Monday 27 December 2010

Enquanto se espera pelos mármores

O novo Museu de Acrópolis parece um enorme meteorito que caiu no meio de uma área densamente construída. Não é fácil apreciar o edifício do exterior, falta-lhe uma zona de ‘respiração’ à volta. À medida que nos aproximamos, obtendo vistas diferentes dos diversos volumes que o compõem, poderíamos até dizer que se trata de um objecto estranho e feio, que se impõe de forma arrogante no espaço onde se insere.

No entanto, a obra do arquitecto suiço Bernard Tschumi, em colaboração com o arquitecto grego Michael Photiadis, conquista-nos incondicionalmente a partir do momento que nos encontramos no seu interior. Este não é um edifício que se sobrepõe aos objectos que é suposto exibir. Antes, parece que cada espaço foi concebido a pensar concretamente nas peças que iria albergar. As vistas sobre a excavação subterrânea (através do chão de vidro) assustam – devido à altura - e impressionam. O corredor principal que dá acesso à área expositiva – chamado “as enconstas de Acrópolis” – dá-nos a sensação que fazemos mesmo parte da procissão que está a subir para entregar as oferendas ao templo da deusa Atena. Na sala do período arcáico entramos num jardim de estátuas, solenes, sorridentes, algo tristes. Bonitas.
Foto: Aris Messinis (Agence France-Presse)

Todo o terceiro e último piso do museu é dedicado ao Partenon. Luminoso, airoso, com uma vista directa e deslumbrante sobre a Acrópolis e o Partenon, tem as dimensões exactas do templo de Atena. A maioria dos objectos aqui expostos são cópias de gesso do friso e das métopas originais, que se encontram no British Museum, em Londres.
Foto: http://hellasbutnotleast.blogspot.com

Foto: http://greatfi.com
A batalha para a devolução dos originais à Grécia insere-se numa discussão maior, a nível internacional, sobre a restituição de antiguidades aos seus países de origem (se bem que a utilização do termo ‘países’ neste contexto poderá não ser a mais precisa). Para além da Grécia, países como Itália, Egipto, Perú, Nigéria, Etiópia e outros, reclamam junto de museus americanos, britânicos, franceses, alemães, a devolução de peças que consideram fazer parte do seu património cultural, chegando às vezes a promovê-los como símbolos nacionais, objectos de orgulho nacional.

Esta parece ser uma batalha entre estados nacionalistas e museus universais. Em Dezembro de 2002, dezoito museus (todos eles norteamericanos e europeus) assinaram a Declaração sobre a Importância e Valor dos Museus Universais. Condenando o tráfego ilegal de objectos arqueológicos, artísticos e étnicos, consideram, no entanto, que objectos adquiridos há mais tempo (não especificam quanto) deverão ser vistos à luz de sensibilidades e valores diferentes, próprios daquela época. Esses objectos, lê-se na declaração, fazem hoje em dia parte dos museus que cuidaram deles e que os tornaram acessíveis a um público internacional. Não pertencem aos cidadãos de uma nação, mas a pessoas de todas as nações. Em 2008, o polémico livro de James Cuno Who owns antiquity? Museums and the battle over our ancient heritage veio apoiar a posição dos museus universais. Cuno afirma que esses deveriam ter a liberdade de adquirir antiguidades mesmo quando a sua origem é incerta, para evitar que as mesmas ‘se percam’ em colecções privadas, não permitindo aos grandes museus cumprir a sua missão de educar o público sobre várias culturas, exibindo objectos de todos os períodos e continentes.

Duas das críticas mais equilibradas ao livro de James Cuno foram escritas por Tom Flynn e pelo arqueólogo Colin Renfrew. Flynn critica aquela que considera uma visão paternalista e colonialista dos museus universais. Aponta para o facto de todas as pessoas que contribuiram com textos serem directores de museus norteamericanos (com a excepção de Neil McGregor, director do British Museum) e para a falta de referência à relação que América e Europa deveriam procurar estabelecer com outros países, cujos museus não são de todo mencionados no livro (ler artigo completo aqui). Renfrew, por seu lado, critica Cuno por reclamar para os museus universais uma liberdade sem regulação, sem nenhuma diligência, na aquisição de antiguidades e defende a necessidade de serem elaborados códigos e políticas claras de aquisição a nível internacional (ler artigo completo aqui).

Esta é uma discussão muito mais vasta e complexa, que ultrapassa os limites do resumo que se faz aqui. Os argumentos de ambas as partes merecem ser analisados com atenção e objectividade. No entanto, e não querendo simplificar demasiado uma questão bastante complexa, diria que não receio que as solicitações para a repatriação de certos objectos esvaziem os chamados museus universais e os impeçam de proceder e cumprir a sua missão, como temem os seus defensores. Os pedidos são muito específicos, muito concretos, não dizem respeito a todo e qualquer objecto que se encontre nas colecções desses museus, e de outros.

Quando olho para o Partenon, vejo um monumento amputado. Acho que os originais do friso e das métopas deveriam ser devolvidos, uma vez que existem as condições. Devolvidos não à Grécia e aos Gregos, mas ao seu contexto natural, histórico e cultural, para serem apreciados por cidadãos do mundo inteiro, aos quais pertencem.

Outras referências
Elginism
The Committee for the Reunification of the Parthenon MarblesLista de artigos de Kwame Opoku no portal Modern Ghana
Who draws the borders of culture? (Artigo de Michael Kimmelman no New York Times de 5 de Maio de 2010)
The Medici conspiracy: The illicit journey of looted antiquities - From Italy´s tomb raiders to the world´s greatest museums (Livro de Peter Watson e Cecilia Todeschini)

Monday 20 December 2010

Gravado na memória

No post Let´s talk business, de Maio passado, falava do recurso às memórias e da análise das mesmas como uma forma de avaliar o impacto da visita a um museu ou uma exposição ou um espectáculo. Tenho estado a acompanhar com interesse a publicação no blog Museum Audience Insight de alguns dos resultados preliminares de um grande inquérito a frequentadores de museus.

Museum Audience Insight é o blog dos
Reach Advisors, uma empresa americana de investigação e estratégia em marketing que trabalha com muitos museus. No início do ano lançaram este inquérito, com o objectivo de recolher dados que pudessem dar respostas a questões como:

- As experiências em museus durante a infância afectam as motivações e as expectativas dos frequentadores adultos dos museus?
- Se alguns tipos de experiências durante a infância são comuns entre os visitantes adultos que mais se envolvem com os museus, os museus hoje poderão oferecer experiências similares às crianças?
- As visitas escolares são cruciais na criação de uma nova geração de frequentadores de museus?
- A curiosidade é importante como motivação?

O inquérito foi lançado através das mailing lists, páginas de Facebook e Twitter de 103 museus em 5 países (EUA, Canadá, Reino Unido, Nova Zelândia, Austrália e Índia), sendo que 97% das pessoas que participaram residiam nos EUA. Foram recebidas mais de 40.000 respostas. A metodologia é explicada
aqui e aqui.

Uma das principais linhas do inquérito diz respeito às memórias da infância. Os investigadores procuram, entre outras coisas, perceber quais os factores que tornam a experiência num museu memorável; quais as idades mais impressionáveis; como é que as experiências durante a infância diferem entre os vários segmentos de público. Pediram aos inquiridos para relatarem a sua primeira ou mais forte memória da visita a um museu, para indicarem a idade que tinham na altura e com quem estavam. A seguir, podiam relatar tudo aquilo de que se lembravam da visita.

Em termos gerais, a idade da primeiríssima ou mais forte memória de uma visita a um museu são os 7 anos. Mais de metade dos inquiridos tinha na sua memória a presença da sua mãe. Um pouco menos de metade lembrava-se do seu pai. As visitas escolares são cruciais nos hábitos de visitação dos adultos, sobretudo entre as pessoas cujos pais tinham mais baixas habilitações literárias. As memórias diziam respeito a museus de história e sítios históricos (24%), museus de história natural (21%), museus e centros de ciência (21%), museus de arte (17%).

Nos últimos dois meses, os Reach Advisors têm publicado mais resultados, mais específicos, do inquérito, todos complementados com relatos das pessoas que participaram no mesmo. A 28 de Outubro houve um post totalmente dedicado aos museus de história natural (
“When you´re seven, it´s all about the dinos, baby!”). Isto porque a análise dos dados mostrou que as memórias desses museus em particular ficam com as pessoas durante décadas, memórias essas vivas e detalhadas. Os factores determinantes aqui são a escala dos objectos expostos, os dinossauros, os dioramas, mas, surpreendentemente, também as rochas e os minerais. Há também muitas memórias das lojas desses museus.

Seguiu-se um post sobre experiências interactivas
(“Hands-on exhibits are very fun!” – Hands-on experiences in childhood memories). Através da análise das respostas, os investigadores concluem que estes são componentes muito importantes das experiências nos museus. No entanto, as memórias das actividades interactivas em si são menos vivas e detalhadas, a não ser que estejam associadas a um objecto específico ou uma exposição.

Um outro elemento que pode marcar profundamente as memórias de uma visita é o edifício em si. No post
“A grand and beautiful building with cool things’ to look at” – Architecture in early childhood museums memories” lê-se que em certos casos, mais do que os objectos expostos ou as actividades, são os edifícios que marcam as memórias das pessoas. No entanto, a escala e a grandeza de muitos deles não os torna frios e proibitivos para as crianças, ao contrário do que se poderia esperar. Quase todas as memórias são positivas e certas entre eles dizem respeito a edifícios mais pequenos e modestos.

