia e queria contribuir! De repente, a minha organização apercebeu-se que este movimento era maior do que nós os 9 no escritório. Ganhámos de novo fôlego e assegurámo-nos que a campanha para a angariação de fundos fosse introduzida no nosso dia-a-dia: tínhamos uma campainha que tocava sempre que fosse feito um novo donativo. Nos dois meses seguintes os Jersey Rhythmes angariaram mais de 75000 rupias (1200 USD). The long way home foi produzido e apresentado em toda a Índia, conseguindo sensibilizar relativamente à causa que procurou apoiar.



Tínhamos encontrado uma nova fonte de energia, entusiasmo e fundos. A nossa família (nomeadamente, os membros do público, organizações parceiras, indivíduos interessados em nós, patrocinadores, etc.) estava disposta a investir nos nossos projectos dentro das suas pequenas possibilidades, se nós mostrássemos abertura para partilharmos o nosso sonho com ela. Um ano depois, no verão de 2013 e, mais uma vez, através do crowdfunding, conseguimos enviar 150 crianças carenciadas a um campo de férias para as artes. O nosso objectivo para 2014 é recorrer ao crowdfunding para a produção de um filme e uma peça que será puramente “arte pela arte e não arte por uma causa”. Iremos confiar na teoria que diz que o crowdfunding é, talvez, o primeiro grande passo na direcção do mecenato cultural na Índia.
Entretanto, aqui estão algumas coisas que aprendi ao longo da viagem:

Para angariar fundos e criar projectos através de crowdfunding

a) Criar um projecto genuíno – colocá-lo num site genuíno, as pessoas conseguem identificar um projecto falso;

b) Criar um pedido forte – qual o projecto, qual o impacto que vai ter e como, porque é que o estamos a fazer e onde é que vai ser usado o dinheiro, e, assim, porque é que uma pessoa devia fazer um donativo para o projecto;

c) Ter sempre um tempo-limite para a realização da campanha – dependendo do montante, 3 meses a 2 anos; também, ser específico sobre o que se está a pedir (por exemplo, “Invista por favor 500 rupias no projecto até 15  de Janeiro de  2013”);

d) Não fazer disto a única fonte de receita para o projecto;

e) Usar a equidade da plataforma (o website) para criar notoriedade;

f) Apontar os nomes das pessoas que investem, dar-lhes feedback e agradecer. Fazê-las parte do projecto da forma como elas preferem (poderá ser tão simples como mantê-las a par via email ou tão ‘complicado’ como fazer visitas gratuitas aos bastidores);

g) Não se envergonhar em pedir dinheiro – estamos a pedir às pessoas para partilharem o nosso sonho, estão a fazer um investimento; na verdade, são quase co-produtores do projecto;

h) As pessoas precisam de sentir que fazem parte e que são importantes -  satisfazer ambas essas necessidades através da relação com elas;

i) Criar um plano de comunicação e envolver várias pessoas que possam apoiar o projecto; as celebridades são muito bem-vindas…;

j) Internamente, manter a equipa motivada, dar incentivos para continuar; recompensá-la, reconhecer o seu esforço – de outra forma, é um trabalho muito ingrato!

As pessoas contribuem quando

a) Gostam de nós como pessoas e querem participar na nossa viagem;

b) Gostam da nossa organização e da sua missão;

c) Acreditam no impacto que o projecto vai ter nas pessoas;

d) Não podem fazer o que nós estamos a fazer – assim, querem viver isto através de nós!

Como disse, onde há vontade, há um poço… Podemos ir e cavar poços, mas não podemos esquecer-nos dos rios e riachos e lagoas e mares que são as pessoas à nossa volta. Convidem a vossa família a fazer parte da vossa viagem, ficarão surpreendidos com o amor e confiança que vos vão inundar.


Sunil Vishnu K é co-fundador, CEO e director artístico de EVAM, uma premiada companhia de teatro empreendedora.  Fundada em 2003 por Sunil e Karthik Kumar, a EVAM é hoje em dia um próspero negócio artístico que conta com 10 anos de vida e que apresenta espectáculos, gere eventos artísticos e trabalha na educação artística. Sunil recebeu o prémio Performing Arts Entrepreneur do British Council em 2010 e concluiu o Summer Arts Management Fellowship do Devos Institute of Arts Management no Kennedy Center for the Performing Arts em 2013.

