Monday 15 December 2014

A dimensão educativa

Em Outubro passado, durante o intervalo da apresentação do “Requiem” de Brahms pela Saint Louis Symphony, vinte e três manifestantes sentados em várias partes do auditório levantaram-se e cantaram "Requiem para Mike Brown" (o jovem negro desarmado que foi baleado por um polícia em Ferguson). Algumas pessoas ficaram chocadas, outras aplaudiram, o mesmo aconteceu com os músicos no palco. Ninguém interrompeu os manifestantes, ninguém chamou a polícia. Talvez porque o que aconteceu fez sentido, naquele lugar, naquele tempo, naquele contexto específico. Sendo que a música era parte integrante dos protesto em Ferguson, esta, de acordo com um dos organizadores, foi uma tentativa de "falar com um segmento da população que tem o luxo de estar confortável. Temos que fazer uma escolha de apenas ficarmos na nossa zona de conforto ou falarmos de algo que é importante. Não está certo simplesmente ignorá-lo" (leia o artigo completo).


As recentes mortes de negros pela polícia em diferentes cidades dos Estados Unidos provocaram uma intensa reflexão entre as instituições culturais no país sobre o seu papel. Num recente comunicado de bloggers de museus e de outros profissionais da cultura em relação a Ferguson e outros eventos relacionados, lê-se:

"Os recentes acontecimentos, desde Ferguson a Cleveland e Nova Iorque, criaram um momento de transição. As coisas precisam de mudar. Novas leis e políticas irão ajudar, mas qualquer movimento em direcção a uma maior compreensão e comunicação cultural e racial deve ser apoiado pela infra-estrutura cultural e educativa do nosso país. Os museus fazem parte desta rede educativa e cultural. Qual deve ser o nosso papel (papéis)? (...) Onde é que os museus se encaixam? Alguns poderiam dizer que só os museus com colecções específicas afro-americanas têm um papel, ou talvez apenas museus situados nas comunidades onde estes eventos ocorreram. Como mediadores culturais, todos os museus devem comprometer-se em identificar de que forma podem relacionar-se com questões contemporâneas relevantes, independentemente da sua colecção, foco ou missão. (...) Até agora, apenas a Association of African American Museums emitiu uma declaração formal sobre as questões mais amplas relacionadas com Ferguson, Cleveland e Staten Island. Acreditamos que o silêncio de outros museus envia uma mensagem de que estas questões são uma preocupação apenas para os afro-americanos e os museus afro-americanos. Sabemos que este não é o caso."

Em Agosto passado, uma séria controvérsia envolveu a decisão do Tricycle Theatre de não receber o UK Jewish Film Festival, pela primeira vez em oito anos. O motivo foi que o festival tinha o apoio da Embaixada de Israel em Londres e, dado que naquele momento estava em desenvolvimento a ofensiva em Gaza, o Conselho Consultivo considerou que “não seria apropriado aceitar o apoio financeiro de qualquer agência governamental envolvida". O Teatro ofereceu-se para fornecer financiamento alternativo, mas o Festival não aceitou (leia o artigo completo). O conflito em Gaza foi também a razão pela qual artistas participantes na Bienal de São Paulo este ano apelaram aos organizadores (apoiados posteriormente pelos curadores da Bienal) para devolver o financiamento do Consulado Israelita. As negociações mais tarde resultaram na remoção do logótipo do Consulado dos principais patrocinadores e na sua associação apenas aos artistas israelitas que receberam este apoio financeiro específico (leia o relatório completo).

Podemos concordar ou discordar com as decisões tomadas por estas organizações. Mas o questionamento em relação ao papel das instituições culturais na sociedade de hoje, especialmente o seu papel educativo, deve ser permanente, constante. Tal como Rebecca Herz, acredito que estas não devem agir independentemente da sua missão (como é sugerido no acima referido comunicado dos bloggers de museus norte-americanos), mas qualquer colecção de museu ou temporada de teatro / orquestra / festival pode ter uma ligação à vida contemporânea e ajudar a moldar o tipo de sociedade que precisamos ou sonhamos. Como o trabalho de muitos artistas contemporâneos é uma resposta a assuntos da vida contemporânea, é comum encontrarmos este género de ligações, assim como uma fértil reflexão à volta deles, na programação de teatros, companhias e galerias (o Teatro Maria Matos, o Programa Gulbenkian Próximo Futuro ou o alkantara festival são os primeiros que me ocorrem entre as entidades cuja programação acompanho em Portugal, mas há outros). Os museus ou as orquestras que apresentam obras  que não são contemporâneas não estão muito habituados a procurar ligações entre as suas colecções ou concertos e a vida contemporânea ou, se o fazem, não se torna perceptível para mim. Muitas vezes pergunto-me “Qual o propósito desta exposição ou deste concerto?”, “Porque é relevante?”, “Como é que isto se relaciona com a sociedade portuguesa contemporânea e com a sua diversidade?” (penso mais uma vez no trabalho inspirador da Orchestra of the Age of the Enlightenment...)

Isto leva-me mais uma vez para uma questão recorrente neste blog: “accountability” e responsabilidade. Não vejo as instituições culturais como ilhas, distantes do que está a acontecer no seu redor. Acredito que devem tornar claro para as pessoas de que forma o que têm a dizer ou mostrar pode ser relevante para elas; devem partilhar publicamente a sua visão e objectivos e assumir a responsabilidade pelo seu cumprimento; devem ser um fórum público, onde as pessoas podem encontrar conforto, mas também o desconforto necessário. Têm claramente um papel educativo (no sentido de fornecer o que os gregos antigos chamavam "paideia"), um papel que eu não faria necessariamente depender do que acontece (ou não acontece) na escola ou em casa e um papel que não depende, em primeiro lugar, do serviço educativo, mas sim, do/a director/a.