Nos posts
“Museums are awesome!” e “Awesome? Try fascinating!” analisa-se a linguagem utilizada na descrição das memórias. A escala de edifícios e objectos, assim como tudo o que tem brilho, é belo ou exótico, impressiona as crianças e fica na sua memória. Essas experiências são descritas como ‘impressionantes’ (se bem que esta não deve ser a melhor tradução para ‘awesome’, que é algo que ao mesmo tempo impressiona e mete medo). No entanto, quando se trata de experiências que despertaram o interesse num determinado objecto ou o desejo de aprender mais, o adjectivo mais usado é ‘fascinante’.

O último post desta série (seguir-se-ão outros) intitula-se
Career choices: how museums sometimes make a difference. Apresenta os casos (poucos, é verdade, mas significativos) de pessoas para as quais a visita a um museu despertou o interesse sobre uma temática específica que determinou a escolha de carreira quando se tornaram adultas.

Eu tinha 8 anos quando visitei pela primeira vez o Louvre. Ia seguindo os meus pais pelas salas e corredores, até que chegámos aos pés de uma grande escadaria. E quando levantei os olhos, vi no topo a Vitória de Samotrácia. Fiquei profundamente impressionada, não conseguia tirar os meus olhos dela. Não sei se foi naquele preciso momento, mas foi durante aquela viagem que disse aos meus pais que queria trabalhar num museu (mudei muitas vezes de ideias nos anos que se seguiram…). E sempre que volto ao Louvre, aproximo-me da escadaria esperando e sabendo que Vitória de Samotrácia irá ter o mesmo impacto em mim,
como da primeira vez.

Qual é a vossa primeira ou mais forte memória da visita a um museu?

Thursday 16 December 2010

Blogger convidado: Do acesso à cultura, por Cecília Folgado

Nos últimos dias o acesso à cultura e a consagração universal dos direitos culturais estão no centro do discurso de todo o sector cultural. Pessoalmente, não me regozijo com a centralidade do tema. Confesso que me enerva e me leva a pedir tempo de antena em blogue emprestado.

O nervoso surge da minha experiência pessoal e claro que os que me conhecem já sabem que cresci numa cidade (capital de distrito) sem cinema, sem biblioteca e com a actividade cultural centrada no grupo de teatro local, no seu festival internacional e nas festas da cidade. Havia também, e claro, a televisão, onde se ia descobrindo coisas, filmes, músicas.

Saí dessa cidade em 1993 e, 17 anos e um CAE depois (resultado da rede de cine-teatros imaginada pelo ministro Carrilho), a diferença não é grande. É certo que há mais oferta, que há espectáculos, há até um festival de jazz. E há um museu novo. O cinema continua a ser residual bem como outras formas de expressão cultural e artística. Ainda há, claro, a televisão, a que hoje se adiciona a internet (que dá a ilusão de estarmos no centro de tudo e de termos acesso a tudo).

Nos últimos tempos, a centralidade do tema do acesso à cultura e a sua reivindicação faz-se no contexto do corte de 23% sofrido pelas estruturas apoiadas quadrienalmente pelo MC (corte esse, na verdade, sofrido por todas as estruturas apoiadas). Ora, a bem da honestidade, o que se está a reivindicar não é o acesso à cultura, o que está em causa é exclusivamente o acesso aos meios financeiros necessários por parte de uma parcela do sector cultural: os criadores e as suas estruturas. (Uma parcela central, mas ainda assim uma parcela, porque nem só de criação ou de criadores se faz a cultura).

O financiamento estatal é necessário, é certo, ainda que a medida, a forma e a oportunidade do mesmo devesse ser com urgência e seriedade pensada; mas há que ser distanciado do direito ao acesso à cultura. Este último maior, mais largo e mais fundamental que qualquer sistema de financiamento.

O acesso à cultura implica que todos tenhamos as mesmas oportunidades, tenhamos nascido em Portalegre ou na Cova da Moura, andemos ou não de cadeira de rodas, saibamos ou não ler e escrever. É este acesso que a UN consagra: o acesso que permita a igualdade e a não exclusão. Este acesso, efectivamente reconhecido e garantido, só será efectivado se nos dermos ao trabalho (nós, o sector cultural) de pensarmos uma política cultural consistente, inteira, para o futuro, uma política que fortaleça o tecido cultural, nas áreas de expressão, de criação, mas também e muito fundamentalmente no território; só será efectivado quando percebermos que o financiamento é um investimento e que deverá ir além da criação, que deverá ir além da produção;

É certo que em tempo de crise e em tempo de cortes o susto e o medo são grandes: o sector é frágil e é órfão (6 ‘adopções’ em 11 anos), a dependência (fomentada pelo Estado) imensa. Mas, como já se escreveu noutros textos e noutros blogues, talvez este seja tempo de oportunidades. Melhor será que o tempo e a energia gastos a reivindicar os milhares que não existem se use para olhar para cada um de nós, cada agente, cada estrutura, cada área de expressão e para tentar perceber de que modo podemos trabalhar melhor, mais eficientemente; trabalhar mais eficientemente não para ‘lucrar’ ou para nos tornarmos ‘mercadores’ da cultura e sim, para que o sector e a cultura não sucumbam a cada mudança ministerial ou a cada crise económico-financeira, e sim para que garantamos o acesso efectivo e de todos à cultura.

CECÍLIA FOLGADO Formada em Gestão de Marketing pelo IPAM - Matosinhos e em Arts Management (MA) pela City University - Londres. Nas áreas da Gestão Marketing e da Produção Cultural trabalhou com o Núcleo de Experimentação Coreográfica (NEC), Companhia Instável, Fundação Narciso Ferreira de Riba de Ave (2000-2003), Henri Oguike Dance Company e Akram Khan Company, (Londres, 2003-2006). Em 2007 fez parte da equipa de produção do Fórum Cultural o Estado do Mundo (Fundação Calouste Gulbenkian). É, desde Julho de 2007, Adjunta da Direcção de Comunicação do São Luiz Teatro Municipal. Dedica-se ainda ao estudo das Cidades Criativas e do desenvolvimento sustentável por via do planeamento cultural, áreas em que desenvolveu tese académica, e à formação em Comunicação e Marketing (Setepés) e em Gestão Cultural (Escola Superior de Teatro e Cinema - IPL).

Monday 13 December 2010

Um abraço azul, ou de outra cor qualquer, à crise

Há dois anos fui comprar bilhetes para um espectáculo no Teatro Municipal de Almada (TMA). A funcionária da bilheteira informou-me que pelo valor dos bilhetes (ou um pouco mais, não me lembro ao certo) poderia tornar-me membro do Clube de Amigos do TMA. Assim, durante um ano teria entrada gratuita nos espectáculos de produção própria desse teatro, descontos significativos noutras produções, assim como bilhetes gratuitos ou com desconto para todos os meus acompanhantes (independentemente do número). Não sendo difícil fazer as contas, apercebi-me que pelo preço de quatro bilhetes para um espectáculo (dois de adulto e dois de criança) poderia praticamente ter acesso quase gratuito a toda a temporada do TMA. Lembro-me de ter pensado na altura que o TMA não parecia estar muito preocupado em gerar receitas; e que mais valia assumir que a entrada era livre para os seus espectáculos, em vez de dar a ideia que as contas não estavam muito bem feitas ou que não existia um objectivo ‘maior’ por trás da criação do Clube de Amigos.

As instituições que recorrem ao sistema das assinaturas fazem-no normalmente para garantir benefícios para a própria instituição e para os seus públicos (públicos fieis e outros que pretende fidelizar). Uma grande parte do livro de Philip Kotler e Joanne Scheff
Standing Room Only: Strategies for Marketing the Performing Arts é dedicada às políticas de bilheteira e às estratégias que têm como objectivo a fidelização de públicos. Entre os benefícios que as assinaturas trazem à instituição, os dois autores indicam: a garantia de receita; a possibilidade de reduzir os custos para a promoção dos espectáculos (os custos para atrair novos membros e convencer membros antigos a renovar são inferiores aos custos para atrair pessoas que adquirem bilhetes pontualmente, para determinadas produções); um espaço maior para o director artístico poder experimentar; garantia de mais espectadores para a programação ‘alternativa’ ou experimental ou para projectos que não envolvem artistas conhecidos e populares, uma vez que está tudo incluído no ‘pacote’. Por outro lado, o público que assina pode beneficiar de descontos; pode ter prioridade na escolha de lugar; pode ter o direito de trocar bilhetes; pode ter acesso a uma série de serviços complementares (estacionamento, descontos no restaurante, eventos especiais, programas educativos, encontros com os artistas, etc.); é-lhe dada a possibilidade e a oportunidade de ‘educar’ os seus gostos, mais uma vez porque o ‘pacote’ inclui também propostas experimentais, novas, menos conhecidas.