Monday 16 September 2013

A reconquista

Wolf Trap National Park for the Performing Arts, Washington DC (Photo: bigbirdz on Flickr)

Na antiguidade, o teatro grego fazia parte do que, hoje em dia, uma pessoa poderia chamar cultura popular ou cultura das massas. Os Gregos Antigos iam ao teatro aos milhares. Traziam comida com eles, porque iam lá passar o dia inteiro. Comiam durante o espectáculo e atiravam comida ou gritavam com os actores quando não estavam a gostar do que estava a ser apresentado. Também intervinham, faziam perguntas e exprimiam opiniões sobre o enredo. 


O público de Shakespeare, bastante heterogéneo na sua composição social, era tão barulhento como o público na Grécia Antiga. As pessoas mais pobres pagavam o equivalente a quase um dia de trabalho para ficarem de pé à frente do palco. E pagavam mesmo. Era importante para elas estarem lá, significava algo, tanto pelo que se estava a passar no palco, como fora dele…


Poucos séculos depois, no final do século XIX, existem registos de pessoas que gritavam ou se metiam em cima das cadeiras durante concertos de música clássica. E... aplaudiam entre os movimentos ou sempre que se entusiasmavam com a interpretação. 

Porque é que estou a  dizer tudo isto? Para que nos lembremos todos que as coisas mudam, os hábitos mudam, os gostos mudam. O que era aceitável antes, já não o é. E o que é hoje, não será amanhã. As coisas estão novamente a mudar. Hoje em dia, há, por exemplo, pessoas que gostam de falar durante os concertos de música clássica ou de partilhar ao vivo uma experiência teatral através do twitter ou de usar todo o género de gadgets enquanto visitam um museu. Isto faz outras pessoas sentirem-se nervosas e está a ser montada resistência.

Os apelos para o regresso a uma experiência de teatro /música / museu mais ‘pura’ estão a multiplicar-se. Pelo menos ‘pura’ da forma como algumas pessoas a vêem, pessoas que gostam de assistir em silêncio absoluto a um concerto de música clássica ou de visitar um museu e simplesmente contemplar uma obra de arte. Esta é, realmente, uma forma de fazer as coisas. Não é a única. E não é necessariamente mais significativa.

A questão foi novamente levantada recentemente por Judith Dobrzynski no New York Times, num artigo intitulado High culture goes hands-on. Lamentando a busca de uma ‘experiência’ que tem tomado proporções gigantescas, Dobrzynski sente claramente saudades dos “tempos passados, [quando] os museus não precisavam de ser activados”; escreve sobre “a emoção de estar de pé diante da arte”, chegando à triste conclusão que “isto não é suficientemente emocionante para a maioria das pessoas”; e, finalmente, avisa: “Tudo isto faz-se em nome da participação e da experiência – também chamado envolvimento do visitante – mas altera a própria natureza dos museus e as expectativas dos visitantes. Altera quem irá aos museus e para quê.”

Dois dias depois, Dennis Kois respondia com Song of experience, lembrando, basicamente, que não existe apenas uma forma, válida e significativa, de fazer as coisas. Podem existir ofertas diferentes para pessoas diferentes com necessidades diferentes; são diferentes e depende das próprias pessoas o que é que vão levar com elas.

É exactamente isto que pensei quando li a seguinte afirmação de Mark Rosen a propósito dos visitantes do Metropolitan Museum: “… quase todos vêm aqui, tentam ver tudo em quatro horas ou menos, tiram imensas fotos no Instagram e vão-se embora, sem se lembrarem de nada.” Rosen está envolvido numa iniciativa chamada Museum Hack, que propõe várias visitas “não-tradicionais” em museus. No caso do Met, levam as pessoas a fazer visitas curtas, apresentando-lhes peças menos conhecidas da colecção. Acho isto muito bem. E, enquanto tenho a certeza que as pessoas que se juntam a estas visitas divertem-se e aprendem muito, tenho quase a certeza que turistas que estão pela única vez na vida em Nova Iorque sentir-se-ão mais satisfeitas e será mais significativo para elas se tentarem ver e fotografar tudo em quatro horas. E irão lembrar-se de algo.

