Monday 28 May 2012

Somos para as pessoas. Será mesmo...?

Foto: Thomas Struth
Nestes últimos tempos, estive em dois encontros com profissionais de museus e amanhã começa outro (a European Museum Advisors Conference 2012). Tenho estado a pensar naquilo que me faz sentir tão bem na companhia deles. Cheguei à conclusão que é o facto de serem pessoas que dão, cujo trabalho faz sentido para elas porque querem muito partilhá-lo, querem que seja útil e que tenha significado para outros. Não houve nem um prémio nem uma menção honrosa na recente cerimónia de atribuição do European Museum of the Year Award em Penafiel que não tivesse mencionado a relação especial ou o envolvimento que esses museus têm estabelecido com as suas comunidades. Os museus estão a evoluir, se bem que lentamente, de instituições orientadas para as colecções (collection oriented) para instituições orientadas para as pessoas (people oriented).

Pode soar estranho que diga ‘lentamente’. Mas consideremos o seguinte: foi em 1909 que John Cotton Dana, o visionário director de Newark Museum nos EUA, exprimiu a seguinte convicção relativamente ao papel dos museus: “Um bom museu atrai, entretém, provoca curiosidade, leva ao questionamento e, assim, promove a aprendizagem. (…) O Museu pode ajudar as pessoas apenas se for usado por elas; irão usá-lo apenas se souberem dele e apenas se for dada atenção à interpretação dos seus bens em termos que elas, as pessoas, percebam”. E foi em 1917 que escreveu: “Hoje, os museus de arte são construídos para guardar objectos de arte e os objectos de arte são comprados para serem guardados em museus. Como parece que os objectos fazem o seu trabalho quando são bem guardados e os museus parecem servir o seu propósito quando guardam bem os objectos, isto tudo é tão útil no esplêndido isolamento de um parque distante como o é no centro da vida da comunidade que o possui. Amanhã, os objectos de arte serão comprados para dar prazer, para fazer com que os modos das pessoas pareçam mais importantes, para promover capacidades, para exaltar o trabalho manual e para aumentar o gosto pela vida acrescentando-lhe novos interesses”.

Seremos nós, quase um século depois, o ‘amanhã’ de que falava John Cotton Dana? Quando existem ainda directores de museus que sentem a necessidade de optar entre o cuidar das ‘suas’ colecções e partilhá-las com as pessoas, “nos termos que elas, as pessoas, percebam”? Como se tivéssemos o direito de escolher qual das cinco funções do museu vamos cumprir (coleccionar, preservar, investigar, expor ou interpretar), em vez de as cumprir todas da melhor forma que possamos? Não acho que sejamos ainda este género de ‘amanhã’, mas museus em todo o mundo têm dado passos muitíssimo sérios nessa direcção. E esta atitude tem dado frutos. Porque esses museus se têm tornado relevantes para as suas comunidades, são usados e estimados, fazem parte da vida das pessoas e as pessoas estão aqui para defender a sua existência.



De alguma forma, estes museus orientados para as colecções fizeram-me pensar nas instituições orientadas para os artistas. E o artigo de Vitor Belanciano Artistas e cinismo (Público, 20.05.2012) não poderia ter aparecido num momento melhor para contribuir para esta reflexão. Num texto que foi profundamente sentido e apreciado pelas pessoas que valorizam a criação artística, Vítor lembrou-nos de algumas verdades: da má imagem que a cultura e a maioria dos artistas têm em Portugal; do facto de serem considerados parasitas; do facto de merecerem – alguns, nem todos – reconhecimento apenas após a sua morte. Mencionou ainda que cientistas, médicos, advogados e engenheiros, mesmo quando são maus profissionais, não têm que justificar a sua existência perante a sociedade; e que os artistas não estão a fazer o suficiente para seduzirem a opinião pública, provavelmente porque eles próprios não acreditam naquilo que querem que nós acreditemos: que a cultura não cria apenas riqueza material, mas também sabedoria e riqueza emocional, que são absolutamente essenciais nos tempos que correm.

