Wednesday 26 December 2012

No meu 2012...


Um espectáculo




Três filmes



e


e



Uma artista da palavra dita





Uma canção




Um livro





E a viagem...

Clique aqui para ver o álbum.

Monday 17 December 2012

Blogger convidado: "A história do rapaz que adormeceu", por Mohamed El Ghawy (Egipto)

O último blogger convidado este ano é um sonhador, um contador de histórias, é o meu amigo Mohamed El Ghawy. O Mohamed é aquele género de sonhador que nos surpreende pela forma como consegue manter os pés na terra. É cauteloso mas determinado, procura sempre dar passos em frente, sabe o que é preciso fazer para que os sonhos se tornem realidade e... fá-lo. Tivemos longas conversas no verão passado sobre a situação no Egipto e os seus planos para a AFCA, a organização que criou em 2004 com o objectivo de educar as crianças egípcias através das artes e da cultura. Esta é a sua contribuição para o futuro do seu país, um futuro habitado por cidadãos criativos, imaginativos, sensíveis e activos, capazes de aceitarem os outros e de encontrarem o seu caminho sozinhos. mv

Workshop de artes visuais com crianças carenciadas. (Foto: AFCA)

“As crianças enchiam o hall e, como habitualmente, eu estava a contar uma história. Algumas delas abriam as suas boquinhas imitando-me, outras abriam os seus olhinhos fascinadas. A interacção era maravilhosa, divertia-me muito a esticar a minha voz para imitar personagens e vários animais. As crianças estavam a rir-se. Estavam felizes por assistir, tal como eu estava feliz por representar. De repente, reparei num rapaz que estava na última fila, contra a parede. Os seus olhos fecharam-se e cabeceou. Adormeceu e senti-me chocado, era a primeira vez que isto me acontecia. Chateado por não ter conseguido atrair a sua atenção, continuei e no fim apresentei as minhas desculpas à professora. Ela, vendo como isto me tinha afectado, riu-se e disse: «Este rapaz sofre de insónia e estamos a trabalhar com os seus pais para o ajudar. O médico diz que não dorme porque não se sente seguro»”.

Isto não me aconteceu a mim; foi um contador de histórias da Croácia que nos contou numa formação na Irlanda. Há muito tempo que estou interessado na forma como usar as artes na educação dos mais novos. No meu país, o Egipto, o sistema de educação é muito tradicional e as crianças é suposto decorarem tudo sem reflectirem sobre aquilo que estão a memorizar, o que acaba por ser aborrecido. Para mim, a Educação é uma ferramenta e deve continuar a sê-lo.

Quando tinha 25 anos, fiz uma viagem de barco no sul do Egipto com um grupo de amigos, para fugir da vida louca de Cairo. Navegámos ao longo do Nilo num barco pequeno durante 4 noites. Sem tecnologia, sem stress, só a natureza e nós. Uma noite, o céu estava cheio de estrelas e um dos meus amigos, o Damian, abriu um mapa de estrelas e começou a brincar com pedrinhas. Disse que se fizéssemos um desejo naquele momento, tornar-se-ia realidade antes do fim do ano seguinte. Sem hesitar, falei do meu sonho em abrir um espaço onde as crianças pudessem aprender tudo através das artes. Os meus amigos ficaram muito entusiasmados e começámos a procurar um nome. “Deve incluir o francês, tu adoras essas língua”, disse Marwa; e a Yasmine disse: “Irás abri-lo no Cairo, certo?”. O Damian disse que no seu país, a Bélgica, esse género de projectos chamava-se “academia das artes” e naquele momento surgiu o acrónimo francês AFCA - Académie Francophone Cairote des Arts.

Meio ano depois, juntámo-nos todos para a inauguração da minha academia das artes. O Damien estava na Europa e voltou para o natal, vestido de Pai Natal e cantando para as crianças: “Há um ano, brincávamos com as estrelas no céu, agora brincamos convosco aqui na terra…”.

A missão da AFCA é “Educar as crianças e os jovens através das Artes e da Cultura no Egipto”. As actividades que propomos são desenhadas para reforçar o uso das línguas – francês, inglês e árabe – e para estimular a criatividade e talento artístico natural de cada criança, usando-o como um meio para desenvolver capacidades pessoais.