Todas as experiências são necessárias, são diferentes pontos de entrada, significam coisas diferentes para pessoas diferentes. A Nina Simon disse-o maravilhosamente há uns anos num post chamado I am an elitist jerk. Apaixonada por parques naturais, uma visitante com muita experiência, confessou sentir-se incomodada nos parques nacionais que atraem as massas. Admitiu ser uma elitista. O que a fez considerar a sua campanha por museus acessíveis e participatórios. “Nessa viagem, pela primeira vez, compreendi realmente a posição das pessoas que discordam comigo, aquelas que sentem que comer e falar alto nos museus não é apenas indesejável, mas transgressor e doloroso. Para os elitistas, é impossível ignorar a forma como outros degradam o que é para eles uma intensa experiência estética e emocional. Compreendo agora.” No entanto, Simon continua e diz que os parques nacionais não lhe pertencem só a ela e que os mais populares entre eles são um importante ponto de entrada para pessoas que escolheram lá estar, porque significava algo para elas. Um dia, algumas delas poderão experimentar um outro parque, mais remoto e ‘difícil’.

Ou um museu. Ou um teatro. Ou um concerto. Os nossos conhecimentos e a nossa experiência é algo que construímos. De acordo com as nossas necessidades, de acordo com o contexto em que nos encontramos. Assisti a concertos de música clássica em silêncio absoluto, juntamente com pessoas que ‘sabiam exactamente quando aplaudir’ e saboreando a última nota tocada até desaparecer e poder (podermos) começar novamente a respirar. Mas gostei igualmente de concertos de música clássica ao ar livre, juntamente com centenas de pessoas a fazer picnic sentadas na relva e a conversar sobre tudo, relacionado ou não com o que se passava no palco.

Sem dúvida, não é sempre fácil dar resposta a necessidades diferentes no mesmo espaço. Na verdade, foi sempre um desafio. Mas há duas coisas que me parecem importantes: 1. Reconhecer que existem necessidades diferentes; e 2. Não julgar uma forma de experiência mais válida ou significativa do que outra. Isto aplica-se aos profissionais da cultura. Aplica-se a espectadores e visitantes também.


Ainda neste blog

Como toma o seu El Greco?

Elitismo para todos

Qual o problema com a música clássica? Aparentemente nenhum…

Livres de visitar um museu de arte

Museus: as novas igrejas?

Simon Fairclough, Orquestras em apuros: será mesmo?


More readings

James Durston, Why I hate museums

Mark Tapson, Should museums be more entertaining?

Peter Funt, Theatre for Twits

Richard Dare, The Awfulness of Classical Music Explained



Monday 9 September 2013

Blogger convidado: "Arte sitiada", por Chaymaa Ramzy El Dessouky (Egipto)

Existe um tipo especial de mulher em Alexandria: determinada, teimosa, confiante, cheia de energia, ideias e sonhos, e com uma enorme capacidade de trabalho. Chaymaa Ramzy é esse género de Alexandrina. Dadas todas estas características, não é uma pessoa que cede perante as dificuldades ou quando enfrenta controvérsia. Entre os vários projectos em que está envolvida, aquele que a tem mesmo cativado é o Marsam 301, um projecto com base em Belém, Palestina, que envolve pessoas de vários países árabes e cuja sede ela não pode visitar. Pelo menos por agora… mv

Eventos de rua (Foto: Marsam 301)

“Não me lembro quando li exactamente a minha primeira banda desenhada, mas lembro-me exactamente o quanto me senti libertado e subversivo, como resultado.”
― Edward W. Said, Palestine