Outras profissões não precisam de se justificar porque a percepção geral é que contribuem para o bem comum. E é clara para as pessoas a forma como o fazem. Os artistas, em primeiro lugar, não são considerados profissionais e são vistos como pessoas que trabalham para elas próprias, gastando dinheiros públicos. Assim como as instituições que lhes cedem espaço para o fazer. No entanto, tal como os museus não existem apenas para preservar colecções, também as instituições de artes performativas não existem apenas para apresentar projectos artísticos. A ‘introversão’ que ainda caracteriza muitas delas, fazendo com que as portas se abram apenas aos poucos ‘entendidos’, está a ser contrariada, tanto pela entrada de profissionais que trazem novas preocupações quanto à relação com a sociedade - relação essa fundamental para que se possa verdadeiramente cumprir a sua missão e indissociável da sua sustentabilidade -, como também pela exigência de acesso por parte dos cidadãos.

As instituições culturais existem para as pessoas. São lugares de encontro entre pessoas que desejam comunicar entre elas; que procuram beleza e inspiração e sentido; que desejam partilhar pensamentos, experiências, preocupações e alegrias. Se quem as dirige não for consciente disto, então uma grande parte da sociedade continuará a considerar o investimento um desperdício, a sua oferta no mínimo incompreensível, a sua existência irrelevante e, por isso, dispensável. 

Mais leituras 

Monday 21 May 2012

Blogger convidado: "Jos Repertory Theatre: Trabalhar e viver na Nigéria", por Patrick-Jude Oteh

Patrick-Jude Oteh foi meu colega no ano passado no Fellowship do Kennedy Center. Lembro-me de ter ficado sem palavras depois da sua apresentação sobre o trabalho desenvolvido pelo Jos Repertory Theatre, que ele fundou numa pequena e agora dividida cidade nigeriana chamada Jos. Como é que uma companhia de teatro pode cumprir a sua missão num sítio onde a segurança das pessoas é uma das primeiras prioridades? E qual o papel dessa companhia num ambiente definido pelo terrorismo, a corrupção, divisões étnicas e religiosas?  mv

When The Arrow Rebounds, de Emeka Nwabueze, adaptação para teatro do livro de Chinua Achebe Arrow of God, encenação de Patrick-Jude Oteh para a digressão nacional em 2011 e para o 2012 Jos Theatre Festival.  © The Jos Repertory Theatre Archive

Vivo e trabalho num estado com uma população de 3,5 milhões de pessoas, a maioria das quais trabalham por conta própria ou são funcionários públicos. Os habitantes de Jos, capital do Estado Plateau, são trabalhadores, cheios de energia e hospitaleiros. Na cidade, existe uma mistura saudável de pessoas provenientes de outras partes da Nigéria, que tem 36 estados, e da capital federal, Abuja. O Estado Plateau costumava ser o único estado na Nigéria onde se podia encontrar facilmente outras tribos e nacionalidades a co-existir em paz. Até 12 anos atrás.

Devido a um misto de política, economia, intolerância religiosa e étnica e altíssimo desemprego, os vários segmentos desta cidade outrora vibrante e bonita vivem hoje em enclaves segregados e divididos em toda a cidade. Existe uma desconfiança mútua, angústia e dor em relações que, apenas há uma década, estavam a ser construídas por cima de quaisquer divisórias.

A nossa companhia de teatro, o Jos Repertory Theatre, começou a funcionar nesta cidade há pouco mais de 10 anos. Na altura, estava na moda os espectáculos começarem às 7 da tarde e as pessoas sentiam-se seguras passeando à noite pela cidade. Já não é assim. É considerado arriscado iniciarmos um espectáculo às 5 da tarde. Hoje em dia, as maioria das pessoas quer estar em casa pelas 7. No último festival em 2012 os espectáculos acabavam às 6.30. Tivemos que cancelar as conversas pós-espectáculo, que proporcionavam às pessoas um canal para serem ouvidas, para poderem estar em casa a horas ou encontrarem o conforto e a segurança dos seus bairros. O comércio e as escolas seguiram o mesmo caminho. É triste ver escolas habitadas apenas por alunos da mesma crença ou da mesma etnia. Os mercados, que dantes eram espaços vibrantes de interacção social e relacionamentos, também não escaparam.