Fiquei, por isso, a pensar quais teriam sido os objectivos do TMA ao criar o Clube de Amigos, uma vez que o preço da assinatura não parecia poder (ou querer, talvez) garantir os benefícios acima mencionados. Eu não cheguei a renovar a minha assinatura no ano seguinte: uma opção pessoal, claro, que tem a ver com o meu estilo de vida, a minha necessidade de ter maior liberdade e flexibilidade na escolha dos espectáculos que fazem parte da (grande) oferta na zona de Lisboa; uma prova que quando um espectador não investe realmente na assinatura não sente que perde algo ao não frequentar um maior número de espectáculos e consequentemente perde o incentivo de renovar; e
uma prova ainda que o preço extremamente baixo e as entradas gratuitas não são só por si suficientes para fidelizar o público, mesmo aquele que vê muitos espectáculos. (A propósito da questão das entradas gratuitas, um tema que foi também abordado neste blog aqui e aqui, um post recente no blog Arts Marketing constitui um excelente resumo dos pontos a considerar.)

Voltei a pensar no Clube de Amigos do TMA quando na semana passada recebi por correio azul uma convocatória para uma reunião geral (apesar de já não ser membro), assinada pelo encenador e Director do TMA Joaquim Benite. No Domingo passado recebi também um telefonema para confirmar a minha presença na reunião. O propósito da reunião era o corte de €150.000 imposto pelo Ministério da Cultura, equivalente a 10% do orçamento global do teatro. Entre as afirmações do Director do TMA lia-se: “(…) uma situação de crise que favorece o desenvolvimento da confusão e o fortalecimento daquelas forças que não desistem de empurrar a Arte e a Cultura para as ‘leis do mercado’ (…)”; “(…) revigoramento da luta já antiga e persistente contra as subvenções dos Poderes Públicos aos Teatros, tendo por fim a mercantilização da Cultura e da Arte e a subversão do preceito constitucional que garante o direito de todos à fruição cultural e artística.”; “No TMA não estamos dispostos a assistir a esta avançada do Ministério da Cultura de uma forma conformista e passiva”. (Joaquim Benite assina ainda
este texto no site do TMA).


(Clicar na imagem para aumentar)
Fiquei a pensar até que ponto a própria forma do TMA reagir à crise e à situação concreta gerada pelos cortes em Portugal não estará a revelar algum conformismo e passividade. Quem diz TMA, diz também outras estruturas. Muitos países passaram ou estão a passar por crises idênticas. Em todos eles ouvem-se vozes, oficiais e outras, que consideram a crise uma oportunidade de olhar para o sector e para a forma como funciona, um olhar esse que deve ser honesto e realista. Em vez de nos agarrarmos aos direitos ‘adquiridos’, à nossa dependência do Estado, a uma retórica que pretende equiparar a gestão saudável e eficiente das nossas instituições à mercantilização da nossa oferta, não será este o momento de procurarmos estabelecer outras relações, que nos permitirão criar uma visão mais arrojada e perspectivar um futuro mais estável e sustentável? Não será este o momento de avaliarmos os recursos (financeiros e humanos) e de procurarmos optimizá-los e gerí-los de forma mais prudente, eficiente e imaginativa? Incluindo o que se gasta em selos e telefonemas?

Não será também o momento de arranjar coragem para decisões difíceis? Quando há necessidade de fazer cortes, a opção mais óbvia parece ser cortar na programação, mantendo os custos fixos, custos esses sobretudo com o pessoal. Não estaremos, porém, a esquecer que a razão porque as nossas instituições existem em primeiro lugar é a programação? Não seria esta a última área onde se deveria cortar? Tanto no sector da cultura como noutros, tanto neste país como noutros, os analistas da crise apontam para a inflação no número de funcionários em muitas instituições públicas, que parece que afinal servem para empregar pessoas. Serão todas necessárias? Serão todas competentes? Terão todas formação adequada para as funções que desempenham? Os analistas dizem que não. A minha experiência também diz que não.

Olhemos, sim, para a crise como uma oportunidade. A oportunidade de desenvolvermos novos modelos de gestão, de nos adaptarmos às novas realidades, de sermos criativos e imaginativos na resolução dos problemas; a oportunidade de crescermos, saindo da alçada do Estado; a oportunidade de nos tornarmos mais exigentes, rigorosos e eficientes. Criemos, ao mesmo tempo, espaço para serem ouvidas outras vozes, de uma nova geração de profissionais da cultura, que poderão juntar o seu contributo àquele de figuras mais conhecidas, respeitadas e com um excelente conhecimento do sector (sugeria, por exemplo, a leitura do post
Crises que vêm por bem: Contribuições para um sector cultural diferente, publicado por Miguel Magalhães no blog Cost Disease Diaries no passado dia 8 de Dezembro). Procuremos ainda colocar os profissionais certos no lugar certo, integrando no sector aquelas pessoas cujos formação e know-how muito poderão contribuir para a transformação do mesmo. Enfim, juntemos os nossos esforços contra o conformismo e a passividade. Esta é uma oportunidade.

Monday 6 December 2010

De como se constrói um imigrante

Peço o título emprestado a um artigo de Ana Bigotte Vieira publicado no blog BUALA – Cultura Contemporânea Africana a 10 de Novembro. A autora apresenta, sem sentimentalismos e excessos na escrita, a situação que se vive próximo de Ceuta, em solo marroquino, lugar onde se reúnem pessoas de várias nacionalidades, à espera do momento certo para tentarem o salto desesperado e esperançado contra o arame farpado. Contra elas, a exaustão, a fome, os abusos dos donos das redes de imigração ilegal, mas também das polícias marroquina e espanhola, e o SIVE, um sistema de detecção e bloqueio dos barcos dos imigrantes em alto mar, composto por radares, câmaras de vigilância e ligação por satélite, que permite às autoridades impedirem o acesso à costa.

 

Ao ler o artigo de Ana Bigotte Vieira, lembrei-me de um dos meus livros favoritos. Eldorado, de Laurent Gaudé (ed. ASA), veio parar nas minhas mãos por acaso. Comecei a ler com alguma indiferença - não tinha mais nada para ler naquele dia - mas rapidamente a escrita do autor francês me captivou e nãoJustify Full consegui largar o livro até o acabar. Esta é a história do comandante Italiano Salvatore Piracci, que durante vinte anos patrulha o Mediterrâneo e intercepta as embarcações dos imigrantes clandestinos, muitas vezes abandonadas em alto mar pelos traficantes. Um dia, a sua fé na missão é profundamente abalada quando é confrontado por uma sobrevivente que perdeu o seu filho durante a viagem. O comandante abandona tudo e todos e segue o caminho dos imigrantes, tornando-se um deles. Paralelamente, seguimos a história de dois irmãos que saem do Sudão esperando poder chegar à Europa, o novo Eldorado. Só um deles chegará ao destino.
Foi também ao livro de Laurent Gaudé que pensei quando olhei pela primeira vez para a obra do artista camaronês Barthélémy Toguo Road for Exile, integrada na exposição Islands Never Found, apresentada no Museu Estatal de Arte Contemporânea de Thessaloniki, Grécia. Mesmo antes de saber qual era o título da obra, a fragilidade no equilíbrio das peças amontoadas no barco, a falta de espaço, a transparência do mar feito com garrafas de vodka (bonito, mas duro e enganador ao mesmo tempo), lembrou-me as histórias contadas por Gaudé, o universo por ele descrito. Barthélémy Toguo criou até agora cinco versões da peça Road for Exile. Uma delas foi apresentada no ano passado no Carpe Diem no Bairro Alto (ler aqui).
Recentemente li mais um romance cujo tema era a imigração. Leaving Tangier (não traduzido para português), do poeta e escritor marroquino Tahar Ben Jelloun, é um livro que conta a história de dois irmãos marroquinos que procuram uma vida melhor em Espanha. Um livro sobre uma realidade que em grande parte desconhecia (sobre o regime marroquino ou sobre as relações amorosas e a homossexualidade num país árabe), o contraste sempre presente entre o tradicional e o moderno, e também entre a Europa e a África do Norte. A abordagem a estas temáticas torna-se mais interessante pelo facto de o autor estar radicado em Paris há quarenta anos, vivendo entre (ou dentro de) as duas culturas.

Monday 29 November 2010

Será apenas o termo que incomoda?

Quando há 17 anos iniciei o meu mestrado em Museologia e descobri o mundo do marketing cultural, ou melhor, o mundo do marketing de instituições sem fins lucrativos, a controvérsia à volta desta temática era intensa. Para a grande maioria dos profissionais dos museus, o marketing não era compatível com a missão e objectivos dessas instituições. Muitos alertavam para o perigo da 'prostituição museológica' ou da criação de 'supermercados culturais'.

Em 2002 escrevi um artigo para o boletim da Rede Portuguesa de Museus intitulado Marketing de museus: afinal será só o termo que incomoda? (ver
aqui). Voltei a lê-lo agora, oito anos depois, e, se bem que hoje teria provavelmente construído a minha argumentação de forma ligeiramente diferente, encontrei pontos que ainda defendo: a necessidade e o interesse dos museus em recorrer ao marketing, sendo este um meio que permite criar uma comunicação consistente e eficiente, e que contribui para o cumprimento da missão dos museus; a constatação que os museus desenvolvem várias iniciativas e acções de marketing - mas de forma pontual, desarticulada, que não faz parte de um plano estratégico -, o que leva a pensar que é mais o termo que incomoda do que o recurso a estas técnicas em si; a necessidade de a própria profissão (do museólogo) formar os seus especialistas em marketing, pessoas essas sensibilizadas quanto às especificidades do sector, capazes de ajudar a cumprir a missão, sabendo ao mesmo tempo respeitá-la.

