Monday 27 September 2010

Quem 'merece' ser financiado? (I) Leituras

A seguir ao meu post sobre o artigo de Mark Ravenhill, li ou voltei a ler uma série de textos e relatórios sobre o valor da cultura e o financiamento da mesma, que passo a apresentar sucintamente.

Em 2004 a Secretária de Estado da Cultura do governo de Tony Blair, Tessa Jowell, publicou um texto intitulado
Government and the Value of Culture. E dizia: “Muito frequentemente os políticos são obrigados a debater a cultura apenas em termos do seu benefício instrumental para outras agendas – educação, redução da criminalidade, melhorias no bem estar -, explicando ou, em certos casos, quase pedindo desculpa pelo investimento na cultura apenas em termos de outras coisas. No discurso político e público neste país temos evitado a abordagem mais difícil de investigar, questionar e celebrar aquilo que a cultura faz por si e de si. Há uma outra história para contar sobre a cultura e compete aos políticos que estão na minha posição mostrar o caminho para mudar o ambiente e mudar os termos do debate”.

Nesse mesmo ano, o think-tank
Demos publicou Capturing Cultural Value, de John Holden. No seu relatório, Holden identifica um sentimento de desconforto no sector cultural devido à necessidade ou obrigação de provar o seu valor e de justificar o dinheiro que gasta com base em objectivos traçados por outros sectores. Analisa as dificuldades para a avaliação dos valores intrínsecos da cultura e propõe uma solução que passa pela criação de uma nova linguagem, “capaz de reflectir, reconhecer e captar toda a gama de valores expressos através da cultura”. Recorre, assim, a outras áreas e apresenta-nos conceitos expressos através da linguagem da economia (valores comerciais e outros), da antropologia (valores históricos, sociais, simbólicos, estéticos e espirituais), do ambientalismo (sustentabilidade, biodiversidade, equidade intergeracional, equidade na distribuição de benefícios), e também através da linguagem da avaliação de bens intangíveis (marcas, conhecimento) e do valor público (um conceito emergente naquela altura no Reino Unido, relacionado com o valor atribuído pelos cidadãos às entidades públicas avaliado com base no que estão dispostos a investir nas mesmas – por exemplo, em termos de tempo ou dinheiro). Holden defende, assim, a necessidade de se encontrar formas de calcular o valor da cultura que sejam capazes de reflectir também elementos que a caracterizam e que são afectivos, subjectivos, intangíveis.

Dois anos mais tarde, em 2006, é publicado
Culture Vultures, editado por Munira Mirza. Mais um livro que questiona a instrumentalização da cultura e as regras de avaliação e financiamento da mesma. Textos de seis autores diferentes que defendem o valores intangíveis e intrínsecos da cultura, que se manifestam contra a colocação da cultura ao serviço de outras agendas e que questionam os dados recolhidos para provar o seu impacto social, que receiam que os critérios estabelecidos para a atribuição de financiamento tornem a arte medíocre, à medida que os artistas procurarão corresponder a requisitos impostos por outros para garantirem melhor aceitação das suas propostas e financiamento.

Em 2007 foi publicado o relatório
Public Value and the Arts in England, que explora, então, esse novo conceito do 'valor público'. Trata-se dos resultados de um inquérito realizado pelo Arts Council England junto de artistas, gestores culturais, entidades financiadoras e membros do público. Achei interessante o facto de estarem aqui apresentados os pontos sobre os quais todos estes diferentes actores convergem e aqueles que criam tensão entre as partes. Questões como o que são as artes, porque é que são importantes, o que é que se entende por qualidade, a importância de assumir riscos, o acesso e a inclusão, o princípio do financiamento público, são pontos que reúnem algum consenso, ao contrário do que eu esperaria em certos casos. Quanto aos pontos de tensão, aqui não houve grandes surpresas: o direito de se exprimir versus a necessidade de envolver os públicos; os benefícios para o público versus o desenvolvimento artístico; a necessidade da prestação de contas versus a burocracia a ela associada; a avaliação por peritos versus a uma consulta inclusiva, ou seja, que integra as opiniões do público. Qual a conclusão? As pessoas envolvidas no inquérito procuraram estabelecer uma posição comum no que respeita às prioridades e aos princípios do financiamento público: “Concluíram que o objectivo final do financiamento público para as artes deveria ser a criação de ‘valor público’ em termos de (…) reforço da capacidade e da experiência de viver em vários contextos. (…) …este valor será criado naturalmente se o maior número possível de pessoas tiver a possibilidade de experienciar artes que excitam, iluminam, tocam, estimulam e desafiam. Por isso, gostariam que o sistema de financiamento público apoiasse a qualidade da experiência artística”.