Dois directores de museus e um curador estarão connosco na próxima terça-feira, 16 de Dezembro, na conferência da Fundação Gulbenkian "Que lugares para a educação? A dimensão educativa de instituições culturais" (mais informações). Charles Esche (Director do Van Abbemuseum e um dos curadores da Bienal de São Paulo deste ano), David Fleming (Director dos National Museums Liverpool e Presidente da Federação Internacional de Museus de Direitos Humanos) e Delfim Sardo (Curador, Professor Universitário e Ensaísta) irão desafiar-nos a pensar sobre as nossas responsabilidades e práticas no actual contexto social e político.


Nota: Para quem não puder estar em Lisboa, a conferência será transmitida em livestreaming. Há uma série de artigos, posts, textos de opinião e entrevistas na página da conferência (em “Oradores”, “+Reflexão” e “+Info”).


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Monday 1 December 2014

Uma apologia da crítica



O pensamento crítico é uma função mental e emocional em que alguém - com base nos seus conhecimentos e a informação disponível - decide o que pensar ou fazer em relação a uma situação específica. O resultado é uma opinião fundamentada. É subjectiva. Pode ser positiva ou negativa. Deve ser intelectualmente honesta.

Há uma tendência de associar aspectos exclusivamente negativos à palavra "crítica" e encará-la como um ataque. É por isso que muitas vezes uma crítica provoca reacções como "criticar é fácil ..."; ou um precipitado esclarecimento por parte do ‘atacante’, como "por favor, não aceite isso como uma crítica"; ou até mesmo a necessidade de declarar que o 'atacante' não tem nada pessoal contra o 'alvo' do seu ataque.

Há duas semanas, reagi – de forma crítica - à entrevista do director de um museu nacional e, especificamente, a uma afirmação a respeito de uma questão que é de extrema importância para mim na nossa profissão. Isto significa que, com base nos meus conhecimentos e nas informações disponíveis, eu decidi o que pensar dessa afirmação e partilhei a minha opinião. Outras pessoas reagiram à minha crítica, concordando ou discordando ou adicionando outros aspectos no processo de pensamento crítico. Num determinado momento, no entanto, uma colega interveio dizendo: "Não se fala mal dos colegas no Facebook.." Desde aí, este comentário tem ocupado o meu pensamento.

Na minha opinião, há uma diferença distinta entre falar mal e criticar. Falar mal só pode ser negativo e há nisso algo muito pessoal, algo muito sentimental, algo que acaba por neutralizar a força dos argumentos e afectar seriamente a credibilidade do crítico. Falar mal não é construtivo, pode ser temporariamente "terapêutico" para quem o faz, mas é ineficaz.

A crítica é algo diferente. A crítica é o desejo de estar ciente e atento, de dar aos nossos conhecimentos bom uso, de contribuir para algo melhor (por meio de apreciações positivas ou negativas) e também de assumir responsabilidade. A crítica não é fácil.

O pensamento crítico é muito pouco partilhado em público, com a excepção, talvez, do que está relacionado com o governo e os políticos em geral - o que me faz pensar que talvez não nos sintamos responsáveis pela vida política deste país, e assim, o criticar (ou o falar mal) torna-se fácil... Em relação ao resto, e especificamente no sector cultural, a crítica e o debate público sobre decisões, posições, projectos são bastante limitados. Os profissionais da área podem estar a sentir que tudo isto os ultrapassa e este sentimento de impotência faz qualquer intervenção parecer escusada. Outros podem não gostar da exposição que a crítica pública traz, preocupados com relações pessoais / profissionais que tendem confundir-se nessas situações. Outros ainda podem não gostar de assumir a responsabilidade de criticar publicamente. Assim, como a crítica é vista como algo negativo, como um ataque, é melhor ser mantida à porta fechada, "em família", ou, melhor ainda, não ser expressa. Algumas pessoas consideram que isto não deveria acontecer nas redes sociais. (Não consigo deixar de lembrar que, há uns dois anos, quando escrevi positivamente a propósito de uma entrevista desse mesmo director de museu, ninguém me disse que não deveria fazê-lo no Facebook. Suponho que não foi considerado crítica).

Invejo os bloggers culturais nos EUA e no Reino Unido, em especial, que contribuem para o debate aberto e a crítica de todos os assuntos importantes, mantendo o diálogo vivo, a sua voz ouvida e o público interessado informado. Eles são demasiado inteligentes para cair na armadilha do ‘falar mal’. Este é um acto de responsabilidade. Este deve ser um acto esperado numa democracia. Todos os assuntos importantes devem ser discutidos abertamente, os aspectos positivos e negativos devem ser amplamente debatidos, a responsabilidade deve ser assumida. O rumo de todas as instituições culturais públicas é um assunto que diz respeito a todos, a começar pelos profissionais da área.

O que me leva a um outro ponto: a crítica está associada à “accountability”. Quando Nina Simon completou o seu primeiro ano como directora do Santa Cruz Museum of Art and History, ela escreveu o post Primeiro ano como directora de museu... Sobrevivi!. Tanto a “accountability” como a crítica resultam de um profundo sentido de responsabilidade e o texto de Nina é um perfeito exemplo do que gostaria que acontecesse aqui. Mas não acontece. Num país onde não é esperado que os que ocupam cargos públicos sejam “accountable” - ou seja, definam claramente os seus objectivos, expliquem regularmente o que estão a fazer, como, porquê e se são bem sucedidos – a crítica pode, realmente, fazer menos sentido e nós entramos num ciclo vicioso. Um ciclo onde poucas opiniões fundamentadas são ouvidas publicamente e têm pouco impacto; onde as coisas acontecem de qualquer maneira e apesar de tudo; e onde o sucesso é declarado... apesar de tudo. Até consideramos normal que alguém que ocupa um cargo público esteja a defender o indefensável, possa não estar a dar uma opinião honesta, por dever aos seus superiores. Um ciclo vicioso, um jogo, onde sacrificamos  a nossa honestidade intelectual. Com que benefício? E com que custo?


