Monday 29 March 2010

As entradas gratuitas (I) Museus

No dia 7 do passado mês de Fevereiro o título do jornal Público que chamou imediatamente a minha atenção foi este: “Nos museus e teatros há cada vez mais acessos gratuitos”. O artigo era da Alexandra Prado Coelho (ler aqui) e dava conta, com base em estatísticas recentemente divulgadas pelo OAC, de que, em 2008, nos museus a percentagem de entradas gratuitas era de 62% e nos monumentos e palácios de 49%. Passando para as artes performativas, o artigo indicava que nos dois teatros nacionais (D.Maria II e São João) as entradas pagas eram ligeiramente superiores às gratuitas, enquanto a percentagem de espectadores da Companhia Nacional de Bailado que tinha assistido a espectáculos sem pagar tinha atingido os 66%.

Começando pelos museus, a questão da entrada gratuita é várias vezes levantada nos meios profissionais. A própria Ministra Gabriela Canavilhas afirmou em Janeiro que um dos seus maiores desejos é a instituição de entrada livre em todos os museus do IMC (ler aqui
) Normalmente, esta questão é colocada no contexto da democratização do acesso, por se tratar de um ‘serviço público’, ou na perspectiva do aumento do número de visitantes e da formação de novos públicos.

Qual o serviço público para o qual não se paga nada? A educação? A saúde? Porque é que não se devia pagar para se ter acesso a um museu nacional? De acordo com a nova tabela de ingressos,
o bilhete custa entre €2 (por exemplo, no Museu da Terra de Miranda) e €5 (nos grandes museus nacionais de Lisboa, Coimbra e Porto). De qualquer forma, menos que um bilhete de cinema. Existem ainda descontos e uma série de situações que dão direito a entradas livres. Porque é que o Estado havia de querer abdicar desta receita? O facto de 61% das entradas terem sido gratuitas em 2008 indica que, entre as pessoas que visitam, a maioria já tem o acesso facilitado. Os dados disponibilizados pelo OAC não entram em pormenores sobre o perfil dos visitantes, mas talvez possamos concluir que grande parte das entradas gratuitas, um número muito próximo do número de visitas nacionais, se refere a grupos escolares; enquanto o número de entradas pagas é bastante próximo do número de visitantes estrangeiros.

Se a intenção é o aumento do número de visitantes associado à formação de novos públicos, tenho sérias dúvidas que o caminho passa pela instituição de entrada gratuita. A ideia que as pessoas não visitam porque não podem pagar e visitarão se a entrada for livre é, na minha opinião, uma falsa questão. As pessoas não visitam porque não têm interesse, porque não acham os museus relevantes, porque não entendem a sua linguagem. Em alguns casos, porque nem sequer sabem que existem. Mas gastam (e gastam muito mais que €5) para participar em ou assistir a actividades e eventos que lhes parecem relevantes, interessantes, divertidos; que valem a pena o dinheiro (e tempo) investido.

A instituição de entrada livre traz, sem dúvida, um aumento no número de visitantes. No entanto, trata-se, na maioria dos casos, de pessoas com o mesmo perfil ou até das mesmas pessoas que passam a visitar mais vezes. O aumento do número de visitantes associado à formação de novos públicos passa por novas abordagens de exposição e interpretação das colecções, e, claro, por novas estratégias de comunicação. Quando o ‘produto’ é apetecível, o ‘cliente’ não hesita em pagar para o adquirir. E, tratando-se aqui de museus nacionais, preocupados, como devem ser, com as questões de acesso, podem, como já o fazem, desenhar políticas de bilheteira acessíveis para a maioria dos bolsos.