Por último, li uma série de pequenos textos que o
Arts Council da Irlanda solicitou a alguns comentadores, no seguimento de um estudo chamado The Public and the Arts (2006). São eles: The Case for Elitism; The Siren Alps; The Feel-good Gulag; We´ve Built It; Why Won´t They Come?; e The Pursuit of Glorious Failure. Pontos de vista interessantes, alguns expressos com muito sentido de humor, outros algo exagerados.

Todos estes textos ajudaram-me a arrumar algumas ideias e levantaram-me questões:
- Será que a cultura precisa ainda hoje de provar o seu valor? A quem? E em que termos?
- É legítimo pedir algo em troca a um artista cuja obra é financiada com dinheiros públicos? E a uma companhia ou outra instituição cultural?
- Se sim, quem define o que se pode/deve pedir em troca e como?

(continua…)

Agradeço a CF ter-me falado do Culture Vultures e a MLA ter-me enviado o Capturing Cultural Value.

Monday 20 September 2010

Michael Kaiser em Lisboa

O sentimento predominante após ter assistido, no passado dia 14, ao seminário de Michael Kaiser sobre gestão cultural não foi de espanto ou de entusiasmo ou de surpresa ou de excitação. Foi um sentimento de prazer. O simples, puro prazer de poder ouvir alguém que 1) sabe de que é que está a falar; e 2) tem posto os seus conhecimentos e ideias em prática.

Michael Kaiser falou das dificuldades em trabalhar no sector cultural, de planeamento artístico, de marketing programático e institucional e de fundraising. Tinha já lido o seu livro,
The Art of the Turnaround, no qual descreve as suas experiências como gestor de várias organizações culturais nos EUA e no Reino Unido, e foi particularmente interessante ver como conseguiu introduzir toda esta experiência no seminário, respondendo a quase todas as perguntas que lhe foram colocadas com um exemplo concreto.

Como tinha dito num
post anterior, estava particularmente interessada na sua relação com os artistas. Michael Kaiser é um gestor cultural que valoriza claramente o marketing e o fundraising. Estava, por isso, curiosa em saber se os artistas o tinham apoiado nos seus esforços para tornar certas organizações culturais em instituições financeiramente saudáveis. E sim, a sua resposta apanhou-me de surpresa. Não começou por falar do quanto é difícil conseguir que os artistas colaborem ou compreendam ou valorizem o trabalho dos profissionais de marketing e de fundraising (mas em algum momento, algures, deverá ter tido este sentimento também…). Ele disse: se um artista acha que o marketing e o fundraising não têm valor, isto é porque nós não nutrimos a relação com ele, não fomos capazes de o convencer que pode confiar em nós, que estamos do lado dele.

Confesso que esta não tem sido a minha principal preocupação. A minha principal preocupação tem sido levar a arte ao público, mantê-lo informado, tentar identificar as barreiras físicas, financeiras ou intelectuais e procurar melhorar o acesso. Como podemos fazê-lo quando um artista não está disponível para falar do seu trabalho? Quando acha que não tem que explicar nada? Quando os conceitos não podem ser ‘traduzidos’ em palavras simples, comuns ou os cartazes criados não como uma extensão do espectáculo, mas sim como um instrumento útil para a sua promoção? Quando a disponibilidade para falar com os media diminui à medida que a pressão antes da estreia aumenta? Quando o marketing e a comunicação são vistos como um acessório, mas o principal responsável quando um espectáculo não vende? Não se trata, obviamente, de situações que ocorrem com grande frequência, nem dizem respeito a todos os artistas, mas trata-se de situações reais e recorrentes.