Ceremonies In Dark Old Men, de Lonne Elder III, encenação de Osasogie Efe Guobadia para o 2012 Jos Theatre Festival.  © The Jos Repertory Theatre Archive

A razão por estes desenvolvimentos desagradáveis nos assuntos da nossa nação, onde Jos é apenas uma pequeníssima fracção de um mau estar muito maior, é a luta pelo poder e pelo controlo dos recursos nacionais, uma vez que a pessoa ou o grupo de pessoas que tem o poder tem igualmente a responsabilidade pela partilha dos recursos nacionais. As pessoas lutam para governar não porque querem servir, mas porque querem ser elas a decidir quem recebe o quê e quando. Existe ainda muita corrupção, num país tão rico em termos de recursos, que tem posto fim a muitos dos nossos valores tradicionais.

Nos últimos dois anos, tem-se tornado bastante desafiante trabalhar em teatro. Organizámos dois festivais, mas em condições bastante difíceis e desafiantes. Em parte, o objectivo do nosso trabalho mais recente é usar o teatro para promover o diálogo e a interacção entre as várias partes destes conflitos sem fim.

Devido ao facto de estarmos a ser confrontados com vários problemas que parecem desafiar qualquer solução possível, a maior parte do tempo parece que o nosso trabalho é um consistente e constante falhanço. Ficamos com o sentimento que não estamos a fazer o suficiente. Mas, o que é que podemos fazer numa situação em que muitas pessoas não vêem a necessidade de investir em causas nobres, como o teatro? Há cinco anos, decidimos que, se não poderíamos trabalhar na nossa cidade, trabalharíamos na capital da nação, Abuja. Mas a nossa capital não tem sido poupada. Parece que estamos num caldeirão em permanente ebulição.

Como manter a esperança viva num ambiente como este?

Temos tido a sorte na nossa companhia de trabalhar com um grupo de jovens que querem simplesmente criar e não querem saber onde e com quem o estão a fazer. Querem simplesmente conhecer o ser humano. Não é sempre fácil manter toda a gente segura nos diferentes enclaves, mas ajuda saber que na geração deles estão dispostos a trabalhar um com o outro, criando amizades e proximidade que nenhuma política, religião ou diferenças étnicas possam apagar. Estes são os futuros líderes da nossa sociedade. São vibrantes e resilientes. Quando a esperança e a moral estão em baixo, são eles que nos fazem seguir para a frente, com as suas palavras e os seus actos.

The Man Who Never Died, de Barrie Stavis, encenação de Patrick-Jude Oteh para o 2012 Jos Theatre Festival.  © The Jos Repertory Theatre Archive

O crescimento do terrorismo no nosso país acrescentou mais uma dimensão às nossas aflições. Como tudo o que é nigeriano, sempre que assumimos algo, criamos um modelo melhor. É o que aconteceu com os nossos terroristas. Tornam-se cada vez mais sofisticados, e ao lado desta sofisticação tem surgido um novo sentido de ousadia. Estão prontos para enfrentar tudo e todos. O governo e a imprensa não são poupados. O aspecto mais infeliz desta situação é que neste momento não existe um lugar seguro no país, a não ser no sul, que não conheceu ataques terroristas.

Isto tem afectado, sem dúvida, todos os aspectos do nosso trabalho. Não podemos fazer nada neste momento sem considerar as questões de segurança. Quando estamos à procura de um espaço, numa zona onde quase não existem espaços para espectáculos, temos que procurar entre os lugares mais caros, o que significa que temos que cobrar aos nossos espectadores o suficiente para cobrarmos os nossos custos; no entanto, isto pode manter as pessoas afastadas do teatro. Têm mais preocupações do que o teatro! Uma outra dimensão triste, que está a criar rapidamente um grande desafio, é o facto das pessoas estarem a evitar espaços com muita gente. Portanto, termos público já não está garantido.