Como é que se define o ‘sítio’? Trata-se de um cerco físico ou sobretudo psicológico? Somos capazes, como pessoas simples, de ultrapassar as suas barreiras? Será o sítio uma fronteira? Ou trata-se apenas de uma limitação numa determinada terra ou espaço que deveríamos estar constantemente a sonhar em como voar por cima dela?
Questões que podem ter respostas diferentes, que cada um de nós pode interpretar de acordo com a sua própria situação, local ou estilo de vida.
Palestina: as pessoas, o território, o país e a Terra Santa. A experiência antecipada por todos. Alguns de nós podem, outros não. Podemos sonhar com a beleza dos seus becos, a gentileza das suas pessoas e maravilhar-nos com as histórias sem fim das suas casas e ruas.
Quando Monther Jawabreh, um proeminente artista visual de Belém, começou a pensar em fundar um novo espaço cultural, “Marsam 301” (Estúdio 301), não pensou em promover a arte nos seus espaços tradicionais, mas noutros diferentes, onde uma pessoa pode ser tocada por uma história, ouvir um dialecto local, ouvir a vida em alta voz em espaços como casas, escolas, hospitais e talvez prisões.
Marsam 301 é um espaço cultural independente, localizado na cidade de Belém, Palestina. Um espaço que destaca o artista visual palestiniano e a arte visual palestiniana na região árabe e talvez no mundo! Uma visão partilhada com outros artistas, gestores culturais e apoiantes da Palestina e países árabes vizinhos.
O nome “301” advém do posto de controlo Kabr Rahil (Túmulo de Raquel), que se encontra entre Jerusalém e Belém. Um posto de controlo israelita conhecido como ‘Barrier 300’ (Barreira 300 – “Parar para inspecção”) bloqueia a passagem dos palestinianos para e de Jerusalém. Marsam 301 fica a 2 quilómetros do posto de controlo, mesmo no centro da cidade de Belém. Portanto, Marsam 301 tem esse nome procurando ser a segunda barreira que obrigará os palestinianos a pararem para ver arte. 301 é também o número do edifício.
Marsmam 301, o espaço (Foto: Marsam 301)
“Assaltar casas, raptar pessoas, bombardear cafés” pode soar perigoso! Mas quando ouvimos isso da equipa do Marsam 301, percebemos a sua missão e ansiedade em assaltar casas com Arte, raptar pessoas e mantê-las durante muito tempo em galerias de arte e bombardear todos os cafés do beco com cores. Uma visão que advém do seu contexto social e do seu dialecto diário, de transformar o actual estado de sítio social e político num sentimento de felicidade e apreciação pelas artes. Uma visão que possa libertar as mentes e sensibilizar sobre a verdadeira relação que deveria existir entre o artista e a sua comunidade.    
Os três programas principais do Marsam 301 incluem nesta fase a promoção da arte visual palestiniana e a capacitação de jovens artistas palestinianos. Um outro programa importante pretende trazer as artes para a rua e espaços não-tradicionais, e até de criar arte em formas não-tradicionais. Por fim, uma residência artística que recebe outros artistas dispostos a viver a experiência palestiniana de intercâmbio artístico, provenientes da região árabe ou de qualquer outra parte do mundo.
Através destes três  programas, a equipa do Marsam 301 deseja ter um papel importante na cena artística palestiniana, juntando um grande número de artistas emergentes com outros mais proeminentes e estabelecidos. Mas também, construir uma nova relação entre estes dois tipos de artistas que poderão beneficiar nesta fase da partilha de experiências e do debate de uma série de tópicos. Uma ideia que foi confirmada e apreciada por Tamam Al Akhal, um proeminente artista visual palestiniano, durante o último encontro da equipa em Amã, Jordânia. Al Akhal partilha a visão e objectivos do Marsam 301.
O recente encontro da equipa em Amã, Jordânia (Foto: Marsam 301)

Esta extraordinária experiência, na minha opinião (tendo eu o orgulho de ser um dos seus fundadores, juntamente com Iman Bachir do Líbano e Ahed Izhiman da Palestina), irá contribuir muito para a cena artística palestiniana e ter um impacto muito rico nas pessoas e na comunidade. Irá tornar as artes acessíveis em qualquer lugar e a qualquer hora. Fornecendo um melhor conhecimento das artes que reflectem sobre a realidade do país e apresentam as opiniões e emoções das pessoas aos de fora. Uma experiência que coloca os artistas no coração da sociedade.
O Marsam 301 continuará com a sua estratégia de ajudar no desenvolvimento da sociedade palestiniana, esperando que, um dia, as pessoas ganharão a sua própria liberdade e nunca mais irão parar para inspecção ou sentir-se sitiadas!
Para contactar o Marsam 301, por favor escrevam para marsam301(at)gmail.com ou visitem-nos no Facebook.