Mas, apesar de tudo isto, gostei da resposta de Michael Kaiser. Porque lembrou-me que há ainda muita gente por ‘conquistar’, que não devo tomar a relação com os artistas por certa. Mas sobretudo porque é consistente com a sua filosofia. Que diz que o nosso principal produto é a arte de excelência e que devemos saber promovê-la bem. “A missão das organizações culturais é a arte e a educação, não a saúde financeira. Devemos providenciar aos artistas aquilo que precisam e para o fazermos precisamos de angariar fundos. E devemos fazê-lo sem nunca comprometer a arte. Os meus artistas sabem que faço tudo o que posso para lhes garantir aquilo que precisam. E se precisasse de cortar num orçamento, a última área onde iria cortar seria a arte.” Considerando a tensão que normalmente existe na relação entre artistas e gestores – uma relação que Michael Kaiser descreve como essa de uma criança que diz “quero…quero…quero…” e de um pai que responde “não temos dinheiro… não temos dinheiro… não temos dinheiro...” -, parece-me que esta é uma excelente abordagem quando se procura definir o papel e as expectativas de cada um.

Ao falar de marketing programático e institucional, Michael Kaiser concentrou-se sobretudo no último, apesar da maioria das instituições investir (bem ou mal) no primeiro. As organizações com sucesso têm uma missão clara, sabem quem são, porque é que existem, onde querem chegar, o que é que as torna únicas no mercado. A vida é mais fácil para as instituições que são conhecidas, que têm um plano para estarem na cabeça, e no coração, das pessoas a todo o momento. O marketing institucional é um pré-requisito crucial para se fazer fundraising. E no que respeita à relação com potenciais patrocinadores (estou aqui a traduzir a palavra ‘donors’, que é mais do que ‘sponsors/patrocinadores’), Michael Kaiser partilhou connosco as suas 10 regras:

1. O mais importante em fundraising é saber ouvir;
2. Devemos ter um ‘menu’ de projectos a propor, para podermos encontrar aquele que melhor corresponde aos interesses e necessidades de potenciais patrocinadores;
3. Devemos admiti-lo quando não temos a propor nada de interesse para o patrocinador. Isto garante que vamos ser melhor ouvidos da próxima vez;
4. Os patrocinadores reagem a informação positiva e não a ameaças de falência;
5. Devemos encontrar o interlocutor certo para cada patrocinador;
6. Devemos implementar o marketing institucional antes de começarmos com o fundraising;
7. Devemos cultivar a relação com o patrocinador antes de pedirmos algo;
8. Não devemos perder tempo em escrever cartas impessoais. Devemos procurar conhecer as pessoas;
9. Devemos fazer pesquisa prévia, para conhecermos melhor as necessidades e os interesses de potenciais patrocinadores;
10. Nos EUA o fundraising é chamado development (desenvolvimento). Trata-se de desenvolver uma relação.

A relação artista-gestor, o papel fundamental do marketing na vida de uma instituição cultural, a distinção entre marketing programático e institucional, a forma de nutrir relações com potenciais patrocinadores… Michael Kaiser falou de questões que não são amplamente discutidas em Portugal. Talvez seja por isso que a audiência não retorquiu mesmo quando ele falou de assuntos que poderiam ser um pouco controversos ou impraticáveis em Portugal. Mas é altura de começarmos a debatê-los a todos os níveis. A arte e o marketing não são duas áreas incompatíveis, incapazes de falar a mesma língua, de partilhar objectivos.

Podemos pôr as suas recomendações em prática? Talvez, se considerarmos uma escala diferente. Ou talvez não. Mas que importa. Sonhemos um pouco. Tal como ele sonha.