A nossa esperança é que o nosso país voltará a ser o que era e não esta aberração que dificilmente conseguimos reconhecer. A nossa esperança é que um dia o governo vai traduzir as palavras em acções, especialmente no que diz respeito à criação de emprego para um sector crucial na nossa economia. Até agora, o governo não foi capaz de fazer corresponder as palavras e a retórica a acções. O Presidente tinha prometido um fundo de $200 milhões para as artes, que estaria disponível para todos os sectores artísticos. Quase dois anos depois, não conhecemos ninguém que tenha tido acesso a esse fundo. A própria existência do fundo tem estado envolvida em polémica, e o governo diz agora que o dinheiro era para pagar infra-estruturas para o sector das artes. Não temos visto nenhuma estrutura ou sistema de apoio para as artes. Como organização, temos continuado a contar com o apoio de indivíduos e, às vezes, do sector empresarial.

Este é o país onde vivo e trabalho. Será este o país onde os meus filhos irão perceber o seu potencial? Duvido. Mas somos pessoas com esperança e fé.


Patrick-Jude Oteh é o fundador e director artístico do Jos Repertory Theatre, uma companhia independente e sem fins lucrativos na Nigéria. Estudou Artes Teatrais na Universidade de Ibadan, onde também tirou o seu mestrado e está neste momento e fazer o seu doutoramento. Durante algum tempo, ensinou Teatro Africano, Encenação e Interpretação / Elocução no Departamento de Teatro e Artes da Comunicação na Universidade de Jos. Tem estado envolvido em projectos relacionados com o teatro nos EUA, Reino Unido, Itália, Serra Leoa, Costa do Marfim, Quénia e África do Sul. Está presentemente envolvido na criação de um grupo de teatros itinerantes e também na criação de uma base de dados de companhias e actores da sub-região da África Ocidental. Foi Summer International Fellow no Kennedy Center for the Performing Arts em Washington DC. Está ainda envolvido na criação do primeiro Centro de Gestão das Artes em Abuja e é colaborador do jornal The Peoples Daily, onde escreve uma coluna sobre Gestão das Artes chamada From the Live Stage. 

Monday 14 May 2012

Qual o problema com a música clássica? Aparentemente, nenhum…

Gustavo Dudamel (foto retirada do blog Fanáticos da Ópera)

Gustavo Dudamel é neste momento o rosto da popularidade da música clássica. Li recentemente que o seu novo álbum está em número 3 do pop chart sueco (à frente da Madonna). Não sei se estarei errada, mas acho que não se via algo assim no mundo da música clássica desde o tempo dos três tenores. É uma sorte, acredito, quando se pode contar com o contributo destes ‘fenómenos’, que com a sua arte e a sua grande capacidade de comunicação conseguem abrir janelas a milhares de pessoas para experiências nunca antes vividas. Graças a eles, este mundo (assim como o da ópera ou do bailado) - visto por muitos como fechado, elitista, incompreensível, desinteressante, ‘abafado’, desmistifica-se, surpreende, entusiasma, toca, ganha um lugar na vida das pessoas. No entanto, há muitos outros profissionais (artistas, mas também programadores, gestores, profissionais dos serviços educativos e da comunicação) que dão o seu contributo, ainda que numa escala diferente, para que cada vez mais pessoas possam entrar em contacto com o mundo da música clássica, descobri-lo, partilhá-lo.

Não se pode negar que a falta de familiaridade com a experiência é uma barreira fundamental. Um estudo realizado recentemente no Reino Unido veio confirmar mais uma vez esta realidade. De acordo com o mesmo, 15% dos inquiridos (o que corresponderia a 7,3 milhões de adultos), quando questionados sobre a experiência cultural que gostariam de ter, manifestaram interesse em ir à ópera (ler a notícia aqui). Quando lhes perguntaram porque é que nunca o tinham feito, 62% disseram que era muito caro. No entanto, 14% (o que corresponde a mais de 4 milhões de pessoas) responderam que não conheciam o suficiente para poderem apreciar esta forma de arte e 7% estavam preocupados porque não conheciam a etiqueta exigida. A familiaridade prende-se com várias questões (tanto práticas – como, realmente, a etiqueta -, como de conhecimentos ou até de relevância para as pessoas), que as instituições e os profissionais da área procuram abordar de várias formas. Uma delas são os chamados flash mobs, que têm vindo a multiplicar-se nos últimos anos. Lembro-me em particular deste, no mercado de Valencia, onde no fim apareceu um cartaz a perguntar: “Vês como gostas de ópera?”. 