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Monday 17 November 2014

Isto é publicidade

O que é geralmente entendido como "publicidade" pelas instituições culturais é um anúncio num jornal ou numa revista com base no cartaz de uma exposição ou espectáculo e que informa sobre o quê - onde - quando. Às vezes, esse conceito é transportado para um spot televisivo, onde é feita alguma “animação” usando a imagem e letras do cartaz, e onde a informação sobre o quê - onde - quando é também transmitida por via oral. Isto é, factos.

No ano passado, vi no You Tube o spot publicitário de uma exposição do Museu Nacional Checo em Praga, que me fez pensar. Estava relacionado com a exposição em 2008 do documento original do "Acordo de Munique", que tinha sido assinado 70 anos antes, em 1938. Este foi um acordo entre Grã-Bretanha, Alemanha, Itália e França, que permitiu que territórios checoslovacos de língua alemã fossem entregues a Hitler.


Isto não é definitivamente o spot televisivo habitual de o quê - onde - quando. Temos aqui um museu a transmitir uma mensagem e a dirigir um convite tendo um bom conhecimento do contexto social – político – cultural em que se insere e com sentido de humor. Curto, intrigante e bastante ousado, considerando o que os museus, em geral, nos têm habituado. O spot comunica com os cidadãos da República Checa e com todos nós, sem serem necessárias palavras.

Mais recentemente, fiquei muito agradavelmente surpreendida com um anúncio "Made in Portugal". A terceira edição do Festival de Teatro de Montemor-o-Novo foi organizada pela Câmara Municipal de Montemor-o-Novo, juntamente com uma série de grupos de teatro locais, contrariando as dificuldades financeiras sentidas no sector cultural, apresentando-se por toda a cidade e com o objectivo - entre outros - de envolver a população local, independentemente da sua idade, educação, conhecimentos ou hábitos prévios de assistir a espectáculos de teatro.



O sentido de humor neste spot voltou a conquistar-me. A segunda coisa em que pensei foi que “soou” verdadeiro, considerando a missão e os objectivos do festival, especialmente a preocupação em envolver a comunidade local, que se torna aqui no protagonista.

O terceiro exemplo que gostaria de apresentar é também "Made in Portugal" e é mais do que um anúncio, é o que se pode chamar uma campanha. "Maria & Luiz" é o esforço conjunto dos dois teatros municipais de Lisboa (Maria Matos e São Luiz) para forjar uma relação com as pessoas, através da criação de um cartão que custa €10 e que oferece 50% de desconto ao longo de um ano. A campanha é composta por sete pequenos filmes.


Sete pequenos filmes, sete histórias de romance, vanguarda, drama, música, expressão, encanto, fantasia. Os ingredientes do quotidiano de pessoas muito diversas, reflectida de volta para nós quando nos encontramos numa sala de teatro.

O objectivo da publicidade é construir mensagens capazes de influenciar comportamentos em relação a um produto ou a uma ideia. Agora que coloquei estes três exemplos juntos, percebo que o que têm em comum, para além de sentido de humor, é que estão centrados nas pessoas com as quais desejam comunicar. Não factos, pessoas. A história não é apenas o documento ou o festival ou o cartão de desconto; a história não é contada pelo curador, pelo artista ou pelo gestor. As pessoas comuns tornam-se nos protagonistas e narradores. As pessoas comuns são a razão de existir das instituições culturais. É esta a ideia que eu vejo por trás do conceito, é esta a mensagem. Num meio habituado a comunicar com os “seus” – com aqueles que já fazem parte, com aqueles que “percebem” – fico feliz por ver que alguns de nós optam por um outro caminho, por uma outra relação.


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Monday 3 November 2014

Será a Giselle uma curadora?

Giselle Ciulla, Clark Art Institute (imagem retirada do website)
Serão todas as pessoas que se sentem fascinadas com a medicina, que seguem as notícias, que ficam maravilhadas com os avanços registados e que os compartilham com outras pessoas, "médicos"?

Será uma pessoa deslumbrada com as estrelas, que lê sobre elas, que tem um telescópio e que faz observações, um "astrónomo"?

Serão todas as pessoas que gostam de arte, que já têm algumas peças favoritas e que desejam partilhar e discutir os sentimentos e as ideias que estas obras lhes suscitam, "curadores"?

O que distingue um amador de um profissional e uma pessoa interessada de um amador? Esta não é propriamente uma questão original, mas o contexto em que os museus operam hoje em dia coloca-a novamente em cima da mesa.

Quando li pela primeira vez sobre o projecto uCurate do Clark Art Institut em Williamstown, EUA, fiquei muito entusiasmada com a ideia. Escrevi na altura que este é também o papel dos museus na sociedade, um papel que permite o envolvimento, a participação activa, que reconhece que há mais do que uma versão da "verdade" e que cria um lugar para estas serem partilhadas. Houve uma coisa, porém, que me fez sentir mais crítica: o facto da Giselle Ciulla, uma menina de 11 anos cuja proposta ganhou o concurso de 2012, ser mencionada no site do Instituto como "curadora".

Será a Giselle uma curadora? Será que o facto de ela ser uma jovem com interesses, ideias, necessidades, opiniões, que escolheu uma série de obras do acervo do Instituto e fez delas uma exposição, a torna curadora? Ou será que um curador é uma pessoa que – para além de ideias, necessidades e sentimentos – tem o conhecimento técnico que pode ajudar a fazer das ideias e das necessidades exposições interessantes, inspiradoras e relevantes, espaços abertos para serem discutidas mais que uma verdades, com a ajuda hoje em dia de pessoas que desejam ser envolvidas? A Wikipedia é um projecto colaborativo impressionante, para o qual as pessoas podem contribuir e onde podem partilhar os seus conhecimentos. Por trás das entradas, no entanto, há "curadores", que garantem que a informação partilhada é precisa, caso contrário, o projecto perderia a sua credibilidade. Que analogias poderíamos encontrar aqui com o mundo dos museus e os seus projectos de “crowdsourcing”?