E porque normalmente nos limitamos a avaliar tudo de forma empírica, no caso das entradas livres, e em países que já as implementaram, houve estudos de avaliação da medida. Em Janeiro 2001 os museus nacionais do Reino Unido instituíram a entrada gratuita às exposições permanentes, continuando a cobrar bilhetes (e bilhetes caros) para as exposições temporárias. A abolição da entrada paga foi acompanhada por um aumento do apoio financeiro garantido pelo governo de Tony Blair (vinte anos antes, o governo de Margaret Thatcher tinha seguido o caminho inverso, introduzindo as entradas pagas nos museus nacionais, no sentido de cortar o apoio financeiro dado pelo Estado). Sete meses depois, em Julho 2001, os museus registavam um aumento médio de 62% no número de visitas. No caso concreto do Victoria & Albert Museum, o aumento chegou a atingir o 157%, um facto relacionado também com a abertura das British Galleries. Aliás, todos os museus que tinham inaugurado na altura novas alas e novos serviços registaram aumentos significativos no número de visitantes. Em 2003 foi publicado o estudo de públicos da MORI (disponível aqui) que pretendia avaliar o impacto da introdução da entrada livre. O estudo confirmou o aumento significativo do número de visitantes, mas mostrou também que a maioria eram visitas realizadas por pessoas com o mesmo perfil sócio-demográfico, ou eram então visitas repetidas, ou seja, as mesmas pessoas visitavam mais vezes. Um outro relatório da Museums Association (disponível aqui
) chegou às mesmas conclusões. A entrada livre por si não forma novos públicos.

Posso ainda dar um exemplo nacional. No tempo que trabalhei no Pavilhão do Conhecimento, faziam-se dois inquéritos aos visitantes por ano. Havia entre os inquiridos pessoas que afirmavam não ser visitantes de museus. A razão invocada era a falta de tempo ou a falta de interesse. Ao longo dos cinco anos que trabalhei nesses inquéritos, foram raras as vezes em que as pessoas responderam que não visitavam porque se pagava ou porque os bilhetes eram caros.

Considerando, portanto, que os visitantes locais, nacionais e estrangeiros não reclamam pelo facto de terem que pagar para entrar nos museus nacionais e que a política de ingressos estabelece preços relativamente baixos (sendo contemplados vários descontos, assim como entrada livre para certos grupos de visitantes e profissionais), parece-me que os museus não deveriam abdicar desta receita. Deveriam continuar a cobrar e ao mesmo tempo começar a investir mais numa melhor estratégia de exposição, interpretação e marketing, que, para além de servir os públicos actuais, contribuiria para a formação de novos públicos. A oferta tornar-se-ia mais relevante, mais acessível intelectualmente, mais ‘apetecível’. E desconfio que o público não se importaria de pagar algo para usufruir da mesma.

Monday 22 March 2010

Visão, missão, estratégia

Alexandre Pomar teve a amabilidade de comentar sobre o post anterior e de me indicar o link de acesso ao discurso que a Ministra Gabriela Canavilhas proferiu no dia da apresentação da estratégia para os museus do século XXI (disponível aqui). Agradeço muito, não o tinha ainda lido e, realmente, aqui parece haver uma tentativa de criar um contexto para as medidas anunciadas. Na minha opinião, o texto deste discurso deveria estar integrado no documento estratégico.

Apesar desta tentativa de criar um contexto, confesso que, quando procurei associar as linhas gerais do discurso às medidas concretas da estratégia, senti que havia algumas discrepâncias, que as medidas nem sempre procuram concretizar as aspirações. Mas aquilo sobre o que gostava sobretudo de comentar é o ponto que a Ministra quis frisar:

“(…) todos estes objectivos em nada alteram o cerne fundamental da missão museológica: a preservação, estudo e enriquecimento das colecções e acervos (…)”.

E para quem é que se faz tudo isso, pergunto eu.

O museu, de acordo com a definição do ICOM, é uma instituição que adquire, conserva, estuda, expõe e interpreta testemunhos materiais do homem e do seu meio ambiente, tendo em vista o estudo, a educação e a fruição. O ICOM não define de forma alguma que as três primeiras funções são mais importantes que as duas últimas. É através destas duas últimas que se estabelece sobretudo a relação e comunicação com o público em geral. É nestas últimas que normalmente se falha.