Algumas pessoas acreditaram na nossa missão. Lembro-me da mãe de Aly, que nos apoiou imenso desde o primeiro momento. Tal como nós, acreditava que a sua criança podia aprender e falar uma segunda língua sem ser necessário passar por um sistema académico, apenas através das artes. Conversámos dois anos depois da abertura da AFCA. Disse que Aly estava muito feliz. A sua personalidade tinha mudado e tinha desenvolvido muito as suas capacidades de socialização – mas só falava apenas a língua que lhe ensinavam na escola. Três anos mais tarde, telefonou-me. “Há quatro dias que estamos em França e Aly é o nosso guia, fala em francês. Obrigada!”. Na AFCA, tínhamos brincado juntos com as línguas, tínhamos pintado, até tínhamos cozinhado com elas. Aly tem agora 12 anos e faz parte da equipa que está a planear o nosso décimo aniversário em 2014.

Depois da revolução, tínhamos energia positiva e sentimos que estávamos livres. Decidimos construir pontes com outras culturas e criámos o Hakawy International Arts Festival for Children com o objectivo de trazer ao Egipto espectáculos de todo o mundo. A exposição a outras culturas irá apoiar o desenvolvimento da imaginação e criatividade das crianças e abrir as suas mentes para o mundo e a diversidade cultural. Abrimos o festival a crianças carenciadas, que normalmente têm acesso limitado às artes. Mas têm também o direito de se exprimirem e de se sentirem aceites pelos outros, também a nível internacional. Acreditamos que as artes e a cultura são inestimáveis para as crianças, tão importantes como a comida e a saúde. Comer é uma cultura, conduzir um carro é uma cultura, ouvir enquanto se conversa com outros é uma cultura, limpar é uma cultura. No Egipto, especialmente agora, precisamos destes lados intangíveis da cultura.

Segunda edição do Festival Hakawy, com crianças com necessidades especiais. (Foto: AFCA)
Algumas pessoas pensam que ensinar artes às crianças é um luxo. Não é; é tão importante como qualquer outra coisa. Ensina criatividade, capacidades de socialização e imaginação. A história de um país, contada como conto ou representada numa peça, nunca será esquecida. Quantas pessoas se lembram das datas históricas se as estudaram apenas para responder às perguntas de um exame?

Aprender através das artes enriquece muito a educação de uma criança. A equipa da AFCA ensina línguas estrangeiras através de teatro e de canções, e até disciplinas mais complexas, como a matemática e as ciências, podem ser ensinadas através das artes visuais. É mais importante do que nunca para as gerações mais novas possuírem um amplo leque de capacidades. Considerando algo tão simples como cozer bolos, uma tarte de maçã pode ajudar surpreendentemente uma criança a aprender a comportar-se como membro de uma equipa. As artes não são uma disciplina por si; atravessam todo o currículo.

Devido à situação económica do Egipto, que impede 20 em cada 100 crianças de encontrar um lugar numa escola pública, não podemos deixá-las mais na dependência do governo. Temos que as formar desde muito cedo, de uma forma criativa, para aprenderem a pensar e a investigar. Não só para nos seguirem, mas para estarem no centro, sendo nós aqueles que as seguem.

Nas instalações da AFCA, no dia a seguir à demissão de Hosni Mubarak. (Foto: AFCA) 

Para contribuir para o desenvolvimento do nosso país, e considerando que as organizações independentes devem fazer parte da solução, a AFCA juntou-se ao conselho consultivo das escolas de Heliópolis – Cairo Oriental, para desenvolver a educação através das artes e da cultura nas escolas públicas. Estamos a espalhar o nosso conhecimento, observamos os processos e avaliamos depois da implementação de cada projecto. Dizemos sempre que “A educação através das artes e da cultura não precisa de um PhD; todos podem fazê-lo, em casa, na rua… com as suas crianças ou com as crianças dos seus amigos”. Não posso ainda esquecer-me do papel das artes e da cultura na construção da inclusão social das crianças ou daquelas com necessidades especiais. Podem até substituir um medicamento. Lembro-me ainda do impacto que as nossas actividades tiveram nos refugiados do Iraque e agora da Síria, que se sentiram socialmente incluídos através das artes. Não custa nada, temos apenas que acreditar que, para assegurarmos o futuro das nossas crianças, precisamos de começara  trabalhar com elas desde cedo. O nosso objectivo é ajudar todas as crianças egípcias a serem capazes de aceitar os outros e a encontrarem o seu caminho sozinhas.