Pensei novamente em tudo isto a propósito da conferência Economia e teatro: desafios em tempo de crise, que teve lugar na passada quinta-feira no Teatro Nacional D. Maria II. Não pude assistir à conferência, li apenas o relato parcial do que foi dito num artigo do Público intitulado
Gerir um teatro não é como gerir uma empresa, uma citação proveniente da intervenção de Miguel Lobo Antunes no âmbito de um painel sobre “O que devem saber sobre economia os directores dos teatros?”.

O discurso economista, que parece às vezes sobrepor-se a tudo e a todos, é uma preocupação partilhada por muitos agentes culturais, talvez pela maioria. Sobretudo quando os indicadores económicos tornam-se nos principais indicadores de desempenho das nossas instituições. No entanto, ao ler o artigo senti que havia muitas analogias à forma como há uns anos atrás se discutia o marketing das instituições sem fins lucrativos.

A actividade cultural é uma actividade também económica. E, tal como defendia no caso do marketing, o sector só tem a ganhar com a inclusão de profissionais especializados nesta área, ou seja, pessoas que, para além de terem conhecimentos de economia, conheçam as suas especificidades e possam contribuir para que se cumpra a sua missão. O caminho para se chegar a esta especialização tanto tem como ponto de partida os estudos em economia com formação adicional em gestão cultural, como estudos na área das ciências sociais e humanas ou das artes com formação adicional em economia da cultura. Em Portugal já temos pessoas formadas nesta área e não as considero uma ‘ameaça’. Antes pelo contrário, quem trabalha na área do marketing e da comunicação cultural encontra neles um interlocutor que fala a mesma língua.
Esta questão, no entanto, leva a outra, que não sei se foi de alguma forma abordada na conferência no Teatro D. Maria II. Quem é, ou deve ser, o director de um teatro? O Director Artístico? Um Gestor? Um Director Geral da área das artes performativas mas com conhecimentos de economia ou um Director Geral da área da economia mas com conhecimentos sobre as artes performativas? Ou, então, uma direcção bicéfala?

Monday 22 November 2010

"Vão é trabalhar!", dizem eles...

Estive a ler os vários comentários no Público online a propósito da entrevista de Luis Miguel Cintra a Tiago Bartolomeu Costa, que traz o título “Há uma agressão concreta às companhias”. Em várias ocasiões nos últimos meses senti-me incomodada, às vezes chocada, pela forma violenta, furiosa, como alguns ‘comentadores’, a maioria anónimos, expressam a sua opinião contra os apoios à cultura, às artes e aos artistas e o seu desprezo pelos mesmos, demonstrando em alguns casos – como neste – grande ignorância.

O ‘fenómeno’ não é apenas português. Na altura do anúncio dos cortes no Reino Unido alguns dos comentários deixados pelos leitores dos jornais demonstravam a mesma raiva, o mesmo desprezo, muita incompreensão e ignorância.

Lia-se em dois dos comentários deixados no Público online:


Anónimo, Lisboa. 19.11.2010 12:25 Estranho...
Não é normal num país civilizado que o teatro seja pago pelo Estado. Normalmente uma peça é um sucesso e aí os produtores ficam todos contentes e arrecadam dinheiro, ou é um flop e partem para outra. É assim em todos os países a sério e curiosamente as pessoas vão e estão em cartaz anos a fio. Cá, quer pele péssima qualidade de muitas produções quer pele preguiça dos encenadores, produtores, eles fazem o teatro para eles. O público é perfeitamente acessório. Com as receitas de bilheteira tinham feito só uma. Mas o Estado paga-lhes tudo o resto. O mesmo no cinema. O que eles fazem não é cultura. É uma chacha subsidiada, que dá prejuízo e que é vista por 1 mil pessoas se tanto. Não vão ao interior, encenam coisas como se estivessem sob a influencia de drogas e depois queixam-se. Vivam num mercado aberto. A peça é boa e atrai público - fica, é um flop - azar. Andar a viver à mama durante 30 anos e agora berrar quando todos estão a passar MAL é uma VERGONHA. Eu pago na boa 100 dólares para ver uma boa peça na Broadway mas não pago 5 tostões para ver uma na Cornucópia. E na Broadway vejo actores, na cornucópia vejo-o a ele. Um pedante cheio de si que como actor é uma desgraça.

E ainda:
Anónimo , Lisboa. 19.11.2010 12:17 700.000? Se-te-cen-tos MIL???Este tipo recebe do ministério da cultura 700.000 euros, OFERECIDOS, e ainda vem para aqui dizer mal? Mas o que é isto? Mesmo que os espectáculos sejam uma m....? Mesmo que não convença ninguém a ir ver? E este jornalista anda a dormir, não é capaz de o confrontar com o que pensam os portugueses sobre esta raça de "artistas" que acha que todos lhes devem e ninguém lhes paga? Que falta de ética! Que falta de chá! Que falta de vergonha! Que lata! Parece que temos, nós, os portugueses que não temos quem nos dê dinheiro sem termos que o ganhar PRIMEIRO, que dizer das boas aos artistas chulos que por aí pululam. E então no teatro... estão é mal habituados! Ah, e peço desculpa aos "senhores artistas portugueses" por ser tão ignorante e achar que 99% do que eles fazem não presta, ainda bem que eles sabem tanto para me iluminar! Muita paciência deve ter a ministra para continuar a aturar esta gente... Olha, eu, nem morto volto a dar um tusto a ganhar a esta gente! Vão é trabalhar!



Em primeiro lugar, o marketing ‘institucional’ (entre aspas, porque uso o termo para me referir tanto a instituições como a pessoas). Não basta promovermos e comunicarmos a nossa programação. No entanto, por falta de meios e de tempo, é nisso que todos nos concentramos. Só que desta forma chegamos sobretudo aos nossos públicos e não conquistamos propriamente os não-públicos. O marketing institucional é uma ferramenta que permitiria comunicar a visão que se tem, chamaria atenção para os valores que se defende, dava a conhecer a forma como se constrói uma proposta, procuraria definir uma linguagem acessível, apresentaria as ‘provas’ que poderiam dar resposta às preocupações sentidas pela sociedade, criaria os alicerces de uma relação, ajudaria a angariar apoio (não me refiro ao apoio financeiro, mas também esse), empenhar-se-ia em tornar evidente a relevância que o que se faz tem nas vidas de todos nós.


A segunda questão para a qual gostaria de chamar a atenção, e que está muito relacionada com a primeira, é a da profissionalização das pessoas que trabalham na área da comunicação e do marketing cultural. É curioso que o próprio Luis Miguel Cintra, quando se refere às múltiplas tarefas que a sua pequena equipa é chamada a desempenhar, destaca a importância de duas delas, ambas relacionadas com o marketing: a escolha de fotografias ou a preparação de um comunicado de imprensa.


Não poucas vezes, as pessoas que trabalham nesta área estão nela por acaso. Sem questionar de forma alguma o empenho e a dedicação dessas pessoas, sente-se muitas vezes a falta de formação profissional, a falta de conhecimentos gerais e específicos que permitiriam desenvolver um trabalho rigoroso, consistente, pertinente, inovador. Para se trabalhar nesta área, como em qualquer outra, é importante estar-se bem preparado, possuir conhecimentos e ferramentas que permitirão questionar, testar, adaptar, avaliar o que se faz e ao mesmo tempo prestar um bom serviço de assessoria junto daqueles cuja arte é outra.

Não são propriamente os comentários acima referidos que me fazem pensar em soluções, na forma de reagir. É muito pouco honesto alguém que se quer informado, e que paga para ir a Broadway ver espectáculos, afirmar que Luis Miguel Cintra não convence ninguém a ir ver os seus espectáculos. Se bem que o número de espectadores não constitui um selo de qualidade, como todos sabemos, a verdade é que Luis Miguel Cintra, para além de ter muitas vezes casa cheia no pequeno Teatro do Bairro Alto, enche consecutivamente salas muito maiores quando ‘se muda’ para outros teatros, cruzando públicos tradicionais e não tradicionais, aqueles que o seguem fielmente com outros que se expõe à sua arte pela primeira vez. E isto significa algo.

Os comentários acima referidos lembraram-me mais uma vez que o desconhecimento existe e na maioria dos casos não é intencional, mas sim genuíno. O desafio para todos nós que trabalhamos no sector cultural - não só os profissionais da comunicação, mas também os da educação, sem esquecer, obviamente, os próprios artistas, programadores, directores artísticos, directores de museus, etc. – é reconhecê-lo, entender as suas causas, combatê-lo. E isto implica, em primeiro lugar, termos formação adequada para a área em que estamos a trabalhar. Implica igualmente repensarmos ou ajustarmos a nossa estratégia e prioridades.
Por defeito profissional, tendo fazer a leitura dessas opiniões do ponto de vista da comunicação. E sinto cada vez mais que há duas questões que deveriam preocupar seriamente o sector cultural, e o das artes em particular.

Monday 15 November 2010

O Artigo 27

Esta semana cruzei-me por duas vezes nas minhas leituras com o Artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que diz: “Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam.”

A primeira vez foi no livro
No Culture, No Future de Simon Brault. Brault é o Director do National Theatre School of Canada, Vice-Presidente do Canada Council for the Arts e Presidente de Culture Montréal. O seu livro centra-se nas questões ligadas à participação cultural. No primeiro capítulo, “Culture as a forward-looking sector for the future”, o autor apresenta o desenvolvimento de políticas culturais em países como a França, a Grã Bretanha, os Estados Unidos e o próprio Canadá, reflecte sobre as condições de trabalho dos artistas, sobre o impacto económico da cultura e sobre o seu financiamento. É neste contexto que se refere ao artigo 27 e o direito de tomar livremente parte na vida cultural, direito este que justifica o envolvimento governamental no apoio à cultura.