Se perdermos de vista os destinatários finais da nossa acção, continuaremos a montar exposições que comunicam apenas com os especialistas e entendidos, colocando objectos atrás do vidro, com legendas que se limitam a identificar os mesmos usando terminologia científica, indicando apenas a data de produção e, nalguns casos, também os materiais e as dimensões. Continuaremos a escrever textos para os painéis que, para além do conservador ou comissário, poucas pessoas entenderão. Continuaremos incapazes de contar histórias às pessoas comuns, histórias que possam inspirar e maravilhar, ou simplesmente divertir (custou-me tanto ouvir a Paula Rego, na altura da abertura da Casa das Histórias, dizer que o espaço para a sua colecção não ia ser chamado ‘museu’, porque num museu não se contam histórias…). Continuaremos irrelevantes e incompreensíveis para uma grande parte da sociedade. Estou a pensar no visitante individual, nacional ou estrangeiro,
e não nos públicos-alvo da riquíssima acção dos serviços educativos dos nossos museus, que contribuem significativamente para uma interpretação intelectualmente acessível e inspiradora das colecções. Esses públicos são sobretudo pessoas, na sua grande maioria crianças, que se integram num grupo inscrito numa actividade ou visita guiada. Grande parte do público em geral não visita os museus nessas condições.
A minha definição preferida de museu é a da Museums Association (Reino Unido): “Os museus permitem às pessoas explorar colecções para se inspirarem, para aprenderem e para se divertirem. São instituições que coleccionam, salvaguardam e tornam acessíveis objectos e espécimes, que gerem em nome da sociedade”. Aqui eu pessoalmente encontro uma visão.

É preciso uma visão para se definir de seguida uma missão. Gosto particularmente da ‘declaração de missão’ (e de visão) do programa Descobrir da Fundação Calouste Gulbenkian. Considero-a clara, inspirada e inspiradora. Aqui está:

“O Descobrir – Programa Gulbenkian Educação para a Cultura oferece a públicos de todas as idades, um conjunto vasto de eventos que transforma o património artístico e natural da Fundação Calouste Gulbenkian num percurso de prazer, descoberta e pensamento criativo.


Através de abordagens e metodologias diversas de estímulo à curiosidade e à imaginação, o Programa associa experiências do mundo sensível à leitura interpretativa e crítica das várias artes.

O Descobrir acredita que a Educação para a Cultura contribui para a formação de cidadãos abertos à criação e à fruição crítica das Artes, mas também, por inerência do trabalho de mediação que desenvolve, para a formação de pessoas capazes de questionar as rotinas e de assumir uma postura de inovação na esfera da sua actividade social e profissional.”

Proponho-vos ainda a leitura da missão (que reflecte igualmente uma visão) do Serviço Educativo da Casa da Música: "O Serviço Educativo da Casa da Música propõe a entrada no universo infinito da música através de uma variedade de experiências de ouvir, fazer, criar e saber. Independentemente da sua idade ou condição, todos podem encontrar nesta Casa caminhos de descoberta, participação e plena fruição". O documento apresenta a seguir as propostas do serviço no sentido de concretizar esta missão-promessa.


Visão, missão, e no fim estratégia e medidas concretas. Para fazer sentido, a ordem deve ser esta. E quando se chega às medidas, essas devem claramente derivar de ou corresponder à visão e à missão anunciadas. Assim, temos um quadro completo e um caminho mais bem traçado.

Depois, avalia-se.

Monday 15 March 2010

Museus e estratégias para o século XXI

É natural que a apresentação de um plano estratégico gera discussão. E o Planeamento Estratégico do IMC – Museus para o Século XXI (consultar aqui), não podia ser diferente. Foi já bastante debatido e comentado na comunicação social e em vários fóruns de profissionais de museus e de pessoas em geral que acompanham e participam na vida cultural do país.

Não quero repetir ou comentar sobre o que já foi dito. Gostaria de dar a minha opinião sobre alguns aspectos do plano que, parece-me, não foram ainda objecto de discussão.