Num artigo intitulado What is photography when everyone´s a photographer?, Joan Fontcberta é citado a dizer "Tirar uma fotografia hoje é fácil e pouca atenção é dada ao ofício. Isto significa que a qualidade da arte já não reside na fabricação, mas sim, na prescrição de significado". Quem é responsável por prescrever um "sentido" nos museus e por ajudar a cumprir as intenções? Ed Rodley afirma no seu post ’Outsourcing’ the curatorial impulse: “Se tivesse que caracterizar a essência da curadoria hoje em dia, seria ‘criação de sentido’”.

Longe de defender a figura do "omnisciente e todo-poderoso curador" e sendo muito a favor de todas as iniciativas que procuram envolver as pessoas interessadas no trabalho de museu (para que o que neles se apresenta possa ser o resultado de uma ampla participação e dos contributos de várias pessoas, e assim, mais relevante), não chegaria ao ponto de não distinguir ou de confundir os papéis dos envolvidos.

Num artigo recente intitulado Everybody's an art curator, Elen Gamerman aponta algumas das principais questões na debate actual: "A tendência está a provocar um crescente debate entre artistas, curadores e outros profissionais do mundo da arte sobre tudo, desde onde traçar a linha entre amadores e especialistas até o que constitui uma exposição “crowdsourced”. Até onde podem ir museus em delegar opções ao público? Quão firmemente devem controlar a votação sobre o conteúdo de uma exposição? E em que momento é que um museu começa a parecer mais um centro comunitário?".

Actividades com a comunidade no Santa Cruz Museum of Art and History (imagem retirada do blog de Nina Simon, Museum 2.0)
Boa pergunta ... Uma pessoa que frequenta o curso que estou actualmente a dar sobre Comunicação em Museus, depois de ver a TED Talk de Nina Simon Opening up the museum, perguntou: "O museu [Santa Cruz Art and History Museum, onde Nina Simon é a directora] integra os trabalhos feitos pelas pessoas que frequentam as suas oficinas nas suas colecções?". E eu gostaria de acrescentar: "Se sim, ficam com todos eles, com alguns, quais são os critérios?". Sou uma grande admiradora de Nina Simon e da sua visão sobre museus participativos, mas não devemos limitar a nossa avaliação do que ela está a tentar fazer a ganhos financeiros e número de visitantes. Há muito mais que isso e a Nina está a fazer aquilo que muitos outros directores de museu deveriam fazer: arrisca, experimenta, avalia.

O contexto em que os museus funcionam hoje é específico, mas toda esta situação não é propriamente nova. Acontece sempre que haja uma mudança significativa no ambiente externo (social, político, tecnológico). Há uma necessidade de repensar as coisas, planear de forma diferente, adaptar. Penso que o ambiente actual exige museus que sejam tanto sobre o presente como sobre o passado. Exige curadores que estejam preparados para trabalhar não apenas para os seus pares, mas também para as pessoas "normais" que desejam desfrutar o museu e que o vêem como parte das suas vidas e comunidades. Sim, isso significa prestarmos atenção e sermos sensíveis às mudanças que estão a acontecer. Sim, isso significa partilhar a autoridade e criar um espaço para diferentes visões do mundo. Sim, isso significa experimentar e correr riscos. Sim, isso significa desenvolver novos programas e capacidades. Não, isso não significa que os museus devem tornar-se em algo diferente, algo que não são (de centros comunitários a centros de saúde, serviços correctivos de jovens, etc.). Não, isso não significa que todos somos curadores. Não, isso não significa que possamos confundir projectos de “crowdsourcing” com projectos "dá-às-pessoas-o-que-elas-pedem".

Então, como fazer isso? Penso que os museus e os profissionais que neles trabalham devem centrar-se na sua posição competitiva. Devem concentrar-se no que os torna especiais, diferentes de outras instituições. Devem capitalizar os seus pontos fortes e desenvolver as capacidades necessárias para enfrentar e trabalhar com novas realidades. O objectivo final é permanecer vivo e relevante. E para isso é preciso também alguma atitude.


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Monday 20 October 2014

A não perder? E... porquê?

OAE, temporada 2014-2015 (imagens retiradas da página de Facebook da OAE)

Tornou-se muito comum, quando se promove um evento cultural, de mencionar o quê - quando – onde e de seguida acrescentar a frase mágica "A não perder!". Às vezes, acrescenta-se mais duas linhas, basicamente para nos informar que o artista x é o melhor no seu campo ou mundialmente conhecido. A julgar pelas informações que nos são enviadas por uma série de instituições culturais, não há nada que possamos perder e há uma série de artistas que são os melhores no seu campo e mundialmente conhecidos. A primeira afirmação não é verdadeira e a segunda não é precisa.

Considerando a crescente oferta de eventos e actividades culturais, as pessoas têm muito por onde escolher. Para algumas pessoas, dada a sua experiência e conhecimentos, a escolha é mais fácil, pois não precisam que outros lhes digam o que devem ver, o que não podem perder. Para outros, menos informados sobre uma série de artistas e o seu trabalho, há alguma necessidade de orientação. Algumas informações adicionais que possam ajudá-los a compreender o que há de importante e relevante para eles, o que é que eles, realmente, não gostariam de perder.

Infelizmente, a declaração "A não perder" - a menos que se trate de um amigo, alguém em cuja opinião confiamos - não serve este propósito, não chega. Afinal, todos dizem o mesmo. Da mesma forma, ao mencionar que o/a artista é o/a melhor não é convincente o suficiente para quem não o/a conhece e não provoca necessariamente um desejo de conhecer melhor o seu trabalho. A verdade é que há uma série de artistas que são muito bons no que fazem. Existe realmente um "melhor"?