O segundo capítulo do livro, intitulado “Culture as an essential dimension of the human experience”, apresenta a visão que o autor tem da cultura, como uma linha de vida, não apenas como um factor que forma e define cada ser humano, mas também como um factor de civilização e progresso. Brault faz aqui referência ao estudo
The Values Study, realizado pela Connecticut Commission on Culture and Tourism com o apoio da Wallace Foundation, que apresenta os resultados de uma centena de entrevistas com cidadãos com níveis variados de participação cultural. São valores comuns entre os entrevistados a experiência estética, valores cognitivos, políticos e espirituais, mas atribuem igualmente importância ao impacto da participação cultural na ligação entre o espírito e o corpo, à apreciação de diferenças étnicas e geracionais, mencionando ainda noções de identidade, auto-estima, orgulho e dignidade. Brault reflecte sobre todos aqueles factores que constituem barreiras à participação cultural (sociais, educacionais, financeiros e outros práticos – falta de tempo, de transporte, etc.) e apresenta uma série de exemplos entre as instituições culturais que procuram providenciar melhor acesso, contextualizando a sua oferta, simplificando o discurso, promovendo encontros entre artistas e público, mas também fazendo a legendagem das óperas, transmitindo os espectáculos ao vivo em cinemas, organizando actuações ao ar livre e completando a experiência também do ponto de vista social (restaurantes, bares, lojas, etc).

Descobri neste segundo capítulo que na Bélgica existe a Associação Artigo 27, que reúne várias instituições culturais e cujo papel é considerado exemplar na área da democracia cultural (não encontrei o site da Associação, mas existe uma referência à sua actividade
aqui). A Associação disponibiliza bilhetes gratuitos ou a preços muito baixos, em muitos casos bilhetes que não foram vendidos, a todos aqueles que têm dificuldades financeiras e que doutra forma não poderiam assistir a espectáculos. A ideia agora é alargar a oferta a outras actividades culturais e artísticas, para além das artes performativas. Uma iniciativa que pode fazer muito sentido e que pode até criar alguma receita, mas que se concentra na eliminação da barreira financeira, o que não me parece suficiente para considerar a sua acção fundamental para a democracia cultural. A grande questão aqui não é o dinheiro (pode ser também), mas sim as barreiras mentais e cognitivas.

Simon Brault abraça a declaração “Uma cultura elitista para todos”, pronunciada pelo encenador francês
Antoine Vitez, e defende que, para além de apoiar, proteger e financiar arte de excelência, é importante não se esquecer da necessidade de desenvolver também a procura. No terceiro capítulo do seu livro, apresenta a cidade de Montreal como um estudo de caso na criação de uma política de desenvolvimento cultural numa cidade que se quer uma metrópolis.

O livro de Simon Brault não me trouxe propriamente algo de novo. Mas é um livro bem escrito, por alguém que acredita no que está a fazer e que o faz de forma apaixonada e dedicada.

A segunda referência ao Artigo 27 encontrei-a no editorial de Sharon Heal na revista Museums Journal do mês de Outubro (revista mensal da
Museums Association). No mês de Setembro realizou-se em Liverpool a conferência inaugural da Federation of International Human Rights Museums. A Federação reúne museus que lidam com as temáticas da escravatura, dos direitos humanos ou do Holocausto, museus esses cuja missão é também educar e fazer campanha pelo respeito e contra o abuso dos direitos humanos. No seu editorial Sharon Heal defende que lidar com estas questões não deve ser da exclusiva responsabilidade de museus cuja temática está directamente ou obviamente ligada a elas. Invocando o Artigo 27, Heal lembra que os direitos culturais são direitos humanos e defende que todos os museus devem olhar para as suas comunidades locais e tentar perceber se existem nelas pessoas que são financeiramente, intelectualmente ou socialmente excluídas. E se sim (sabemos que sim), não têm a obrigação de fazer algo?

Até agora não tinha reflectido sobre a questão da participação cultural e do desenvolvimento de novos públicos à luz do Artigo 27. Tão preocupados que todos estamos em provar o valor da cultura e convencer governantes, mecenas, patrocinadores e a sociedade em geral da importância e necessidade de a apoiar, que esquecemos muitas vezes que a participação na mesma é um direito declarado. Por isso, o ponto de partida, tal como defendi no post
Quem merece ser financiado (II), deveria ser outro: o de facilitar o acesso (físico, cognitivo e financeiro).

Monday 8 November 2010

O factor 'conforto'

Foi no livro The Museum Experience, de John Falk e Lynn Dierking, que li pela primeira vez sobre o factor ‘conforto’, associado à qualidade da experiência de visitar um museu. Os dois autores identificam três contextos na interacção do visitante com o museu:

1. O contexto pessoal: experiência e conhecimentos prévios, interesses, motivações e preocupações que cada visitante traz com ele e que definem a sua agenda pessoal no que diz respeito à visita.

2. O contexto social: o tipo de grupo em que o visitante se insere, assim como, também no caso das pessoas que visitam sozinhas, a interacção com outros visitantes e com os funcionários do museu, influenciam a perspectiva que o visitante tem dessa experiência e ajudam-nos a perceber os diferentes comportamentos.

3. O contexto físico: a arquitectura e o ambiente do edifício, o design das exposições, as lojas, cafés/restaurantes e WCs, os espaços para descansar, são todos factores que determinam a qualidade da visita.

Falk e Dierking consideram que a experiência do visitante é a constante interacção entre os contextos pessoal, social e físico. No que diz respeito ao contexto físico, George Hein, no seu livro
Learning in the Museum, faz concretamente referência ao conforto dos visitantes como um dos pré-requisitos na construção de um ambiente e de uma experiência que cria as condições para se aprender algo.

Quem pode desfrutar de uma exposição quando se sente cansado e não tem onde se sentar, quando tem fome, calor ou frio, quando não encontra o WC ou quando este não está em condições? São todos elementos aparentemente secundários, mas significativos para a qualidade da experiência que se pretende proporcionar, porque a condicionam.

Penso que encontramos os mesmos três contextos em qualquer experiência cultural, onde o factor ‘conforto’ acaba também por sempre influenciar a qualidade da mesma. A autora d´ O Blog do Desassossego fez um post no mês passado intitulado "
Do Teatro", onde se lê: “(…) O problema é que as peças têm sempre mais uma hora do que aquilo que deviam. Geralmente quando é intervalo já deviam estar a acabar. Mas não, leva-se com a pastilha de mais uma hora e meia de uma história que podia ser contada em menos tempo. E depois já não tenho posição nas cadeiras, já me dói tudo, já bocejo, já só quero sair dali (…)”. A duração de um espectáculo, o poder saber antecipadamente da mesma, a existência de intervalo, a temperatura da sala, o conforto das cadeiras são elementos que determinam a qualidade da experiência, tanto ou, para alguns espectadores, até mais que a qualidade do próprio espectáculo. Confesso que já uma ou duas vezes optei por não ver os espectáculos da Cornucópia sabendo que, dada a duração dos mesmos, a partir de um determinado momento seria incapaz de seguir a acção no palco e só pensaria no desconforto das cadeiras, na dor nas pernas e prestaria atenção aos restantes espectadores em constante mudança de posição à procura do dito conforto. Também no CCB tento sempre adquirir um bilhete para um lugar na coxia, dada a falta de espaço para as pernas de uma pessoa de estatura média, como a minha; assim como levo sempre um casaco porque quase sempre o ar condicionado está virado para o frio. O mesmo acontece com a opção da bancada no palco em vários espectáculos na Culturgest ou no Teatro Maria Matos, onde, para além da falta de espaço para as pernas, somos obrigados à uma proximidade física com pessoas desconhecidas que nem todos desejamos. (Deixo os outros falar dos confortos e desconfortos no teatro onde trabalho. Sei que existem.)

Há uma outra possibilidade ainda: quando a longa duração de um mau espectáculo contribui para o nosso desconforto total: físico, psicológico, intelectual. Na quinta-feira passada, as cadeiras confortáveis do grande auditório da Culturgest não foram suficientes para aliviar o desconforto total criado pela peça
O Inferno de Mónica Calle. E, enquanto a avaliação da qualidade de um espectáculo tem sempre algo de subjectivo, o mesmo não se pode dizer da duração do mesmo (3 horas) e da falta de intervalo. Metade dos espectadores saiu durante o espectáculo. Os resistentes, que não saíram ou porque apreciaram a proposta da criadora ou porque tiveram vergonha de sair e por respeito ao esforço das actrizes em palco (é claramente o meu caso), viram a encenadora saltar para o palco assim que o espectáculo acabou. Reconheceu que metade da sala tinha saído, dada a duração do espectáculo, e a seguir virou-se e agradeceu às actrizes. Extremamente cansada e irritada, achei esta intervenção infeliz. A criadora deveria ter igualmente reconhecido que o espectáculo tinha sido demasiado longo e que deveria ter havido um intervalo, dando aos espectadores, a quem não se lembrou de agradecer, a oportunidade de descansar ou… de fugir, sem remorsos.