Chaymaa Ramzy El Dessouky é Program Officer da Fundação Anna Lindh em Alexandria, Egipto; International Fellow of Arts Management no Kennedy Center for Performing Arts, Washington DC; membro fundador de Marsam 301 em Belém, Palestina. Nascida em Alexandria, licenciou-se em Business Administration and Strategic Marketing na Faculdade de Comércio - Alexandria University. Com a sua experiência como formadora, apoia várias organizações da sociedade civil e outros projectos emergentes na região árabe, ajudando-os a criar estratégias que aumentam a sua capacidade na área do marketing, da publicidade e do planeamento estratégico. Durante o seu fellowship no Kennedy Center, quer concentrar-se no desenvolvimento de um plano de marketing que irá ajudar a envolver a imprensa e de incorporar plataformas de redes sociais para fortalecer a organização de eventos locais no Egipto. Com a Fundação Anna Lindh, organiza anualmente o Festival Intercultural de Alexandria “Farah El Bahr”. Está igualmente envolvida na criação do plano estratégico do Marsam 301 em Belém, Palestina, fazendo parte de uma equipa regional de pessoas de diferentes países árabes.

Contactos:
Chaymaa.ramzy(at)gmail.com
Chaymaa.ramzy(at)bibalex.org

Monday 2 September 2013

O ano novo


Estou de regresso de Washington, no avião de Paris para Lisboa. Estou no lugar do meio, por isso, peço ao homem que está no lugar de corredor para me deixar passar. Não olho bem para ele; um homem moreno, poderia ser português.

Começo a ler o meu livro. Pouco tempo depois, sinto que o homem ao meu lado está um pouco nervoso. Olho para as suas mãos: tem um boné, o seu telemóvel e algumas páginas enroladas com um texto em inglês. Tento olhar melhor para ele, discretamente. Não é português, é de origem árabe. Olho novamente para as suas mãos. O seu telemóvel está ligado e está constantemente a verificá-lo. O texto nas páginas enroladas é um texto científico, mas não consigo perceber de que área exactamente.

As assistentes de bordo passam e oferecem bebidas. Não aceita. “Ramadão”, penso para mim. Continua a olhar para o seu telemóvel e faz-me sentir nervosa também. Olho novamente para ele, está de olhos fechados e os seus lábios estão a mexer. Está a rezar? Estou ainda mais nervosa. Tento dizer a mim própria que tem ar de um homem perfeitamente normal, mas há uma outra voz interior que me diz “Não têm todos ar de um homem normal?”.

Pouso o meu livro na mesa, é de um autor Árabe (estarei a tentar mandar um recado?). Muitos pensamentos passam pela minha cabeça. Um deles é levantar-me e ir avisar o pessoal de cabine que tenho um Árabe nervoso sentado ao meu lado com o seu telemóvel ligado… Obrigo-me a mim própria a ficar onde estou, sentindo-me ridícula. E então ele diz:

-          O que está a ler?
-          É um autor marroquino.
-          É o que me pareceu.
-          É também marroquino?
-          Sim, sou.

Pede para dar uma vista de olhos. Pega no livro e lê a sinopse. Depois começamos a falar sobre política. Religião também. Pergunta-me sobre a Grécia, falamos muito sobre o Egipto e depois também sobre Marrocos. Está a caminho de Portugal para participar numa conferência sobre matemática aplicada. Estou a gostar muito da nossa conversa, tem uma voz calma e parece um homem meigo, mas não consigo deixar de me sentir nervosa. Sempre que haja um momento de silêncio, olha para o seu telemóvel. “Não têm todos ar de um homem normal?”, insiste a voz interior.