Do outro lado do Atlântico, a Knight Foundation financia os Random Acts of Culture em aeroportos, mercados, restaurantes fast food, lojas, e justifica no seu site este investimento da seguinte forma: “Ouvir Händel ou ver tango num lugar inesperado cria um lembrete muito sentido de como os clássicos podem enriquecer as nossas vidas. Como vão ver nos nossos vídeos, as performances fazem as pessoas sorrir, dançar, pegar nas suas câmaras – até chorar de alegria. Por estes breves momentos, as pessoas que levam as suas vidas do dia-a-dia fazem parte de uma experiência partilhada, comunal, que torna a sua comunidade num espaço mais vibrante para se viver.” 


Palavras mais usadas pelos visitantes da instalação Re-Rite para descreverem a experiência.
Nesta linha de acções, e apesar de não ter sido ao vivo (mas quase o era…), penso que deveríamos ainda mencionar a experiência única que foi o Re-rite, apresentado no ano passado pela Fundação Gulbenkian no MUDE (ver aqui e aqui), que nos colocou no meio de uma grande orquestra sinfónica e até nos deu a oportunidade de ocuparmos o lugar do maestro e dos músicos. À saída, perguntava-se aos visitantes como é que descreveriam a experiência com três palavras. “Emocionante”, “vibrante”, “fantástico”, “envolvente” foram algumas das palavras mais usadas. No entanto, quase um terço dos inquiridos admitiu que não teria usado essas mesmas palavras para descrever um concerto antes da visita ao Re-Rite. “Não tinha noção”, “Não conhecia”, “Nunca tinha assistido a um concerto”, Não fazia ideia”, “Não tinha esta percepção”, foram algumas das razões dadas. Resta saber se a experiência levou algumas dessas pessoas aos concertos da Temporada de Música, uma vez que quase 50% dos inquiridos tinha exprimido esta intenção*.

Mas este passo que nos faz sair das nossas instituições para irmos ao encontro das pessoas não responde a todas as suas dúvidas, não é por si suficiente para quebrar a barreira que se prende com questões sobre a etiqueta ou com o que se passa realmente na sala de concertos, no palco e atrás dele. O Grant Park Music Festival
 em Chicago reconhece que estas dúvidas existem e aproveita os seus quase 30 concertos de entrada livre e 50 ensaios abertos, num local extremamente acessível como o Millennium Park, para encorajar os milhares de pessoas que assistem ao festival (25% das quais pela primeira vez) a colocá-las. Tudo desde “o que é que faz o maestro”, “porque é que a orquestra está assim dividida em secções” até ao indispensável “posso aplaudir agora?” tem aqui uma resposta (ler mais em Overcoming cultural barriers: romancing the newcomers in Millennium Park). Em Londres, a Opera Holland Park convida as pessoas a assistirem aos seus espectáculos disponibilizando bilhetes a preços acessíveis, mas, sobretudo, criando um ambiente de informalidade, onde as pessoas, sobretudo aquelas que vêm pela primeira vez, não precisam de se preocupar com a etiqueta. Ainda em Londres, o Royal Ballet apresentou em Março passado em directo no You Tube um dia de trabalho nos seus bastidores (ler aqui), dando a conhecer alguns aspectos que o público raramente ou nunca tem a oportunidade de conhecer ou de acompanhar.