Monday 13 September 2010

Made in Peru

O Sendero Luminoso, organização terrorista peruana, iniciou a sua actividade na década de 1980. Na altura eu era adolescente. Lembro-me de algumas notícias esporádicas nos telejornais, nada especial. Mais tarde, durante a presidência de Alberto Fujimori, o grupo voltou a ser notícia e eu já estava mais atenta. No entanto, acho que até agora não tinha verdadeira noção da extensão do conflito e dos seus resultados. Este verão, cruzei-me em várias ocasiões com a história do Sendero Luminoso e de Peru, um país que tenta hoje lidar com o seu sangrento passado recente. Artistas, escritores, académicos dão o seu contributo.

Começo pelo fim. No mês passado li sobre um jovem escritor peruano,
Santiago Roncagliolo. A sua família tinha-se refugiado no México por razões políticas, mas os pais decidiram voltar a Peru em 1979. Diz que a sua primeira memória do país são "os cães de Deng Xiaoping". No dia 25 de Dezembro de 1980 os habitantes da capital Lima acordaram e encontraram o centro da cidade ‘enfeitado’ com cadáveres de cães pendurados nos postos de electricidade. Traziam tabelas que diziam “Deng Siao Ping, hijo de perra” (um cão enforcado simboliza na China um tirano condenado à morte pelo povo). Foi assim que o Sendero Luminoso anunciou o início da guerrilha. Santiago Roncagliolo tinha 5 anos.
Santiago Roncagliolo
No seu livro
A quarta espada: a história de Abimael Guzmán e do Sendero Luminoso (ed:Objetiva, Brasil), Roncagliolo tenta desvendar a personalidade de Abimael Guzmán, o ‘Presidente Gonzalo’, líder do grupo. Sem nunca pegar numa arma, Guzmán conduziu as operações da guerrilha entre o seu grupo e o Estado de Peru, que resultou em quase 70.000 mortes. Na maioria civis. Na maioria camponeses. O Sendero Luminoso foi considerado responsável por mais de metade dessas mortes violentas e cruéis. As restantes foram atribuídas às forças da Estado, autorizadas por um governo democraticamente eleito a usar os mesmos métodos do grupo terrorista. Através de uma investigação que durou três anos, e que incluiu entrevistas com ex-companheiros e alguns familiares de Guzmán, Roncagliolo desenhou o perfil deste terrorista, produzindo um trabalho que alguns comparam ao jornalismo literário de Truman Capote. Li o livro num dia. E no dia seguinte tinha nas mãos Abril Vermelho (ed. Teorema), mais uma obra de Roncagliolo, um thriller policial que coloca o meticuloso Promotor de Justica Félix Chacaltana Saltivana em confronto com o Sendero Luminoso e com a democracia de fachada do estado peruano na época do Presidente Alberto Fujimori. Mas também com ele próprio. Mais um livro que foi impossível largar até o acabar.

Aproximadamente um mês antes de meu ‘encontro’ com Roncagliolo, estava a ler na revista do
Instituto Hemisférico de Performance e Política, e-misférica (Nº 6.2 – Cultura + Direitos + Instituições), o artigo de Gisela Cánepa-Koch “The Public Sphere and Cultural Rights: Culture as Action”. A autora, professora na Pontifícia Universidad Católica del Perú, começava o seu artigo com a polémica à volta da criação do Museu da Memória, uma recomendação da Comissão para a Verdade e Reconciliação peruana, que Alemanha - outro país que quis confrontar o desconforto do seu passado recente - se disponibilizou para financiar. O governo peruano recusou a oferta. Nas palavras do Ministro da Defesa, Antero Flores Aráoz, um país como Peru, onde faltam tantas escolas e hospitais e onde tanta gente passa fome, “no necesita museos”. O escritor peruano Mario Vargas Llosa respondeu com um artigo intitulado “El Perú no necesita museos”. Um texto frontal, equilibrado e comovente, onde se lê: “(…) Eles [os museus] também curam, não os corpos, mas as mentes, da escuridão que é a ignorância, o preconceito, a superstição e todos os defeitos que impedem a comunicação entre os seres humanos, que os tornam amargos e que os levam a matarem-se uns aos outros. Os museus substituem uma visão de vida e das coisas que é pequena, provinciana, mesquinha, unilateral, limitada com uma visão ampla, generosa e plural. Afinam a sensibilidade, estimulam a imaginação, refinam os sentimentos e despertam nas pessoas um espírito crítico e auto-crítico. (...) Os Peruanos precisamos de um Museu da Memória para combater essas atitudes intolerantes, cegas e obtusas que levaram à violência política. Para que o que aconteceu nos anos 80 e 90 não volte a acontecer.”