Em primeiro lugar, gostaria de assinalar a ausência da declaração de uma visão. Qualquer plano estratégico, antes de apresentar objectivos e medidas concretas, deveria criar um contexto para os mesmos, dar a entender qual é a grande ideia e qual poderá ser a expectativa. Que lugar é que o Ministério da Cultura gostaria que os museus ocupassem na sociedade portuguesa do século XXI? Porque é que continua a investir o dinheiro dos contribuintes nos mesmos? O que é que a sociedade pode esperar e exigir? Que desafios se apresentam, a nível local, nacional e internacional? Quais os factores que irão determinar as prioridades?

Uma outra omissão que me preocupou bastante desde a primeira leitura do documento foi a total falta de referência ao(s) público(s). Se as pessoas são a raison d´être dos museus, os destinatários finais de toda a sua actividade - sejam eles profissionais de museus, investigadores, público 'iniciado' ou, e sobretudo, público 'não iniciado' -, como é possível que nunca sejam claramente e directamente mencionadas no documento estratégico? Quando o desempenho dos museus nacionais se mede sobretudo, pelo menos publicamente, pelo número de visitantes, quando em alguns museus existe uma preocupação permanente em atrair mais pessoas, em diversificar a oferta e melhorar a qualidade da mesma, é decepcionante que uma estratégia para os museus do século XXI ignore por completo um dos factores que definem, ou deveriam definir, as prioridades na sua acção. Enquanto o(s) público(s) não forem claramente identificados como um factor determinante no planeamento estratégico, os museus continuarão a ser visitados e desfrutados por uma minoria; as pessoas continuarão a pensar que os museus são, sim, importantes, mas não se dirigem a elas, não lhes são relevantes; continuará a faltar um envolvimento afectivo e intelectual, que em alguns países faz com que a sociedade (a sociedade local e não os turistas estrangeiros…) se movimenta sempre que necessário em defesa dos seus museus e não se abstém e deixa esta luta apenas aos profissionais e aos ‘entendidos’. Se não olharmos para fora, é inevitável que continuemos a olhar para o umbigo, atitude da qual a redacção do Eixo 5 é mais um sinal. Aqui, na introdução, aparece pela primeira, mas também pela última, vez a palavra “comunicação”. Nas linhas que se seguem entende-se claramente que é de “comunicação interna” que se fala.

Para não falar apenas das omissões, foi com muito agrado que li no documento estratégico que se pretende monitorizar e avaliar a estratégia (Eixo 2). No entanto, não se especifica aqui a forma como esta tarefa será realizada. A definição de indicadores, para a avaliação da estratégia, mas também do desempenho dos museus em geral, é uma necessidade e uma obrigação, que vai muito além da contagem do número de visitantes e que é específica para cada museu, com base nos objectivos que se propõe a atingir. Alguns, como é normal, são comuns, outros dizem respeito à realidade muito específica de cada instituição. Deveremos procurar consultar e aprender com os países que já testaram e implementaram modelos de avaliação e não cair na tentação de começar do zero.

Deixei para o fim os modelos de gestão. Nos vários comentários que já li sobre este ponto da estratégia parece que a questão se resume na escolha entre uma visão mais comercial e outra mais virada para o estudo das colecções. Como se devêssemos escolher. Como se pudéssemos escolher… Mais uma vez, não será necessário começarmos do zero. Vários modelos – alguns melhores, outros piores – foram já testados e implementados noutros países. Na minha opinião, é a própria profissão, a do museólogo, que pode e deve formar os seus gestores. Pessoas que, se não a têm já, ganharão a sensibilidade necessária para gerir e dirigir espaços culturais e, concretamente, museus. Poderão ser pessoas vindas da área da história de arte, da arqueologia, da história, da sociologia, da animação cultural, etc; são cada vez mais pessoas vindas da área da economia. A gestão de museus é, em alguns países, um módulo essencial e imprescindível nos curricula dos cursos de museologia. Os cursos de leadership dirigidos aos profissionais de museus multiplicam-se no Reino Unido, nos Estados Unidos, na Austrália (se bem que não devemos confundir leadership com managment). Tanto o ICTOP (Comité Internacional do ICOM para a Formação do Pessoal), como o INTERCOM (Comité Internacional do ICOM para a Gestão) poderão orientar as nossas decisões e apoiar as nossas acções.