Não é fácil trabalhar nas artes, especialmente com a situação política actual, mas estamos a avançar e tentamos ser criativos na resolução dos nossos problemas. Dou sempre coragem a mim próprio e à minha equipa lembrando a todos que o rapaz que adormeceu não estava aborrecido com a história; adormeceu porque se sentiu seguro.


Mohamed ElGhawy é licenciado em Artes, Francês e Literatura pela Universidade de Cairo. Começou a sua carreira como professor de teatro, actor e contador de histórias, em várias escolas e centros culturais. Escreveu várias peças de teatro e encenou muitas produções. Tendo recebido formação pela organização IBO em como usar as artes na educação, fundou no Egipto em 2004 a AFCA, uma organização artística e cultural independente. A fim de promover a cultura árabe e egípcia em todo o mundo, tem viajado a vários países como contador de histórias e formador em educação pela arte. Criou o Hakawy International Arts Festival for Children in Egypt, sob a égide do Ministério da Cultura do Egipto, e com o apoio de várias embaixadas e da UNESCO. É membro do Conselho Consultivo das escolas de Heliópolis – Cairo Oriental. Estudou no DeVos Institute of Arts Management no Kennedy Center for the Performing Arts, em Washington. Colaborou com artistas internacionais em vários projectos que tinham como objectivo usar as artes e a cultura como ferramenta para a aprendizagem intercultural, em França, Alemanha e Argélia. Recentemente, tornou-se representante de Assitej International Network for Theatre for Young Audience and Youth no Egipto e está a trabalhar localmente com outras organizações para a sua reconstrução.

Monday 10 December 2012

Lugares mágicos

Workshop de Ricardo Lopes (Foto: Vasco Célio /Stills)
As exposições blockbuster atraem muitas pessoas e muita atenção. São consideradas acontecimentos únicos na vida de alguém. Nos últimos doze meses, três tiveram particular destaque nos meios de comunicação: Leonardo da Vinci: Painter at the Milan Court na National Gallery de Londres; a retrospectiva de Damien Hirst na Tate Modern (esteve aberta entre Abril e Setembro e quando encerrou era a exposição individual mais popular na história do museu); e houve ainda a exposição The Steins Collect: Matisse, Picasso and the parisianAvant-Garde no Metropolitan Museum of Art (apesar de, neste caso, a grande questão ter sido o facto da exposição de moda Schiaparelli and Prada: Impossible Conversations, também no Metropolitan, a ter ultrapassado em termos de afluência - ler aqui).

Por ocasião da exposição de Leonardo, o jornal Guardian tinha lançado o debate “Are blockbuster art shows worth queueing for?” (Vale a pena ficar na fila para exposições blockbuster?), onde a jornalista do Observer Miranda Sawyer e o director da Royal Academy Charles Saumarez Smith  - defendendo o ‘não’ e o ‘sim’ respectivamente – discutiram se e como uma pessoa pode apreciar a arte numa sala que está a abarrotar. Nessa altura, James Page acrescentou um elemento mais interessante no debate, lembrando no seu blog que “a discussão estava a revelar de várias formas, e não apenas em termos das opiniões expressas pelos dois protagonistas, mas também como uma tendência natural no sector cultural, o facto de se perguntar a si próprio como é que os seus públicos pensam, sentem ou agem em vez de irem ter directamente com os públicos em questão”.

As exposições blockbuster levantam igualmente a questão da escala. E esta parece ser uma questão que preocupa muito as pessoas, uma vez que, como cidadãos em geral e como profissionais em particular, têm a tendência em se sentir pequenos – e por ‘pequenos’ querem dizer sem poder, sem capacidade de criar impacto.

Tenho pensado na questão da escala também, sobretudo nas ideias e nas acções que são provavelmente de uma escala pequena ou média, mas que têm impacto e podem ainda fazer a diferença na vida de outras pessoas – para além da nossa, claro. São as ideias e as acções que estão ao nosso alcance, mas que podem na mesma contribuir para um todo maior.