Assim, o que muitas pessoas pensam é "Porquê?". Porque é que não posso perder o concerto, o jogo, a exposição? O que há de tão importante, tão especial, tão diferente, tão inovador, tão tocante, tão atraente, tão bonito, tão provocante, tão relevante que vai valer a pena investir o meu tempo e dinheiro para vê-lo em vez de ver ou fazer outra coisa?

OAE, temporada 2014-2015 (imagens retiradas da página de Facebook da OAE)

Isto representa um grande desafio para as pessoas que trabalham na comunicação. Há uma necessidade de ir além do habitual, além da informação óbvia e fácil sobre o quê - quando - onde, e de procurar aquele género de informação - bem como a sua representação visual - que pode esclarecer, surpreender, intrigar e apelar às pessoas com quem as instituições culturais desejam comunicar. Há também uma necessidade de escolher os canais adequados para tornar esta informação disponível e facilmente partilhável.

É com grande prazer que tenho vindo a acompanhar o lançamento da campanha da temporada 2014-2015 da Orchestra of the Age of theEnlightenment (OAE). Algumas informações sobre as suas origens antes de falarmos da campanha:

A OAE foi criada na década de 1980 com o objectivo de começar do zero, de repensar toda a instituição chamada "orquestra": as suas regras, os seus códigos, as suas restrições (vejam a sua curta biografia). Na sua primeira declaração de missão afirmavam que a OAE é para "evitar os perigos implícitos no tocar como uma questão de rotina; procurando opções criativas exclusivamente comerciais; ensaiando pouco; dando uma ênfase excessiva em certas opções, imposta por um único director musical; tornando os objectivos de gravar mais importante do que os objectivos criativos ". [Wallace, Helen (2006). Spirit of the Orchestra]. Hoje, lê-se no website, "Ainda promove a mudança e ainda se destaca pela excelência, diversidade e experimentação. E, mais de duas décadas depois, ainda não há uma outra orquestra no mundo parecida com esta."

OAE, temporada 2014-2015 (imagens retiradas da página de Facebook da OAE)

Esta filosofia é também aplicada na relação que a OAE procura criar com as pessoas, e especialmente com os mais jovens. Numa altura em que várias orquestras lutam para renovar o seu público e permanecer vivas e relevantes - sem saber bem como fazê-lo -, a OAE há muito que investe neste género de relação. Entre as suas várias iniciativas, gostaria de destacar "The Night Shift” (O Turno da Noite), uma série de concertos nocturnos, informais e descontraídos, que quebram uma série de tradições que tendemos a associar aos concertos de música clássica. Mais de 80% das pessoas que frequentam esses concertos têm menos de 35 anos e cerca de 20% estão a frequentar um concerto de música clássica pela primeira vez. Oiçam o que elas têm a dizer:




Há um tom fluido, descontraído, acessível na forma como a OAE comunica com as pessoas. Torna-se óbvio que a sua missão e objectivos estão claros para eles, são sinceros, gostam de partilhar o que mais amam com todos aqueles que possam estar interessados ​​(incluindo aqueles que não sabem que poderiam estar interessados​​). A sua visão clara reflecte-se na sua linguagem (verbal e visual), bem como nas plataformas que usam para comunicar (por exemplo, um canal Vimeo muito rico em conteúdos e uma página de Facebook muito viva e envolvente).


OAE, temporada 2014-2015 (imagens retiradas da página de Facebook da OAE)

A campanha da nova temporada tem um claro e forte visual activista. Os músicos fazem parte dela, são os protagonistas. Os cartazes nas ruas apresentam um visual contemporâneo, lindamente integrado no seu ambiente urbano. As mensagens curtas que encontramos nos cartazes são complementadas com depoimentos dos músicos e outros membros da equipa que falam sobre a sua peça favorita da temporada. O trompista da OAE, Martin Lawrence, diz: "Estou ansioso em relação a este concerto [a Sinfonia do Novo Mundo], principalmente por causa da energia maníaca e a espontaneidade do maestro Adam Fischer. Estou fascinado em saber qual será a sua abordagem a estas peças de cavalo-de-guerra - não vai ser normal ... Espero muito drama, pianissimos monstruosos e ficar na borda da minha cadeira.” Conhecem muitas orquestras de música clássica que comunicam assim?

A OAE quer ser e permanecer relevante. Não assumem que as pessoas sabem, estão lá para tornar tudo mais claro, mais compreensível, mais agradável. Eles são acessíveis, apaixonantes, humanos. Têm um bom sentido de humor e não têm medo de mostrá-lo. Não dizem às pessoas "Não podem perder-nos" ou "Somos os melhores". O seu muito sugestivo lema é "Nem todas as orquestras são o mesmo" ... E ooh ... eles deixam certamente claro para mim o quanto devia lamentar por estar a perdê-los!


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Monday 6 October 2014

Preservar para quê?

Imperial War Museum

No meu segundo ano em Londres, em 1994, da janela da minha cozinha via a cúpula do Imperial War Museum (IWM). Era uma vista bonita de um museu bonito. Para a surpresa de muitas pessoas, este é o meu museu favorito em Londres.

No caminho para o primeiro Congresso de Museologia Militar, estava a pensar que nunca considerei o Imperial War Museum, que ia fazer uma apresentação nesse dia, um museu militar. Para mim, o IWM é um museu de pessoas (não deveriam todos sê-lo?). Um museu de militares e de civis, de homens e de mulheres, de adultos e de crianças, de seres humanos e de animais (estou a lembrar-me de algumas das exposições que lá vi). É muito mais do que datas, batalhas, tácticas, tipos de armas e tratados. É um museu que conta as histórias de pessoas que foram afectadas pela guerra.