Monday 1 November 2010

Em Londres

Na semana da pausa escolar, o chamado half term, Londres estava cheia de gente. Para além dos milhares de turistas estrangeiros que enchem todos os dias as suas ruas e os seus museus, as famílias inglesas aproveitam muitas vezes esta semana para viajar até à capital e para visitar as várias exposições.

Os museus pareciam centros comerciais em época de saldos. As filas, o barulho, a quantidade de pessoas tornavam a visita uma tortura em museus como o Natural History Museum, o Imperial War Museum ou a Tate Modern. Os parques, menos procurados pelos turistas e muito aproveitados pelos londrinos, permitiam-nos respirar fundo, descansar e contemplar as cores deslumbrantes do Outono.

Entre tudo o que vi, destaco duas coisas. A primeira é a escultura “Sunflower seeds” (sementes de girassol) do artista chinês
Ai Weiwei, instalada no Turbine Hall da Tate Modern.
Mao Tse Tung era representado como o sol e o povo chinês como girassóis que se viravam para ele. Ao mesmo tempo, Ai Weiwei recorda-se da partilha de sementes de girassol como um gesto de amizade, compaixão e gentileza naqueles tempos de dor, repressão e incerteza. O museu coloca-nos ainda outras questões: o que significa ser um indivíduo na sociedade de hoje em dia? Somos insignificantes ou impotentes, a não ser que actuemos em conjunto? O que significam para a sociedade, o ambiente e o futuro os nossos crescentes desejos, materialismo e número? Mais informações sobre esta obra aqui e também um vídeo relacionado com a sua criação aqui.

O segundo destaque vai para as esculturas ao ar livre do artista
Anish Kapoor, que compõem a exposição Turning the World Upside Down.
 

Colocadas nos Kensington Gardens, as esculturas reflectem o céu, as árvores, as pessoas que por ali passeiam e que pausam para as contemplar. Parece que redimensionam o espaço que nos envolve e voltam a projectá-lo. As peças ficarão expostas até à primavera e acompanharão as mudanças do tempo e das estações. Mais informações sobre esta exposição aqui.

Cem milhões de sementes de porcelana, cada uma criada individualmente por mais de 1600 artesãos. Uma obra que se pode classificar como ‘bonita’ ou ‘impressionante’, mas que, à medida que a vamos descobrindo, através dos textos e vídeos, começa a ganhar outras dimensões. “A arte é uma ferramenta para colocar novas questões. Criar uma estrutura básica que pode estar aberta a muitas possibilidades é a parte mais interessante do meu trabalho. Quero que as pessoas que não percebem o que é arte percebam o que faço”, diz o artista e conhecido activista. Esta peça traz referências da antiquíssima arte chinesa da porcelana, mas também da Revolução Cultural, durante a qual

Monday 25 October 2010

Logos tamanho XXL

No post anterior reflecti sobre a problemática da inclusão dos logos de entidades patrocinadoras e apoiantes nos materiais de divulgação. Uma contrapartida solicitada e dada sem grandes preocupações, que resulta muitas vezes numa faixa de logos minúsculos que está longe de servir os propósitos dos envolvidos, mais concretamente a visibilidade que procuram junto dos consumidores.

Desta vez, o problema é exactamente o oposto. No início do mês, o jornal The Art Newspaper publicou um artigo intitulado
Ads of Sighs (Anúncios dos Suspiros, um trocadilho que faz referência ao conhecido monumento veneziano, a Ponte dos Suspiros), dando a notícia de um protesto promovido por Venice in Peril, a Comissão Britânica para a Preservação de Veneza, contra os gigantescos anúncios que cobrem muitos monumentos e outros edifícios públicos daquela cidade. Os assinantes do protesto, que pode ser lido aqui e que é dirigido ao Ministro da Cultura italiano, são quase todos directores de grandes museus mundiais. Levantam não apenas a questão da estética, mas também as da ética e da legalidade.

Lê-se no artigo do The Art Newspaper que, de acordo com a Convenção de 1924 entre o estado italiano e o conselho municipal, os edifícios “devem apresentar-se sem objectos que possam de alguma forma danificar a sua beleza e majestade, cobrir as suas virtudes, pinturas e outras características da sua história e arte”. Em alguns casos, pode ser permitida a afixação de anúncios em edifícios considerados bens culturais “se não danificam a sua aparência, decoro e a fruição pública”.



Imagens retiradas do blog Museum Strategy

As autoridades municipais reclamam pela falta de dinheiro e defendem as suas decisões, afirmando que sem o apoio das grandes marcas não seria possível avançar com a conservação e o restauro dos edifícios e monumentos. Num artigo no jornal Guardian lemos que um porta-voz do Presidente da Câmara de Veneza disse que “Veneza, que é obrigada a salvaguardar esses monumentos preciosos, é obrigada a adoptar este sistema”.

O que é curioso é que as verbas disponibilizadas pelos patrocinadores / anunciantes são relativamente baixas. Lê-se no artigo do The Art Newspaper que pagam €40,000 por mês (um valor que não chega ao custo de dois anúncios num jornal) durante três anos. E mesmo assim, não se conseguiu ainda garantir todo o dinheiro necessário para a conservação dos edifícios, que ascende aos €2.8 milhões.

Portanto, será que Veneza é mesmo obrigada a dar esta contrapartida específica? E será que o resultado final para as marcas envolvidas é o desejado? A polémica tornou-se agora ainda mais intensa, porque foi dada autorização para os anúncios serem iluminados durante a noite.

No ano passado, e a propósito da publicidade da Sisley na Ponte dos Suspiros e no Palácio dos Doges, o blog Museum Strategy publicou um post intitulaldo Sponsorship debate: Venice´s “The Bridge of Sisley", e lançou um inquérito junto dos seus leitores: A campanha da Sisley em Veneza é a) um ferimento indesejado para os olhos que destrói a beleza cultural da cidade; ou b) um projecto de patrocínio inteligente que pode facilitar as muito necessárias renovações? Mais de um ano depois, 58,8% das pessoas que têm respondido ao inquérito têm avaliado a campanha negativamente, optando pela resposta a). Nesse mesmo post lemos algumas das opiniões expressas pelas pessoas em fóruns virtuais. Podemos ler outras nos comentários feitos ao post. Apesar de alguns reconhecerem que é igualmente penoso ver o estado dos edifícios e monumentos e que este é provavelmente um mal necessário, a grande maioria das pessoas exprime desgosto e irritação, dirigida não apenas aos responsáveis municipais, mas também às marcas envolvidas. Mais que uma vez lemos afirmações do género “Nunca mais vou comprar nada deles”.

Imaginemos que em vez dos anúncios gigantes tivesse sido impressa na lona a imagem dos edifícios em restauro. E que num canto se tivesse colocado, discreto mas visível e legível, o logo da marca que financia os trabalhos. Imaginemos que nos bilhetes de ingresso aos monumentos e edifícios tivesse sido impresso esse mesmo logo. O mesmo nos catálogos, guias, folhetos, porque não, nas legendas dos objectos. Imaginemos que tivesse sido cedido espaço ao patrocinador para a realização de eventos ou acções de charme junto dos seus clientes. Imaginemos que na mesa da conferência de imprensa, ao lado das autoridades municipais e da direcção do monumento, estivesse o patrocinador e que lhe fosse dirigido um agradecimento público. Seriam essas contrapartidas aceitáveis, que tornassem evidentes aos olhos do público o envolvimento da marca na conservação e restauro do monumento e o agradecimento e reconhecimento sentido por parte dos responsáveis? Os objectivos de ambas as partes teriam sido cumpridos?

O patrocínio não é necessidade de fazer publicidade a um determinado produto. É vontade de demonstrar aos consumidores a adopção de certos valores, de manifestar responsabilidade social. A forma gritante como a Sisley, a Coca-Cola e agora a Bulgari procuram publicitar a sua associação à tarefa hercúlea que é a preservação dos monumentos de Veneza (tal como outras marcas o têm feito noutras cidades) é capaz de se tornar num boomerang. Quanto aos responsáveis pelos monumentos de Veneza, em vez de se 'prostituírem' dessa forma, deveriam ter procurado outras formas para mostrarem o seu agradecimento. Elas existem.

Monday 18 October 2010

Livremo-nos da ditadura dos logos

A contrapartida mais comum proposta por uma instituição cultural quando procura apoios para a produção e/ou divulgação da sua oferta é a inclusão do logo da instituição que apoia nos materiais de promoção. A contrapartida mais esperada por uma instituição interessada em apoiar um projecto cultural é a inclusão do seu logo nos materiais de divulgação. A instituição cultural procura, assim, reconhecer a importância do apoio que lhe é dado. A instituição que apoia procura garantir a visibilidade da sua marca junto dos consumidores.

O logo é a extensão visual de uma marca. A marca representa uma identidade, procura transmitir valores. As entidades interessadas em apoiar os nossos projectos não procuram assumir o papel de uma instituição de caridade. Não nos apoiam porque têm pena do facto de não termos dinheiro suficiente. Fazem-no porque a associação a um determinado evento vem reforçar o valor da sua marca aos olhos dos consumidores. Por isso, mereceria a pena olharmos para a forma como esta parceria é normalmente desenvolvida e avaliarmos se os objectivos de ambos os parceiros são realmente cumpridos.