Workshop de Maria Alcobia (Foto: Vasco Célio / Stills)
O projecto “Lugares Mágicos” é uma iniciativa da Direcção Regional de Cultura do Algarve. Junta sítios históricos e a criação artística contemporânea; torna-se no ‘lugar mágico’ de um encontro entre artistas e jovens institucionalizados. Mais concretamente, os artistas Maria Alcobia, Vasco Célio, Ricardo Lopes e Miguel Cheta (respectivamente das áreas da dança, fotografia, cerâmica e design), coordenados por Tânia Borges Nunes (Atelier Educativo), trabalharam juntamente com os jovens e, inspirados na herança local, ensinaram-lhes as técnicas da sua arte e juntos produziram peças lindíssimas.

No seguimento da primeira edição, em 2010, houve uma publicação com textos escritos pelas várias pessoas envolvidas. A segunda edição, em 2012, resultou numa jornada de reflexão, no mês passado, que juntou mais uma vez as pessoas envolvidas e deu-nos a oportunidade de conhecer o projecto em mais detalhe. Logo no começo, aconteceu algo raro: representantes da área da cultura, da educação e da acção social sentaram-se à volta da mesma mesa e elogiaram um projecto que, acreditam, cumpriu um objectivo que lhes é comum (não é disso que se trata? não deveria sempre ser assim?). O dia prosseguiu e, através de filmes, fotografias e debates entendemos a enorme visão por trás deste projecto de escala algo pequena.

Não há dúvida que este projecto teve um impacto significativo nas vidas de todos os envolvidos. Ao ouvi-los falar, apercebemo-nos que foi um processo de descoberta e de inspiração e, em certos casos, uma experiência transformadora quanto às percepções de ‘normalidade’ e ‘inclusão’. Neste sentido, parece que os objectivos enunciados pela Directora Regional Dália Paulo – “potenciar olhares, diálogos e experiências ao público-alvo, num exercício pleno de cidadania e “a cultura [como] motor para uma mudança social” – tenham sido cumpridos. Senti apenas que foi uma pena não termos ouvido a voz dos próprios jovens, não ouvimos a história da sua participação e daquilo que esta significou para eles nas suas próprias palavras (uma indicação que aquela tendência natural do sector cultural britânico, de que falava James Page, ‘afecta’ de igual modo o sector cultural português). Filomena Rosa, presidente de uma das instituições sociais envolvidas, trouxe-nos algum feedback ao citar as jovens na sua apresentação: “Fotos na cidade! Antes eu não ligava, eram pedras velhas, mas com as fotos aprendi” ou “Aprendi que uma foto tem muito a dizer… Como uma paisagem que nos diz algo. Com sentimentos”.


Workshop de Vasco Célio (Foto: Vasco Célio / Stills)
No meu comentário final nesse dia, recordei a coreógrafa brasileira Lia Rodrigues – que não criou o seu estúdio numa das favelas de Rio de Janeiro procurando resolver o problema da pobreza ou da violência -  e o maestro Daniel Barenboim – que não criou a West-Eastern Divan Orchestra esperando trazer a paz ao Médio Oriente (mais no meu post Lugares de Encontro). A contribuição da Cultura não está, em primeiro lugar, relacionada com questões como a pobreza, a violência, o crime, a saúde mental, a iliteracia, etc. Artistas e profissionais da cultura em geral não procuram assumir o papel de assistentes sociais, professores, políticos, polícias, padres ou médicos. A Cultura, em primeiro lugar, tem a ver com o pensamento crítico, a auto-expressão (verbal e não verbal), a criatividade, a sensibilidade; tem a ver com o ficar a conhecer o ‘outro’. Neste sentido, quando tudo (cultura, educação, acção social) se junta – num ‘lugar de encontro’ ou num ‘lugar mágico’ – acredito que temos mais hipóteses de construir uma sociedade mais democrática, mais tolerante, mais inclusiva; uma sociedade onde não vivemos em compartimentos e não definimos o ‘outro’ pelas suas diferenças, mas simplesmente o vemos como um outro ser humano (e não ‘especial’ ou ‘deficiente’ ou ‘diferente’ ou até ‘problemático’). “Lugares Mágicos” é o género de projecto que junta os ingredientes necessários para que isto aconteça.