Postal promocional das novas galerias da Grande Guerra no Imperial War Museum

A apresentação do IWM estava incluída num painel que iria debater os Museus Militares e o Centenário da Grande Guerra. A primeira oradora foi Maria Fernanda Rollo, professora universitária e coordenadora do projecto Portugal 1914. Trata-se de um portal na Internet com conteúdos muito ricos, recolhidos com a colaboração de várias instituições e profissionais de vários meios, assim como com a colaboração do público em geral. O objectivo é a promoção de uma cidadania activa e empenhada na promoção da defesa, preservação e salvaguarda de um património colectivo, assim como sensibilizar a população em geral para a importância da memória e da sua preservação. “Este é um museu virtual, que conta histórias, onde aprendemos com as afectividades. É um museu vivo”, disse Maria Fernanda Rollo.


Postal promocional das novas galerias da Grande Guerra no Imperial War Museum

Sorri quando ouvi esta afirmação. Porque, implicitamente, Maria Fernanda Rollo estava a revelar a sua percepção dos museus: espaços mortos, espaços onde não se contam histórias, espaços onde a afectividade não tem lugar. Esta é uma percepção amplamente partilhada por várias pessoas na nossa sociedade a vários níveis (lembram-se porque é que a Paula Rego quis que o museu que alberga as suas obras em Cascais se chamasse “Casa das Histórias” e não “museu”?). Mas sorri também ao ouvir a minha amiga Gina Koutsika fazer a sua animada e estimulante apresentação sobre as iniciativas do IWM para a comemoração do centenário. A Gina mostrou-nos como um museu pode (e deve) ser vivo, cheio de histórias e de sentimentos, próximo das comunidades que pretende servir. Este não é um museu no mundo virtual, é real, existe.


Postal promocional das novas galerias da Grande Guerra no Imperial War Museum

Quando o debate começou, lembrei-me de uma outra visita, há quase 10 anos, ao In Flanders Fields Museum (Ypres, Bélgica). Mais um museu notável, na cidade que esteve no caminho do exército alemão e que ficou completamente destruída durante a guerra. Um museu cheio de histórias humanas, onde o visitante pode assumir a identidade de um dos habitantes da cidade e seguir a sua história pessoal durante a guerra. O que mais me marcou naquela visita, e que não voltei a encontrar em nenhum outro museu, foi a forma simples como se mostrou que um objecto pode ser muitas histórias. Através da exposição de um monte de lenços brancos, o museu falava-nos dos múltiplos usos daquele objecto: podia ser um sinal de rendição; ou uma forma de alguém se proteger dos gases letais tapando o seu nariz; ou algo para tapar os olhos de quem enfrentava o esquadrão da morte.


In Flanders Fields Museum

Lembrei-me ainda do Musée de la Grande Guerre du Pays de Meaux (França) e do seu maravilhoso projecto “Léon Vivien”. Os bons museus encontram formas imaginativas de usar as suas colecções, dando-lhes vida e criando ligações com as pessoas. Léon Vivien é um personagem fictício, um soldado, cuja história é contada numa página especial no Facebook através de vários objectos, seguida e comentada por milhares de pessoas. Os bons museus sabem sê-lo tanto no mundo real como no mundo virtual.



A questão da memória surgiu no debate quando o Tenente-General Mário de Oliveira Cardoso, outro dos oradores neste painel, citou o filósofo, ensaísta e escritor George Santayana: “Quem não se lembra do passado está condenado a repeti-lo”. Lembrar o passado, preservar o conhecimento histórico. Sim, é este o objectivo de várias instituições, incluindo o dos museus. Mas porquê? Com que propósito? Estará a ser alcançado? Estarão essas histórias a ser preservadas e lembradas simplesmente para se criar um repositório ou porque podem criar ligações ao presente, a vidas humanas actuais, não apenas as nossas mas as dos outros também? Poderão as histórias preservadas e lembradas ajudar-me a criar uma ligação ao Outro, fazer a sua história minha?

Na Europa, não faltam museus militares, de história, da primeira e segunda guerra, do holocausto. Todos têm como objectivo preservar o passado histórico e mostrar a importância da memória. “Nunca mais” é o lema que encontramos em muitos deles. Estarão estes museus conscientes que recentemente, no seguimento das atrocidades cometidas em Gaza, voltou a ser ouvido em algumas cidades europeias o grito “Morte aos Judeus”? Terão reagido? Terão aproveitado a oportunidade para dar bom uso às suas colecções e mostrar para que serve preservar o passado histórico e ter memória? Não é precisamente num momento como este que um museu deveria intervir publicamente e contribuir para esclarecer e formar a opinião pública? Caso, contrário, preservar para quê?


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Entrevista com Ricardo Brodsky, director do Museo de la Memoria (Santiago de Chile)

Le MuCEM ne doit pas devenir un musée pour touristes
Entrevista com Jean-François Chougnet, director do Musée des Civilisations de l´Europe et de la Méditerranée (Marselha)

Who funds the arts and why we should care
Entrevista com Charles Esche, curador da Bienal de São Paulo


Monday 22 September 2014

Gay, preto, deficiente... podemos parar de falar nisso?

Gay Jazz Festival, Filadélfia (Foto: Bruno Bollaert, retirada do Examiner)

Em Maio passado, o magazine Philly anunciou que ia ser feita História com a organização do primeiro Gay Jazz Festival nos EUA. O anúncio intrigou-me. Pareceu-me que a História estava provavelmente a dar um passo atrás. Visitei o website do William Way LGBT (Lesbian-Gay-Bisexual-Transgender) Community Center que ia receber este evento – e estou a citar - “revolucionário” e procurei mais informações. Lia-se: “Filadélfia tem uma tradição como uma grande cidade da música. Somos também uma cidade que afirma as vidas das pessoas LGBT. A organização do primeiro LGBT jazz festival na América do Norte oferece a oportunidade de apresentarmos a rica e vibrante cultura da nossa cidade. (…) O festival marcará o fim do ciclo anual de música do William Way LGBT Community Center e irá destacar a intersecção entre a orientação sexual e a identidade de género dentro da comunidade do jazz.”