Uma outra forma de aproximação ainda é a imagem que as instituições procuram projectar sobre elas próprias e a natureza da sua oferta através dos seus spots publicitários. O blog
Slipped Disc apresentou vários deles nos últimos dias e é notória a intenção de transmitir a ideia de que a experiência é divertida, descontraída e relevante. São disso exemplo os spots da Orquestra Filarmónica Checa ou da Orquestra Filarmónica de Luxemburgo, mas eu convidava a ver ainda este, sobre o Royal Ballet (“Not what you think”), que, diz-se, foi criado por um bailarino e não foi ‘assumido’ pelo Royal Ballet (e se assim é, que pena…).



Há ainda outras questões, que se prendem com o repertório, os compositores, a sua vida e obra. O anteriormente referido Grant Park Music Festival, para além de disponibilizar ‘explicadores’, proporciona momentos de convívio com maestros e músicos, onde se pode conversar sobre o programa. Entre as minhas experiências pessoais nesta área, destacaria duas. Primeiro, uma conversa fascinante no ano passado entre o musicólogo Rui Leitão e uma dezena de pessoas antes de um concerto da Metropolitana. Não foi apenas a simplicidade do seu discurso que me agradou, totalmente acessível para quem pouco conhecia, mas também o facto de quem conhecia um pouco mais ter descoberto - sim, naquela abordagem tão simples e informal - tantas coisas, pormenores maravilhosos, que desconhecia. Em segundo lugar, o concerto de apresentação da temporada 2011-2012 da National Symphony Orchestra no Kennedy Center, onde foi impossível resistir à energia contagiante do maestro Ankush Kumar Bahl, que com muito entusiasmo, sensibilidade, paixão e sentido de humor contou pequenas histórias e criou lindos contextos a propósito dos destaques da programação aí apresentados. O que caracterizou ambos os discursos era a plena consciência que não se estavam a dirigir aos seus pares, conhecedores profundos, mas sim, ao público ‘geral’ e interessado, com o qual muito gostariam de poder partilhar esta experiência.

Anna Nicole Smith na Royal Opera House (foto retirada do site da ROH)

Mas esse mesmo repertório não estagnou. 
Naturalmente, continua-se a criar, a renovar, a procurar até novas formas de apresentação, para se relacionar com mais pessoas. A Minnesota Opera aposta nas encomendas porque vê a necessidade de evoluir, de avançar, de tornar a arte operática numa forma de arte progressiva, ambiciosa, inovadora. Uma das suas últimas produções é uma ópera para público juvenil, baseada num livro popular, The Giver (ver aqui entrevista com os responsáveis). Deveríamos ainda mencionar exemplos como a controversa aposta da Royal Opera House numa ópera sobre a vida da playmate Anna Nicole Smith (ver o trailer aqui) ou a nova produção do Royal Ballet, que junta bailarinas a cantores pop e rappers (ler aqui). E para além destas experiências de ‘fusão’ (artística e não só), vale a pena ainda conhecer os Alarm Will Sound, um grupo de música contemporânea que procura tocar as pessoas, independentemente do seu background, através de concertos-performance. Dizem-se conscientes de que os concertos de música contemporânea são um pouco frios, porque as pessoas não estão familiarizadas com este género musical. Assim, através da sua música, mas também dos seus corpos, energia e entusiasmo, comunicam o que a música é. E o que é pouco familiar pode ganhar sentido.

  

E depois de tudo isto, vem o chamado
Churn Report (Orchestra Audience Growth Initiative) dizer que afinal o problema não é trazer novas pessoas, é convencê-las a voltar… O estudo mostrou que 90% das pessoas que vêm a um concerto pela primeira vez, não regressam; e 60% dos espectadores ocasionais não compram bilhetes para a temporada seguinte. Algo que chamou em particular a minha atenção neste relatório é que os gostos das pessoas que vêm pela primeira vez e das mais assíduas quanto a compositores e instrumentos favoritos não são tão diferentes quanto se poderia pensar (ver quadros) - afinal, talvez não seja tão complicado programar para ambos. Vale a pena ler os resultados e as propostas deste estudo, que prova, mais uma vez, que não é apenas a arte que determina as opções das pessoas (e por isso, a não participação não indica necessariamente um ‘problema’ com a arte em si), mas sim a experiência como um todo, com a qual é preciso criar familiaridade, não desvalorizando, ao mesmo tempo, aqueles detalhes práticos e logísticos que poderão constituir barreiras, por muita que seja a vontade de assistir. 