Uma nota final: recentemente estive por duas vezes no Algarve em encontros com profissionais da cultura. Senti que há neles uma clara noção de propósito, há muita motivação e empenho para a ‘causa’, há satisfação pelo que tem sido feito e vontade de fazer mais. E tudo e todos apontam para a Directora Regional, a nossa colega Dália Paulo. Não há dúvida para mim que é a sua visão, o seu profissionalismo, os seus conhecimentos e capacidades que guiam e inspiram toda a equipa. A Dália Paulo e os restantes colegas que conheci no Algarve trabalham à sua escala, fazendo uma diferença blockbuster na vida das pessoas que habitam na região. São os beija-flores (hummingbirds) de Wangari Maathai.

Monday 3 December 2012

Quem diz?

Giselle Ciulla, 'curadora' da exposição Giselle´s Remix (Imagem retirada do website do Clark Art Institute).
uCurate é uma iniciativa do Clark Art Institute na cidade de Williamstown nos EUA. Trata-se de uma aplicação digital que permite às pessoas desenhar exposições imaginárias a partir da colecção do museu. As propostas entram numa competição e a proposta vencedora é materializada com a ajuda do museu. Nesta primeira edição, e após a avaliação de quase 1000 candidaturas, a proposta vencedora foi a de uma menina de 11 anos, Giselle Ciulla, que nos convida a visitar Giselle´s Remix (mais aqui).

É tão bom ver a cara alegre da Giselle e quase que sentimos o orgulho que ela sente na sua proposta. É também este o papel dos museus na sociedade, um papel que permite o envolvimento, a participação activa, que reconhece que existem mais versões da ‘verdade’ e que as acolhe, mesmo tratando-se de crianças com 11 anos. As legendas que acompanham as obras na exposição foram escritas pela própria Giselle. Transmitem simplicidade e frescura, demonstram sensibilidade. Há uns anos atrás tinha visto legendas escritas pelos visitantes na Tate Britain e tinha também gostado muito. Eram, para mim, tão interessantes como as outras, as ‘oficiais’. Na altura (foi em 2004), Maev Kennedy do Guardian achou a iniciativa dúbia. Quanto ao director da Tate Britain, Stephen Deuchar,  dizia que estaria particularmente interessado em receber as contribuições de visitantes que poderiam saber muito mais sobre uma pintura do que os especialistas do museu ou os próprios artistas (ler mais aqui).

Nos dias 12 a 14 de Novembro estive na conferência Em nome das artes ou em nome dos públicos, organizada pela Culturgest em colaboração com o programa Descobrir da Fundação Gulbenkian. Uma das principais preocupações dos presentes pareceu-me ser a questão da ‘autoridade’ à volta da interpretação de uma obra. Quando fiz o meu mestrado, éramos ‘avisados’ que as pessoas reconheciam autoridade no museu, assumiam a informação que ali encontravam como ‘verdade validada’. Mas também naquela altura, e já vão quase 20 anos, questionávamo-nos sobre a possibilidade (e a obrigação) de criar espaço para ser contada mais que uma história.


Pois, a preocupação e a reflexão continuam nos dias de hoje. O conceito de museu participativo (tão bem fundamentado na teoria e através da prática por Nina Simon) ganhou grande expressão. Um caso interessante, entre os vários que foram apresentados na conferência Em nome das artes ou em nome dos públicos, foi o dos dTOURS na exposição de arte contemporânea dOCUMENTA - visitas guiadas (pagas) realizadas por pessoas de várias idades e backgrounds, residentes, a maioria, na cidade de Kassel, onde tem lugar a exposição. Os dTOURS tinham tido lugar pela primeira vez na edição anterior, dOCUMENTA 12, e foram motivo de várias reclamações por parte do público. Apesar da organização ter informado que as visitas seriam feitas por não especialistas, os participantes não deixaram de se sentir ‘enganados’, as suas expectativas eram diferentes. No entanto, e apesar da avaliação da iniciativa não ter sido positiva, a dOCUMENTA 13 retomou-a, com os mesmos resultados.