São muitos os projectos culturais que contam com apoios, a nível de produção e de divulgação. Raramente, no entanto, esses apoios são hierarquizados do ponto de vista do seu ‘valor’, valor esse monetário ou outro, mas que deveria, de qualquer forma, ser quantificado. Assim, em vez dessa hierarquização, que procuraria propor contrapartidas de acordo com o ‘valor’ da contribuição de cada parceiro, dando a alguns maior visibilidade, o que normalmente vemos é um tratamento igualitário que se resume na inclusão do logo de todos os parceiros nos materiais de divulgação. Assim, a estação de rádio X, que apoia a 100% a divulgação de um evento cultural (com a produção e emissão de spots publicitários, entrevistas aos intervenientes e outras referências), recebe a mesma contrapartida que a estação Y, que propõe um desconto considerável para a realização de uma campanha publicitária, mas que, de qualquer forma, recebe por ela. Para dar um outro exemplo, o meio de transporte X, que apoia produzindo e afixando nos seus veículos / carruagens / barcos cartazes do evento, recebe a mesma contrapartida que o meio Y, que afixa cartazes produzidos pelo promotor do evento e, às vezes, em menor quantidade. Porque é que os Xs terão interesse em continuar a apoiar em grande se poderão ter as mesmas contrapartidas com um apoio menor, igual ao dos Ys? As instituições culturais não estarão a perder poder de negociação quando tratam todos os parceiros da mesma forma?

O resultado dessas negociações indiferenciadas é normalmente um mar de logos no rodapé dos materiais de divulgação, que deixa ambos os lados muito satisfeitos: a instituição cultural porque assim mostra o seu reconhecimento ao parceiro que apoia; a instituição que apoia porque a sua marca está associada a um evento cultural que considera de qualidade. Vejamos alguns exemplos disso entre os anúncios nos jornais deste fim-de-semana:



Coloquemo-nos por um instante no lugar do consumidor, que todos somos. Alguma vez reparámos realmente nos minúsculos ícones que se acumulam nos rodapés de MUPIs, anúncios de imprensa (normalmente de quarto de página ou oitavo de página ou rodapé) e cartazes? (A não ser, claro, quando nós próprios estamos a procurar apoios para um determinado evento e aí, sim, pegamos na lupa e tentamos identificar parceiros nos materiais dos outros.) Não é verdade que os nossos olhos passam simplesmente por cima de tudo isto? Estará a instituição cultural a ser honesta com os seus parceiros quando lhes promete visibilidade e reconhecimento desta forma? Estarão as instituições que apoiam a ser realistas quando procuram a todo o custo a inclusão do seu logo nos materiais como forma de reforçarem o valor da sua marca aos olhos dos consumidores? Chamo em particular a atenção para alguns logos nestes anúncios de instituições que não são conhecidas do grande público. Estarão mesmo a criar alguma notoriedade junto dos consumidores através deste meio? Alguém fica a saber quem são e o que é que representam?


Na minha opinião, a contrapartida da inclusão do logo nos materiais de promoção só faz sentido se houver no máximo três apoios fortes, aos quais será realmente garantida visibilidade dessa forma e que poderão assim reforçar o valor da sua marca através da associação a um determinado projecto. Aqui temos um bom exemplo:

Uma outra forma de gerir a situação no caso de haver mais apoios, ainda pouco utilizada, é, em vez da inclusão do logo, fazer uma referência escrita às entidades que apoiam. Os nossos olhos de consumidores passam por cima dos pequenos ícones, mas temos ainda a tendência de ‘insistir’ com a leitura. Temos aqui um exemplo que funcionou comigo (mas eu sou suspeita):


O objectivo deste post é chamar a atenção para uma prática que se perpetua sem ser realmente avaliada, quando, na minha opinião, não cumpre os verdadeiros objectivos dos parceiros. Fica em aberto uma questão fundamental: que outras contrapartidas podemos, então, dar às instituições cujo apoio, maior ou menor, é fundamental para a concretização dos nossos projectos? Esta questão será discutida num próximo post.

Sugestões de leitura sobre branding:
Klein, N. (2010). No logo. Fourth Estate (10th Anniversary Edition)
Olins, W. (2007). On brand. Thames and Hudson
Wheeler, A. (2006). Designing brand identity. John Wiley & Sons

Monday 11 October 2010

A liberdade de expressão

No passado dia 4 de Outubro tive a oportunidade de assistir ao simpósio Identidade, Liberdade e Violência, que juntou na biblioteca municipal de Santa Maria da Feira a iraniana Shirin Ebadi, Prémio Nobel da Paz em 2003, e o dinamarquês Kurt Westergaard, autor do cartoon de Maomé que provocou uma grande onda de violência em 2006.

(Foto: NFactos - Jornal Expresso)

Confesso que ia ao simpósio com grandes expectativas. A liberdade de expressão (e os seus limites) é algo em que penso frequentemente sem poder chegar a conclusões definitivas, que possam servir para tudo. Parece que, quando se fala nisso, cada caso é um caso. Assim, tinha muita curiosidade em saber que rumo ia levar este debate entre um artista que ‘ousou’ representar o profeta Maomé e uma muçulmana praticante, defensora dos direitos humanos.

O debate ficou aquém das minhas expectativas. Shirin Ebadi e Kurt Westergaard fizeram duas intervenções paralelas. E tanto o moderador, o jornalista Carlos Magno, como o público (que incluía alguns jornalistas) deixaram passar despercebida (ou não perceberam mesmo) uma afirmação de Shirin Ebadi que poderia ter resultado num cruzamento das duas comunicações e num debate interessante. Shirin Ebadi disse claramente: “Na Convenção dos Direitos Humanos a liberdade de expressão é garantida a todos, mas existem excepções: quando se trata de propaganda racista, ódio ou incentivo à guerra. Assim, um cartoon que representa o profeta Maomé com uma bomba no lugar do turbante constitui uma violação dos Direitos Humanos. E a reacção de uma parte do mundo muçulmano ao referido cartoon também.” Esta afirmação foi, de alguma forma, ‘ignorada’. Tanto Carlos Magno como Kurt Westergaard referiram-se mais que uma vez ao choque das culturas, ao conflito entre o cristianismo e o islão, à necessidade de defendermos o nosso modo (europeu) de viver.

Desde aí, tenho estado a pensar que, em vez de incidentes como o do cartoon servirem para darmos mais um passo em direcção ao encontro do ‘outro’, continuamos a optar por uma interpretação simplista e conveniente e de falar de um choque entre culturas. Estou eu, europeia e cristã, em conflito com Shirin Ebadi, iraniana e muçulmana? Não se bate ela, muito mais do que eu, pela liberdade de expressão? Não é este um valor que partilhamos, que nos define e nos une?

Voltei a ler excertos de um livro que tinha lido no ano passado e do qual tinha gostado muito, porque o considerei esclarecedor e equilibrado. Chama-se La peur des barbares: au-delà du choc des civilisations (editado pela editora brasileira Vozes com o título O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações) e foi escrito pelo filósofo búlgaro, radicado em Paris, Tzvetan Todorov. Os capítulos do livro são: Barbárie e civilização; As identidades colectivas; A guerra dos mundos; Navegando entre escolhos (aqui faz a análise de acontecimentos como o assassínio do realizador holandês Theo Van Gogh, a publicação dos cartoons de Maomé pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten ou o discurso do Papa Bento XVI na Universidade Ratisbon na Alemanha); Identidade europeia.

Diz, então, Todorov no seu primeiro capítulo: “Civilizado é, sempre e em qualquer lugar, quem pode reconhecer totalmente a substância humana dos outros. Assim, uma pessoa para se tornar civilizada tem que atravessar duas fases: na primeira, descobre que os outros têm modos de viver diferentes do nosso; na segunda, aceita considerá-los portadores da mesma substância humana que a sua.” E continua: “Tornar compreensível para os outros uma identidade alheia, individual ou colectiva, é um acto de civilização, porque assim se alarga o ciclo da humanidade; deste modo, intelectuais, filósofos e artistas contribuem para o recuar da barbárie.”

Conhecer o ‘outro’ significa ao mesmo tempo saber respeitá-lo. E respeitar significa saber auto-regular-se. Não significa negarmos os nossos direitos (como o da liberdade de expressão), mas aprender a exercê-los com sentido de responsabilidade. “A responsabilidade limita a liberdade”, diz Todorov. Entre um direito e o seu exercício existe um longo caminho, em que são consideradas as eventuais consequências do mesmo dentro de um determinado contexto.

Os cartoons publicados pelo jornal Jyllands-Posten em Setembro de 2005 tinham sido uma encomenda do editor de cultura Flemming Rose, uma espécie de manifesto contra a auto-censura provocada pelo medo dos muçulmanos. Vieram numa altura em que na sociedade dinamarquesa eram cada vez mais evidentes os sentimentos xenófobos, e em particular anti-muçulmanos. Quatro anos antes, as eleições legislativas tinham resultado numa coligação, apoiada no Partido do Povo da Dinamarca, que reclamava “A Dinamarca aos Dinamarqueses”, “O Islão é um carcinoma, uma organização terrorista”, “Existe apenas uma cultura, a nossa”. Assim, existe, por um lado, o direito de um cartoonista de criticar e provocar através da sua arte (o que é a arte do cartoon se não a crítica através da provocação?) e, por outro, a responsabilidade que traz para o editor de um jornal de grande tiragem o exercício da liberdade de expressão dentro de um determinado contexto.