Acredito que um princípio importante no encontro com outras pessoas, outras culturas, é ouvir primeiro as próprias pessoas, tentar conhecê-las e entendê-las melhor; os seus pensamentos, as suas experiências de vida, as suas sensibilidades, as suas necessidades e convicções. Assim, estou certa que o Centro deve ter tido uma ideia muito clara sobre a necessidade de um gay jazz festival, mas mesmo assim, mesmo depois de consultar o seu site, não era claro para mim porque é que uma iniciativa como esta havia de ser considerada “visionária”. Porque é que músicos de jazz gay precisam de um gay jazz festival para apresentarem o seu trabalho? Isto ajudaria a sensibilização sobre os direitos das pessoas LGBT? Seria porque não lhes é normalmente dado espaço nos festivais de jazz organizados nos EUA e no estrangeiro? Porque é que o objectivo de um festival de música deveria ser destacar “a intersecção entre a orientação sexual e a identidade de género dentro da comunidade do jazz” (e como é que isto seria feito?) e não simplesmente os artistas e a sua música?

Faço muitas vezes estas mesmas perguntas em relação aos artistas com deficiência. As pessoas que com eles trabalham e as associações que os representam dizem que normalmente não vêem o seu trabalho apresentado nos habituais festivais ou como parte da programação dos espaços culturais em geral. O seu trabalho é considerado de inferior qualidade e muitas vezes, quando um espaço programa um espectáculo ou uma exposição, considera que já cumpriu as suas obrigações para com os artistas com deficiência e não é necessário mais ao longo da temporada. Está é, sem dúvida, uma realidade. Mas estaremos a avançar e estaremos de alguma forma a resolver o problema organizando festivais ou exposições “especiais” de artistas com deficiência?

Michelle Ryan, "Intimacy", Unlimited 2014 (imagem retirada do website do Unlimited)

Entre 2 e 7 de Setembro houve mais uma edição do festival Unlimited em Londres, um grande evento, com encomendas especialmente feitas para serem aí apresentadas. Um evento que “celebra a visão artística e a originalidade dos artistas com deficiência”. Num país como o Reino Unido, que, comparado com outros, já deu vários passos necessários no sentido do respeito dos direitos das pessoas com deficiência, qual é o papel de um festival como o Unlimited hoje em dia?

Entre 13 de Setembro e 15 de Outubro, o Musée de Grenoble organiza o Mês da Acessibilidade. Lê-se no website que o museu convida as pessoas com deficiência a descobrir as suas exposições e actividades ao longo do ano, disponibilizando a ajuda necessária. Sendo assim, qual o objectivo deste mês “especial”?

Considerando estas e outras iniciativas, pergunto-me quem é que assiste a estes festivais, exposições, actividades e o que é que acontece depois? Será que atraem apenas os já “convertidos” ou um público mais amplo? Serão os artistas gay ou negros ou com deficiência mais reconhecidos como artistas pelo sector e pelo público? Estaremos a seguir em direcção a uma representação inclusiva, onde serão vistos em primeiro ligar como artistas, ou os curadores e o público vão na mesma para assistir a algo “especial”, circunscrito num tempo e espaço específico, um tempo e um espaço “próprio”? Ajudam-nos estes festivais a aprender a preocupar-nos mais e mais com a arte e menos e menos com o “resto”?

Já escrevi no passado sobre a promoção de espectáculos que envolviam artistas com deficiência onde o público não foi “avisado” deste facto. As pessoas compraram os seus bilhetes, viram o espectáculo, podem ou não ter sentido algum desconforto e algumas acabaram agradavelmente surpreendidas com a qualidade do que tinham acabado de ver. Não terá sido este um passo em frente? Um passo no sentido de aprender que “o resto” não fazia, realmente, diferença? E o nosso objectivo – o objectivo dos artistas, programadores, curadores, profissionais da educação e da comunicação, associações de pessoas com deficiência – não devia ser trabalhar no sentido de tornar a diferença “mainstream”?



Quando li o livro “Museums and Migration” (ed. Laurence Gouriévidis) este verão, gostei de ver que este tinha sido o princípio seguido em algumas exposições de museus em países como o Canadá, a Austrália ou o Reino Unido, países com altos níveis de imigração e que conheceram por vezes estratégias governamentais que tinham como objectivo lidar com “a tensão entre o reconhecimento de uma sociedade culturalmente diversa e a necessidade de articular uma identidade nacional que projecta uma nação culturalmente coesa” (Mary Hutchison and Andrea Witcomb, p.228). Estes museus foram além do festival étnico, da Semana da China – Índia – Paquistão – Nigéria – Bolívia, etc. (que normalmente focam a música e a comida), e procuraram formas de tornar as histórias das comunidades migrantes parte da história nacional e de promover “sentimentos positivos em relação a pessoas que se sentem em casa entre culturas diferentes e a ideia que pessoas em várias partes do mundo vivem no seio de culturas que já são transnacionais, cosmopolitas e que se caracterizam por um hibridismo cultural” (Kylie Message, p. 60).

Penso que esta é a forma de ir para a frente; é deixar de chamar a atenção para a diferença e tornando-a parte da história. Já citei uma vez Morgan Freeman que considera o Mês da História Negra “ridículo”, recusando-se a ver a sua história reduzida a um mês, e que, quando lhe perguntaram “Então, como é que nos vamos ver livres do racismo?”, respondeu simplesmente: “Parem de falar nele!”. Precisamos ainda de meses-festivais-feiras-espectáculos de gays, negros, deficientes? Talvez, sim, precisemos ainda, não o nego. Mas temos também um plano para ir um passo mais além?


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Monday 8 September 2014

O que está para além?