No seu artigo, Gisela Cánepa-Koch afirma que o debate em si à volta do Museu da Memória é importante e necessário para a construção de uma cultura de cidadania saudável e democrática. Na sua visão, o museu deveria ser um espaço inclusivo, para a expressão das sensibilidades, exigências e formas de acção cultural de vários actores. Ignorar a existência de múltiplas memórias leva-nos também a ignorar as diversas formas de recordar e as formas específicas que cada cultura tem de lidar com a dor. Diz ainda que a linguagem dos museus não é o único mecanismo que possa ser utilizado neste processo e que o próprio museu deveria promover outros meios que lidam com a memória e que possam promover o diálogo, como a literatura, o cinema, as artes visuais, a música, a etnografia. “A reconciliação não tem a ver com o perdão ou a culpa, mas com a possibilidade da vítima se tornar num actor no processo de reconstrução social.”
Uma cena do filme A Teta Assustada
Um dos filmes mencionados no artigo de Cánepa-Koch é A Teta Assustada, de
Claudia Llosa (sobrinha de Mario Vargas Llosa), que foi apresentado em Portugal em Junho passado (ver o trailer). O filme fala de uma doença chamada 'teta assustada', em que a mãe, violada pelos terroristas, transmite ao filho através do leite materno o seu medo e sofrimento. Fausta, a personagem principal, vive permanentemente assustada, desconfiada, e opta pela solidão. Quando a mãe morre, e não tendo dinheiro para tratar do funeral, é obrigada a sair da sua zona de conforto e é ali que finalmente aprende a desafiar o medo. O filme é marcado pela beleza da sonoridade da língua quechua, a língua falada pelos camponeses dos Andes, as principais vítimas da guerrilha peruana.

“Um país que se esquece da sua história está condenado a repeti-la”, lê-se no site da Comissão para a Verdade e Reconciliação. Os peruanos não optam pelo conforto do esquecimento. Os artistas e os intelectuais do país reclamam o seu lugar neste processo penoso. E para citar novamente Mario Vargas Llosa: “Progresso não é apenas muitos colégios, hospitais e auto-estradas. É também, e sobretudo, essa sabedoria que nos torna capazes de distinguirmos o feio do belo, o inteligente do estúpido, o bom do mau e o tolerável do intolerável, a que chamamos cultura”.

Monday 6 September 2010

O 'fardo' que insistimos em carregar

No seguimento do anúncio do governo britânico sobre cortes na área da cultura, o jornal Guardian publicou no dia 25 de Julho um texto de opinião do dramaturgo Mark Ravenhill, cujas obras têm sido apresentadas também em Portugal. A proposta de Ravenhill (ler o texto aqui) é cortar no marketing e no development (development departments no Reino Unido e nos EUA são os departamentos que se dedicam ao fundraising), para não ser afectada a produção artística. De acordo com o autor, o marketing e o development são áreas que não têm mostrado resultados nos últimos anos, apesar de consumirem uma fatia considerável do orçamento das instituições culturais. No seguimento deste raciocínio, Ravenhill refere-se também aos custos com o trabalho de outreach, mais um fardo para as artes, afirma, desde que o governo trabalhista exigiu que elas provassem o seu valor social.