Toda esta problemática demonstra um choque entre culturas? Poderíamos alguma vez afirmar que entre os europeus e/ou os cristãos não se registam actos bárbaros e entre os asiáticos (neste caso) e/ou os muçulmanos actos civilizados? Não será, por isso, mais correcto, considerando a definição de Todorov, falarmos de um choque entre pessoas civilizadas e menos civilizadas, independentemente da sua nacionalidade ou religião?

Em jeito de epílogo: li na internet que em Fevereiro de 2006 o mesmo editor de cultura, Flemming Rose, disse à CNN que o seu jornal iria publicar cartoons satíricos que faziam referência ao Holocausto e que iriam ser publicados por um jornal iraniano. O Jyllands-Posten estava a tentar contactar esse jornal para que a publicação fosse simultânea. Mais tarde nesse mesmo dia o redactor-chefe do jornal dinamarquês informou que em caso algum iriam publicar os cartoons do Holocausto e no dia seguinte anunciou que Flemming Rose ia tirar uma licença por tempo indefinido.



Nota a 18 de Outubro:
O Público publicou hoje uma notícia intitulada Cartoon de orgia da família real leva a fecho de exposição na Dinamarca. Os artistas falam de censura, lembram o caso do cartoon de Maomé e afirmam: "A Dinamarca pretende incentivar a liberdade de expressão e defendeu a publicação de um cartoon que atingiu milhões de muçulmanos, mas quando se trata da sua realeza a história é diferente". E a resposta do director do museu: "Da mesma forma que um editor decide o que é publicado num jornal, o responsável do museu tem a última palavra em relação aos trabalhos de uma exposição." Estou curiosa em ver de que forma a sociedade dinamarquesa vai reagir ao encerramento desta exposição. As analogias com o caso do cartoon são mais que muitas.

Monday 4 October 2010

Quem ‘merece’ ser financiado? (II) Algumas conclusões

A relação de muitas pessoas com o sector cultural, talvez da maioria, é aquela que John Holden descreve, na página 32 do seu texto Capturing Cultural Value, como non-use values (valores de não-utilização). Ou seja, apreciam o facto dele existir (existence value), independentemente de usufruírem ou não; mantêm em aberto a possibilidade de o utilizar no futuro, apesar de não o usufruírem no presente (option value); acham importante legar algo a gerações futuras (bequest value).

Assim, enquanto estava a ler uma série de
textos sobre o valor da cultura e o seu financiamento, perguntava-me cada vez mais: fará sentido continuarmos a centrar o debate no como provar o valor da cultura? É disso que precisamos de convencer as pessoas – públicos, não-públicos, políticos, patrocinadores -, do ‘valor da cultura’? Alguém o contesta?

A cultura tem um valor próprio, em grande parte intangível, imensurável. A cultura toca-nos, maravilha-nos, faz-nos crescer como pessoas, torna-nos mais tolerantes e exigentes, menos ignorantes e arrogantes. Faz-nos pensar em nós e no mundo. A forma como cada um de nós vive esta relação é muito pessoal; e cada um de nós pode falar por si. Esses testemunhos, muitas vezes registados, não constituem propriamente ‘provas’, mas ajudam-nos a percebermos, e a mostrarmos a outros, como é que a oferta cultural é recebida, entendida e sentida.

Quando debatemos o financiamento para o sector cultural, raramente usamos, então, este género de argumentos. Porque não são fáceis de ‘provar’ e porque parece-nos que não são suficientes. Não são esses os indicadores esperados. No entanto, na nossa ‘apologia’ recorremos frequentemente aos resultados dos ‘efeitos colaterais’ da cultura, ou seja, aos relacionados com a economia, a regeneração de centros urbanos, os problemas sociais, de saúde etc. Estes existem e já foram provados em variadíssimos relatórios.

Parece-me, no entanto, que não é com base neles que se deveria avaliar a cultura em geral e as artes em particular. A monitorização desses resultados compete aos agentes que representam cada uma dessas áreas, que interagem com o sector cultural por considerarem a interacção benéfica. Penso que ao sector cultural compete provar que procura e consegue criar pontes com estes outros sectores, para que a oferta possa ser mais divulgada, mais acessível e mais usufruída, de modo a que cada vez mais pessoas possam ser ‘confrontadas’ com o seu valor intrínseco – aquele que é difícil de provar e de medir, mas que cada pessoa sente, à sua maneira, quando vive a experiência. É nestes termos, na minha opinião, que deverá ser debatido e avaliado o valor do sector cultural. E é também com base neles que deveriam ser pensados os critérios para financiamento.

Quando se pensa na distribuição dos apoios, parece-me que, grosso modo, poderíamos identificar três tipos de beneficiários: os artistas que trabalham individualmente, que produzem; os artistas que têm uma estrutura à sua volta; as instituições culturais.

Aos artistas compete criar. Criar arte de excelência. E o Estado deve garantir as condições para isso. O artista não cria para o bem da sociedade. Cria porque esta é a sua forma de respirar, de comunicar. Não lhe compete provar que a sua arte ajuda a resolver problemas de saúde ou sociais ou outros. A decisão de atribuir financiamento ou não deveria ser baseada na qualidade do seu trabalho. No entanto, parece-me legítimo esperar que um artista financiado pelo Estado esteja aberto para colaborar com os mediadores (educação, outreach, comunicação) que procuram abrir o caminho para o público chegar à sua arte. Os públicos, os políticos, os patrocinadores dificilmente atribuem valor a algo cuja existência ignoram ou a algo que lhes é estranho, incompreensível, por isso aparentemente inútil e às vezes assustador.

Neste contexto, deveríamos dar particular atenção ao medo e ao desconforto que as palavras ‘criação contemporânea’ exercem sobre as pessoas. Ninguém protesta pelo financiamento aos museus, às companhias com repertório clássico, a artistas plásticos cujo trabalho não contraria os cânones… Estas são propostas que o público em geral aceita como importantes, mesmo que nunca usufrua delas. Já a relação das pessoas com a arte contemporânea experimental, a arte que procura questionar os cânones, criar novas formas de olharmos para nós próprios e para o mundo, é menos pacífica. Porquê? Porque a maioria das pessoas não tem as ferramentas necessárias para lhes poder atribuir valor e importância. Para além da obrigação de criar condições para que esta arte possa ser criada, existe uma outra obrigação: a de ‘educar’ o público para aprender a apreciá-la (e depois aceitá-la ou rejeitá-la), dar-lhe as ferramentas para a poder descobrir e explorar. E isto não se faz sem a colaboração do artista.

Quanto às estruturas à volta de um artista ou às companhias e às entidades culturais em geral (museus, galerias, centros culturais, salas de espectáculos), não me incomoda de todo a ideia do estabelecimento de objectivos (alguns comuns a todos e outros específicos, decididos entre o financiador e a entidade cultural de acordo com a missão desta última – ver
post sobre estabelecimento de objectivos nos acordos de financiamento entre os museus ingleses e o estado). E parece-me legítimo que a decisão de financiar dê prioridade àqueles interessados em assumir os mesmos. Se se valoriza a criação de serviços educativos ou a criação de relações com públicos-alvo com menor representação, não deveria ser dada prioridade àqueles que pretendem avançar nesse sentido? Se se valoriza a eliminação de barreiras físicas, para que os cidadãos com necessidades especiais possam usufruir da oferta cultural, não será legítimo esperar que as estruturas financiadas com dinheiros públicos providenciem acesso às pessoas com deficiência? São apenas dois exemplos.

Penso que só assim, criando objectivos concretos e mesuráveis a médio e longo prazo, conseguimos evoluir. Conseguimos quebrar pouco a pouco as barreiras de acesso à cultura, sejam elas mentais, físicas ou financeiras. Não se trata do valor da cultura, mas sim do acesso a ela.

Estas e outras questões serão discutidas no dia 6 de Outubro, num debate que se quer provocador e que se intitula
“Afinal, para que serve a arte?”, organizado pelo Institute of Ideas em parceria com a Culturgest.
Notas a 7 de Outubro:Vítor Belanciano escreveu sobre a organização deste debate num artigo intitulado A poesia não contribui para o PIB, logo, não deve ser subsidiada?, publicado a 6 de Outubro no jornal Público. No dia 7 de Outubro, Cláudia Carvalho fez, também no Público, um breve relato a propósito de algumas das coisas que foram ditas, no artigo Batalha de Ideias na Culturgest sobre o papel económico da arte.
Sendo este um assunto muito actual e relevante para o sector cultural, está a ser discutido em vários fóruns e países. Também hoje foi publicado no blog Artsblog um post intitulado Proving what we know is true, que nos informa sobre um estudo que o Theatre Bay Area irá desenvolver no sentido de poder criar um serviço que permitirá quantificar o impacto intrínseco do seu trabalho. Mais informações aqui.
Por fim, vale ainda a pena ler o artigo de Nicholas Serota, director da Tate e uma das pessoas mais influentes no meio cultural britânico, publicado no dia 5 de Outubro no jornal Guardian e intitulado A blitzkrieg on the arts. Aqui está um excerto que me parece que pode servir de base se quisermos, realmente, mudar os termos do debate: "Com um ataque cruel, a coligação ameaça a estabilidade de um sistema inteiro de oferta cultural que tem sido construído por sucessivos governos conservadores e trabalhistas: uma economia mista, com apoios públicos e privados, que tem feito do Reino Unido um país civilizado para se viver, onde todos têm a oportunidade de desfrutar as artes ou celebrar o nosso património, e têm-no feito em números cada vez maiores."