Monday 28 November 2011

La crise oblige? (i) Algumas questões



Em tempos de crise, financeira ou outra, muitas pessoas encontram na arte, e na cultura em geral, um refúgio. Um livro, um filme, uma peça de teatro, uma canção, a dança, a pintura, a escrita abrem-nos janelas, mostram-nos caminhos, ajudam a criar sentido, trazem beleza, serenidade, inspiração, entusiasmo, motivação. Em países como a Argentina ou a Grécia, a afluência das pessoas aos teatros aumentou significativamente nos tempos de crise. Não só porque o público procurou esse ‘abrigo’, mas também porque os próprios teatros e companhias de teatro souberam posicionar-se perante a nova realidade. Yorgos Loukos, director artístico do Festival de Atenas, entrevistado juntamente com vários outros directores de festivais pelo jornal The New York Times no verão passado, referia a venda de mais 35.000 bilhetes em 2011 (uma subida de 24% relativamente ao ano anterior; a lotação do teatro de Epidauros, de 10000 lugares, esgotou na apresentação de Ricardo III com Kevin Spacey) e o compromisso do governo grego em apoiar novamente o Festival no próximo ano. Outros festivais também registaram grande afluência no verão passado, mas os seus directores manifestaram-se conscientes do impacto que a crise financeira terá sobre a cultura e da necessidade de lhe fazer face.

Há um ano, após o primeiro anúncio de cortes, éramos muitos os que dizíamos que a crise podia (devia) ser uma oportunidade. Passados 12 meses, estamos provavelmente no mesmo ponto: a reagir sobre os cortes, a exigir (como devemos) mais e melhor do Estado, mas a não discutir, ao mesmo tempo, alternativas a um modelo que, tal como está, há muito que não funciona. A esperança expressa por alguns responsáveis por instituições culturais portuguesas que os cortes venham a afectar ‘apenas’ a programação, faz pensar: que relação poderão essas instituições manter com o público, com a sociedade, se abdicarem, em primeiro lugar, da sua actividade principal, da sua verdadeira missão, da sua raison-d´-être? E quais as alternativas?

Nestes tempos difíceis, confusos, que trazem alguma desorientação, que obrigam à adaptação para se conseguir a sobrevivência, é bom voltar a ler Michael Kaiser. O seu pensamento estruturado e claro lembra-nos do que é essencial para se manter saudável e relevante.

Michael Kaiser foi responsável pelo ‘resgate’ de várias instituições culturais moribundas, prestes a fechar as portas devido a dificuldades financeiras. No seu livro The art of the turnaround: Creating and maintaining healthy arts organizations (que li pela primeira vez há três anos como se fosse um romance) partilha a sua vasta experiência e apresenta cinco estudos de caso: Kansas City Ballet, Alvin Ailey Dance Theatre Foundation, American Ballet Theater, Royal Opera House e The John F. Kennedy Center for the Performing Arts. Michael Kaiser não conhece apenas as realidades norte-americana e britânica. Tem prestado os seus serviços como consultor em vários países em todo o mundo. Do seu livro, destacaria aqui três lições importantes:

- O problema da maioria das instituições culturais é a receita e não os custos. Aliás, as instituições culturais têm aprendido a fazer muito com pouco. Organizações que se concentram simplesmente na redução dos custos serão cada vez mais pequenas e nunca serão capazes de criar o motor económico necessário para a sua estabilidade e crescimento a longo prazo (pág. 6);

- Quando se corta na iniciativa artística e no marketing, acaba-se com a razão porque as pessoas trazem receita às organizações culturais – frequentando-as, comprando bilhetes e apoiando-as financeiramente. Os membros do público, assim como os mecenas (chamemos assim aos donors), são atraídos por trabalhos entusiasmantes. Quando a arte e o marketing são sacrificados para equilibrar o orçamento, as organizações sofrem quase sempre um decréscimo na receita (pág. xi);

- Muitos executivos de instituições culturais têm sugerido que não faz sentido planear com grande antecedência, uma vez que o futuro parece ser tão incerto. Mas se não se planear com a devida antecedência, é impossível desenvolver aqueles projectos, grandes e entusiasmantes, que irão conseguir revigorar os públicos e os mecenas (pág. 7).

De que forma as lições de Michael Kaiser nos podem servir para enfrentarmos a nossa realidade específica? Penso que algumas das questões sobre as quais deveremos reflectir são as seguintes:

- Tal como aconteceu noutros países, muitas pessoas não vão deixar de querer participar em actividades culturais e, em particular, de ver espectáculos. Aliás, como mostram os exemplos de Argentina e da Grécia, a vontade até poderá crescer e contagiar mais pessoas. No entanto, dada a falta de dinheiro, irão decidir com ainda maior cuidado em que espectáculos vão investir. E em cidades como Lisboa, o público tem muito por onde escolher. Como é que a actual crise vai afectar a forma como se programa? Considerar as necessidades e os interesses das pessoas significa limitar, condicionar, a qualidade da programação? Faz sentido que esta responsabilidade, a de programar, seja partilhada com pessoas que representem os públicos-alvo e que tenham os conhecimentos necessários para poderem contribuir? Correríamos o risco de nos tornarmos populistas, de comprometermos a nossa missão?

- Michael Kaiser considera que o problema principal da maioria das instituições culturais é a receita e não os custos. Ainda mais, diria eu, em países como Portugal, onde as instituições culturais públicas não estão particularmente preocupadas com a mesma (nem com o dinheiro proveniente da venda de bilhetes, nem, muito menos, com a angariação de fundos junto de particulares, para a qual não existe tradição). Irão os cortes forçar-nos a considerar outros modelos de gestão e financiamento? Poderemos fazê-lo sem prejudicar a acessibilidade (financeira) à nossa oferta? O que é que se deve exigir ao Estado?

- Queremos, sim, planear com antecedência. Mas como, se não sabemos com quanto dinheiro podemos contar? Quando, já depois de assumirmos compromissos, somos surpreendidos com cortes? Onde cortar e como cortar? Sacrificamos em primeiro lugar a programação? Terão os próprios funcionários um papel no desenvolvimento de um plano estratégico para o futuro?

Estas são algumas das questões que se me colocaram, novamente, desde que recebemos as notícias dos cortes e da subida do IVA nos espectáculos. Estou a pensar nelas, e elas trazem outras. A missão, o financiamento, a programação e gestão das instituições culturais são assuntos interligados. Existem neles aspectos urgentes, que precisam de ser resolvidos a curto prazo; mas existem também aspectos estruturantes, que se reportam a um futuro mais distante (mas que será ainda o nosso) e que devem começar a ser considerados agora.

Este post de 'regresso', escrito umas semanas atrás, é muito especialmente dedicado a AL, CF, CR, HH, MP, MS, MT, NS, SA. Com o meu muito sincero obrigado.