A proposta de Ravenhill é assustadora. Não tanto porque utiliza argumentos pouco precisos relativamente aos resultados demonstrados pelos departamentos de marketing e development no seu país (sobre este ponto, Colin Tweedy, do
Arts and Business, respondeu a Ravenhill no seu artigo de 30 de Julho). É assustadora porque mostra, mais uma vez, que o marketing e a comunicação em geral continuam a ser considerados por muitos artistas acessórios dispensáveis, um fardo, um mal imposto.

Vejo nas afirmações de Ravenhill um criativo centrado em si e na sua arte. E ainda bem. No entanto, vejo também um criativo que conta com o apoio do Estado para poder desenvolver com melhores condições o seu trabalho, mas que se sentiria ofendido se o Estado lhe perguntasse primeiro “E porque é que devíamos apoiá-lo com o dinheiro dos contribuintes?”. Vejo ainda um criativo que quer comunicar através da sua arte e que, apesar de ficar encantado – não ficam todos? - com as salas cheias, não é capaz de reconhecer a importância do trabalho daqueles que procuram tornar a sua arte mais acessível a mais pessoas. Porque o que ele faz é bom e importante. Porque o que ele faz fala por si e todos deveriam ser capazes de o entender. Porque ele não tem que explicar, muito menos provar, nada a ninguém.

Esta atitude de “sou importante porque sim” encontra-se com alguma frequência também nos museus. Onde as funções ‘superiores’ de coleccionar e preservar se sobrepõe as funções ‘menores’ de expor e comunicar. Onde as palavras politicamente correctas sobre ‘portas abertas a todos’ e a relação com a comunidade não se traduzem em práticas concretas de acessibilidade e desenvolvimento de públicos. Onde a palavra ‘marketing’ não se pronuncia, incomoda.

Pessoalmente, vejo o marketing e a comunicação (e dentro deles o development, a educação e o outreach) como partes integrantes e indispensáveis do trabalho desenvolvido pelas instituições culturais. O seu papel é servir a missão dessas mesmas instituições (e também os artistas que elas apresentam, as colecções que elas contém) e fazem-no procurando os apoios financeiros necessários para o seu funcionamento e investindo na criação de relações duradouras com os públicos a que se dirigem, com o objectivo permanente de os alargar e diversificar, para que cada vez mais pessoas possam descobrir e usufruir dessa oferta.

Não pretendo ser simplista com questões complexas. Todos sabemos que o modo de financiamento das artes levanta às vezes questões de liberdade artística. Todos sabemos que os parâmetros para a avaliação do impacto das artes e da cultura em geral na vida das pessoas são objecto de um debate permanente e controverso. Por isso, acho perigosamente simplistas os argumentos de Mark Ravenhill, que vê no marketing um desperdício de dinheiro e no outreach um fardo.

No dia 14 de Setembro estará em Lisboa Michael Kaiser, Presidente do
Kennedy Center for the Performing Arts, para um seminário sobre Gestão Cultural. O seu livro The Art of the Turnaround é um relato delicioso, e ao mesmo tempo assustador, da sua experiência profissional como gestor de organizações culturais que estavam em apuros e que ele ajudou a tornar em instituições saudáveis. Entre elas, a Alvin Ailey Dance Theater Foundation, o American Ballet Theater e a Royal Opera House. O papel do marketing, programático e institucional, foi fundamental. Michael Kaiser não se cansa de o afirmar. Estou curiosa em saber mais sobre a sua relação com artistas e criativos.

Um artista não cria porque isso é útil para a sociedade. Mas, a sociedade (o Estado e os mecenas e os patrocinadores) começou a reconhecer o valor social das artes e da cultura. E cada vez mais pessoas se sentem tocadas, maravilhadas, transformadas pelas experiências vividas, pela descoberta de coisas antes desconhecidas ou difíceis de entender. Não tenho dúvidas que isto não teria acontecido sem o contributo dos departamentos de marketing ou development ou comunicação ou educação ou outreach… Os termos são muitos, a vontade é uma: tornar a arte próxima e acessível. E este é um 'fardo' que insistimos em carregar.