*
Dados do inquérito realizado aos visitantes do Re-Rite no MUDE, gentilmente cedidos pelo Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian.


Ainda neste blog 

Convite para a festa 
Por falar em ‘novos’ públicos 
A diferença entre ‘mais’ e ‘diversos’  
La crise oblige? (ii) Desafios da programação  

Mais leituras 

How Symphonies Grew Strong Audiences By Killing The Myth Of The Average Consumer 
Audience Growth Initiative 
Music and motion 
Remixing Classical-Music Concerts for the iPod Generation 
Joshua Bell played last night on Dancing with the Stars. Why? 
Sydney Dance Company attendance doubles 
I’m ready for my close-Up, Mr. Puccini 
Streaming ahead 
Minnesota Opera premieres a new opera for youth based on Lois Lowry’s classic novel, “The Giver”
My very first night at the opera 

Monday 7 May 2012

Blogger convidado: "Eu, tu e os outros", por Eva-Kaia Vabamäe (Estónia)

Conheci a Eva-Kaia Vabamäe numa acção de formação em Setembro passado. Há poucos dias, surpreendeu-me com um texto que escreveu, inspirada num post meu publicado recentemente, sobre os desafios enfrentados pelos museus estónios na apresentação da história do seu país, criado há aproximadamente 20 anos. Pedi permissão para reproduzir o seu texto. Isto fez-me pensar que há sempre tantas realidades que desconhecemos. Assim, nas próximas semanas haverá mais textos, da Espanha, do Brasil, do Egipto, da Ucrânia, dos EUA e da Nigéria. E espero que mais se seguirão. mv

Maqueta do novo edifício do Museu Nacional de Estónia (imagem retirada do site  A10.eu - New European Architecture)

Maria Vlachou, uma museóloga grega que actualmente vive e trabalhe em Portugal, escreve no seu blog Musing on Culture sobre as histórias que se contam em contexto museológico. Concentra-se principalmente sobre o como uma história pode soar totalmente diferente dependendo da nação que a esteja a contar (por exemplo, o conflito sem fim entre os países vizinhos da Grécia e da Turquia). Isto lembrou-me do papel importante dos museus quando se repensa ou se explica a história ao público.

Vindo de um país minúsculo como a Estónia (apesar, naturalmente, de ter um espírito enorme), com uma população de menos de 1,5 milhão, estamos habituados a imaginar que estamos em oposição a outras nações. Esta foi uma estratégia de sobrevivência ao longo de vários períodos, quando os opressores tentaram absorver-nos noutras nações, maiores. A nossa história consiste sobretudo de batalhas para a nossa identidade; batalhas para a oportunidade de termos a nossa república e a nossa cultura. Naturalmente, isto significa que frequentemente houve um outro a quem nos opusemos, alguém que ganhou o jogo apenas por ser mais ‘pesado’. Por isso, as histórias de sucesso na história da Estónia normalmente consistem de relatos sobre uma nação que é esperta como uma raposa, incrivelmente persistente e ganha a luta com truques extremamente simples (quem acreditaria que uma nação pode ganhar a sua liberdade cantando, no entanto, esta é uma história verídica). Conforme disse o antropólogo americano Paul Firnhaber na última masterclass sobre museus organizada pelo Museu Nacional da Estónia, tivemos apenas um herói militar, Lembitu, que viveu no século XIII e, na verdade, não conseguiu muito.