Assim que aterramos em Lisboa, ele diz-me: “Sabe que as probabilidades de um avião se despenhar são muito menores do que de dois comboios colidirem?”. Não está nervoso, não estou nervosa. Sinto-me aliviada. E sinto vergonha.

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Há duas entradas para a exposição do Museum of Tolerance em Los Angeles, uma com a indicação “Preconceituoso”, a outra “Não preconceituoso”. Aqueles que tentam entrar pela segunda porta encontram-na fechada, não conseguem abri-la. O incidente no avião continuou a assombrar os meus pensamentos. Sentia-me realmente envergonhada. Se o homem ao meu lado não parecesse Árabe, teria reagido de outra forma ao seu nervosismo.

Organizações e pessoas que trabalham na área do racismo e da discriminação lembram-nos constantemente que não nascemos racistas, tornamo-nos racistas. E, depois de nos tornarmos, parece ser preciso lutar mesmo muito, conscientemente e com determinação, para evitar discriminar o Outro. Depois de conversar com algumas pessoas sobre o incidente no avião e de ouvir as suas opiniões sobre o que devia ter feito, apercebi-me que esta luta é mesmo difícil. Porque, para lutarmos, é necessário primeiro estarmos conscientes dos nossos actos discriminatórios, estarmos conscientes das nossas próprias atitudes. Muito frequentemente não estamos. Nunca pensamos em nós próprios como racistas e uma série de desculpas servem-nos perfeitamente para justificarmos os nossos pensamentos e acções: a necessidade de sentirmos segurança, a necessidade de protegermos as pessoas que amamos e as nossas comunidades, a necessidade de preservarmos a nossa cultura e tradições, a necessidade de defendermos o nosso território, a necessidade de garantirmos a nossa sobrevivência… Por isso, se necessário e ‘just in case’, o Outro poderá ter que pagar o preço. E “não há mal nisto, é compreensível, somos boas pessoas, preocupadas com os nossos”…

Esse ‘just in case’ tem servido de desculpa para muitas pessoas nas suas decisões do dia-a-dia, assim como para muitas e importantes decisões políticas. A América pós-9/11 vem-me inevitavelmente à cabeça. Mas mesmo aí – como me apercebi lendo o livro de Leila Ahmed A Quiet Revolution – The Veil´s Resurgence, from the Middle East to America -, no meio da destruição, da dor, do medo, da raiva, da violência, houve pessoas de todas as origens e religiões que foram capazes de olhar bem para elas próprias e de ser solidárias para com outras, determinadas em preservar as suas comunidades multiculturais, manter e proteger as suas relações com amigos e vizinhos, continuar a ser e a sentir-se humanas. A linha entre o civilizado e o bárbaro é tão ténue; requer um esforço tão grande para se ser o primeiro e não o segundo.

Setembro assinala um ‘ano novo’ para mim mais que Janeiro; vem do tempo da escola. É o momento em que olho para a frente e penso “E agora?” ou “A seguir?”. Neste preciso momento, tendo o ‘ano novo’ pela frente, a minha cabeça está cheia de perguntas. Penso novamente no meu tempo no Kennedy Center, onde Egípcios falam com Israelitas; Paquistaneses e Indianos trocam piadas sobre os seus países; um Sérvio, uma Croata e um Bósnio tiram fotos juntos; uma Grega e uma Turca partilham uma refeição. Será este um ambiente ‘seguro’, ‘civilizado’? Teria sido diferente se o contexto fosse diferente? Haverá espaços onde as pessoas são civilizadas e outros espaços onde essas mesmas pessoas se tornam bárbaros? Terá mesmo a cultura um papel em manter-nos civilizados ou os seus ‘efeitos’ são facilmente neutralizados por outras forças e factores? Poderá ajudar a criar um espaço comum, onde as pessoas possam coexistir e manter boas relações, não simplesmente tolerando uns os outros, mas ficando a conhecer-se melhor; dispostas a conversar, a entender, a aceitar? Não foi o livro de Fouad Laroui que ajudou a iniciar a conversa naquele avião, que ajudou a controlar o medo? As minhas resoluções para o ‘ano novo’ encontram-se algures entre todas estas questões.

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