Freeman Tilden
Quando li o livro “Civilizing the Museum”, de Elaine Heumann Gurian, pouco mais de um ano atrás, lembro-me de ter tido um pensamento e dois sentimentos. Pensei em como era possível ter chegado pela primeira vez aos seus textos e ao seu pensamento visionário tão tarde, após 20 antes de estudo e de trabalho nesta área. Tive um sentimento aconchegante de conforto, quando percebi que ideias e preocupações que estavam constantemente na minha cabeça não eram propriamente novas e que alguém como a Elaine as tinha formulado de uma maneira tão bonita e completa, influenciando tantas pessoas e instituições com as quais trabalhou.  Mas tive também um sentimento amargo de frustração, apercebendo-me do quão lenta é, realmente, a mudança, uma vez que questões levantadas pela Elaine há já algum tempo continuam a ser actuais hoje em dia.

Quando acabei o livro de Freeman Tilden “Interpreting our heritage” no mês passado, sorri. Tive o mesmo pensamento e os mesmos dois sentimentos. Como é que é possível ter lido o Tilden apenas agora?! Como é inspiradora a sua escrita, como tudo se torna claro quando se lêem os seus seis princípios para a interpretação e os seus vários exemplos. E como é decepcionante ver que, mais de meio século depois, aprendemos pouco e fizemos ainda menos.

Tilden escreveu o seu livro em 1957, quando tinha 74 anos e depois de uma longa carreira como jornalista, escritor e dramaturgo. Russell E. Dickenson salienta no prólogo da quarta edição que “Na sua associação com os parques, Tilden desenvolveu um interesse em como os parques nacionais formaram a identidade americana, assim como a identidade individual, incitando os cidadãos a procurarem encontrar sentido e inspiração nos preciosos recursos naturais e históricos.”

É isto que Tilden desejava para os cidadãos e eram precisamente estas as suas expectativas da interpretação e dos intérpretes. “Os intérpretes decidem que histórias vão contar, como contá-las e a quem, uma responsabilidade séria [p.2]; (…) O principal interesse do visitante está em qualquer coisa que toque a sua personalidade, as suas experiências e os seus ideais [p.36]; (…) Mas o objectivo da interpretação é estimular o leitor ou o ouvinte a desejar ampliar os seus horizontes de interesses e conhecimentos e a procurar entender as grandes verdades que estão por trás de qualquer afirmação de factos [p.59]; (…) Não com os nomes das coisas, mas expondo a alma das coisas – aquelas verdades que estão por trás do que estamos a mostrar ao visitante. Nem pregando; nem sequer dando sermões; não através da instrução, mas através da provocação [p.67]; (…)  colocar o visitante na posse de pelos menos uma ideia perturbadora, que possa crescer num fértil interesse [p.128]”.

Resumindo assim a visão de Tilden, aqui estão os seus seis princípios para a interpretação:

1. Qualquer interpretação que não relacione de alguma forma o que está a ser apresentado ou descrito com algo na personalidade ou experiência do visitante, será estéril.

2. A informação em si não é interpretação. A interpretação é uma revelação baseada em informação. Mas são coisas completamente diferentes. No entanto, toda a interpretação inclui informação.

3. A interpretação é uma arte, que combina muitas artes, quer os materiais apresentados sejam científicos, históricos ou arquitecturais. Qualquer arte pode ser ensinada, até certo ponto.

4. O principal objectivo da interpretação não é a instrução, mas a provocação.

5. A interpretação deve procurar apresentar um todo em vez de uma parte e deve dirigir-se ao indivíduo no seu todo e não apenas a alguma das suas facetas.

6. A interpretação dirigida a crianças (digamos até aos 12 anos) não deve ser uma diluição da apresentação aos adultos, mas deve seguir uma abordagem fundamentalmente diferente. Para estar no seu melhor, requer um programa separado.

Claro que, enquanto lia isto, estava a pensar nos museus; na riqueza que se encontra neles e que está inacessível para muitas pessoas. Em muitos casos, por opção: a opção daqueles que têm a grande responsabilidade de interpretar, revelar, provocar, chegar aos corações de muitas pessoas e não apenas aos cérebros de algumas, mas que, tendo o poder de decisão, a sua principal preocupação é comunicarem com e serem reconhecidos pelos seus pares. Esta é uma razão, para mim, a principal, a mais determinante. Uma outra razão é que, neste contexto, os profissionais que têm preparação técnica nesta área lutam para ser ouvidos e, não poucas vezes, são vencidos. Uma outra razão ainda, não menos importante, é que muitas outras pessoas que trabalham nesta área não têm preparação técnica para aquilo que lhes é solicitado fazer, e não lhes é proporcionada esta preparação. Lembro-me uma vez num curso de formação, durante uma discussão acesa em relação às responsabilidades dos profissionais de museus que trabalham para eles próprios e para os seus pares, uma senhora levantou a mão e disse: “Por favor, não digam que estamos apenas preocupados com nós próprios e com os nossos pares. Eu simplesmente não sei fazer as coisas de outra forma e é por isso que aqui estou”…

É a combinação destes factores que faz com que Heumann Gurian, Tilden, Cotton Dana (para mencionar outro dos meus favoritos) soam amargamente relevantes e contemporâneos, mais de 20 ou 50 ou 100 anos depois.

Acontece que acabei de ler o livro de Tilden e comecei a escrever estas palavras no meio de um parque nacional, o Parque Nacional de Tzoumerka na Grécia. A beleza da paisagem cortava a respiração. Pensava constantemente nas palavras de Tilden: “A interpretação leva o visitante para além do seu prazer estético, em direcção à compreensão das forças materiais que se juntaram para produzir a beleza que está à sua volta.” É isto que as pessoas que conheci fizeram por mim. Levaram-me - com simplicidade, entusiasmo e um conhecimento profundo das coisas – além, muito além do que era visível para mim. Não eram todos profissionais, mas eram pessoas que tinham amor por aquele sítio, que desejavam partilhá-lo. Assim, tornaram a minha experiência em algo ainda maior.


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Ponte de Plaka, Parque Nacional de Tzoumerka, Grécia