Quando tomamos em consideração este passado, não é de admirar, de facto, que normalmente contamos histórias do nosso próprio ponto de vista, dos Estónios. Ao mesmo tempo, ganhámos a nossa independência há pouco mais de 20 anos e antes disto tivemos a ocupação soviética, conhecida pelo seu hábito de re-escrever a história para servir ambições políticas. Assim, obviamente, os historiadores têm tido muito trabalho em re-escrever a nossa história e há ainda muito por reavaliar. Mas quantas vezes pensamos em como outras nações vêem os mesmos eventos? Quais seriam as histórias das nossas minorias étnicas? Como seriam as histórias dos nossos vizinhos e como é que tudo isto foi visto do outro lado do oceano? Estamos apenas a começar a contar estas histórias e será um grande desafio para uma nação tão pequena que tem estado a lutar sobretudo pela sua própria sobrevivência.

Voluntários que se reúnem no caminho para a Mansão Raadi para limparem o terreno. Raadi é um lugar que poderia contar histórias muito controversas. No meio de campos e prados, construiu-se no século XIX uma mansão alemã báltica; depois, nos anos 20 do século passado, a primeira galeria de exposições do Museu Nacional da Estónia; a seguir, durante a guerra fria, tornou-se num aeródromo militar soviético; por fim, nos anos 2000, foi a área designada para o novo edifício do MNE, cuja construção iniciar-se-á em breve (Foto gentilmente cedida pelo MNE).
Como escreve Maria Vlachou, as pessoas costumavam procurar nos museus a ‘verdade’. Os museus têm a autoridade para decidir o quê e como vai ser exposto. Isto coloca uma responsabilidade enorme nos ombros dos especialistas porque, como teremos todos reparado, raramente existe apenas uma opinião, ‘correcta’ e objectiva, sobre a história do mundo. Hoje a museologia diz-nos que os museus não deveriam ditar a verdade, mas apresentar uma variedade de narrativas diferentes. Posto de uma forma mais simples, esta teoria é parecida ao provérbio que diz: “Não dês ao esfomeado um peixe, mas sim cana e ensina-o a pescar”, o que significa que o museu deve acreditar o suficiente no seu visitante para o deixar decidir por si próprio, com base nestas diferentes narrativas.

O Departamento de Culturas Étnicas do Museu Nacional de Estónia está neste momento a ajudar o Museu Valga no desenvolvimento do projecto para uma exposição inclusiva com e sobre a comunidade Roma. O começo tem sido bastante complicado, sobretudo no que diz respeito à parte ‘inclusiva’. Tivemos que explicar várias vezes que não estamos a fazer dinheiro com isto, porque a comunidade Roma tem tido experiências negativas com outros projectos, onde sentiram que foram simpesmente usados para as estatísticas, sem se esperar deles um verdadeiro contributo.

Como parte do processo de preparação, um colega e eu assistimos a um seminário na semana passada. Era um seminário para professores e foi pedido a uma mulher Roma, que dirige a ONG cultural local, para falar sobre a sua cultura. Desta vez, como dantes, ela perguntou: “Porquê agora? Ninguém se preocupou connosco durante centenas de anos, porquê agora?”. Penso que é porque estamos finalmente preparados para contar mais histórias do que a nossa própria. E, com base na pergunta de um participante (lembro-vos que isto era para professores!) - “Porque é que deveria respeitar-te quando não sei nada sobre ti?” - , diria que é mais que necessário começarmos a contá-las!

[Texto inicialmente publicado no blog do Eesti Rahva Muuseumi (Museu Nacional de Estónia)]


Eva-Kaia Vabamäe trabalha actualmente no Museu Nacional da Estónia, no Departamento de Culturas Étnicas. O seu trabalho é ajudar museus de diferentes tipos a desenvolver estratégias de exposições, educação e comunicação. Isto inclui organizar workshops e cursos de formação, mas também trabalhar em vários outros projectos, como o desenvolvimento de uma sala de exposições para o novo edifício do MNE que envolverá a comunidade; a criação de um programa de verão para crianças sobre culturas étnicas; a organização de workshops para educadores de museus; a exposição mencionada no artigo sobre a comunidade Roma, etc. Nascida e crescida na Estónia, é licenciada em Design e Conservação e recentemente finalizou o seu mestrado em História de Arte com tese sobre os interiores históricos dos Alemães Bálticos, outrora uma minoria muito significativa em termos culturais e económicos.