Várias questões se levantam aqui: Porque é que uma iniciativa se repete, nos mesmos moldes, se a sua avaliação não é positiva? Estaremos - em nome da experimentação, da exploração, da vontade de fazer mais e melhor - a ignorar necessidades básicas das pessoas, como o ouvir o que um especialista tem a dizer sobre uma determinada temática, como uma visita guiada ‘normal’, como uma legenda ‘normal’? Estaremos a caminhar para um extremo oposto, onde “o visitante é que sabe” (até “mais que o próprio artista”, para citar novamente aqui o antigo director da Tate Britain)?

O livro de Clay Shirky Cognitive Surplus: How Technology Makes Consumers into Collaborators  fala-nos do movimento pro-am (professional-amateur) e de como as novas tecnologias permitem hoje em dia aproveitar o enorme excedente cognitivo das pessoas, desejosas de contribuir com os seus conhecimentos (sem serem remuneradas, apenas por se sentirem bem, úteis, envolvidas) para projectos de todas as naturezas, causas sociais, etc. A Wikipedia é exemplo disto. Ian David Moss argumenta no seu blog Createquity que este mesmo modelo da Wikipedia poder ser aplicado na cultura, na programação ou na distribuição de apoios (ler aqui).

As pessoas continuam a procurar informação nos museus. Num artigo de Stephen Weil intitulado “The Museum and the Public” (integrado no livro Museums and their communities, editado por Sheila Watson), li que, passada a era dos museus “celebratórios” e assertivos, surgiu uma outra tendência, aquela que admite que o que se está a dizer não está fechado, poderá estar aberto a outras interpretações ou continuar a ser objecto de investigação. Vale a pena referir que foi um museu de história natural (o American Museum of Natural History) um dos primeiros a apresentar legendas onde se lia “o que sabemos até agora”, “mas podemos estar enganados, já nos aconteceu, a investigação continua”, etc. Talvez porque os cientistas estão mais confortáveis que outras especialidades com o testar e enganar-se e com o admitir que estavam errados.

Os especialistas não sabem tudo, mas sabem muito, muito mais do que nós nas suas áreas de especialidade. Encontram-se dentro e fora dos museus, são profissionais ou amadores, e juntos podem contribuir para o desenvolvimento do nosso conhecimento. Eu, como visitante, não deixo de procurar a sua opinião, a sua ‘versão’, não para a aceitar como se fosse a Bíblia, mas para com ela poder construir a minha opinião, o meu conhecimento. Ao mesmo tempo, indo além da informação, considerando que uma visita a um museu é também sentimentos, surpresas, emoções, partilha, experiências e conhecimentos prévios, memórias, o especialista - quando bom mediador ou facilitador (ou…) – saberá criar aquele espaço para o qual todos possam contribuir, com as suas ideias, as suas experiências, as suas interpretações, as suas reacções. Aquele espaço onde não há especialista e não especialista, correcto ou errado. Por isso, museu participativo para mim não é o museu que, em nome da democracia cultural, passa o ónus de uma das suas principais funções ao visitante. Museu participativo é o museu que dá as ferramentas à ‘Giselle’ (a todos nós) para construir e assumir sem medo os seus gostos, opiniões, sensibilidades e que cria o espaço para estes serem acolhidos e partilhados com todos.


Este texto baseia-se na minha breve intervenção no encerramento da conferência Em nome das artes ou em nome dos públicos, no passado dia 14 de Novembro.

Mais leituras
Museu2.0: a arte de ouvir o público, no jornal O Globo (27.11.2012)
Selling a product vs building a movement, por Nina Simon
When painting labels do their job, por Hrag Vartanian em Hyperallergic
Stories from the field: The Walters Art Museum, por Dallas Shelby
"GO", a group show at the Brooklyn Museum, por Martha Schwendener
The power of the non-experts, por Desi Gonzalez

Ainda neste blog
Somos para as pessoas… Será mesmo?
La crise oblige? (ii) Desafios na programação
Construindo uma família: lições do sector social
Livres de visitar um museu de arte
Museus: as novas igrejas?

Monday 26 November 2012

A indústria das imensas minorias

Imagem retirada do site The Long Tail.
Na manhã de 17 de Novembro mudei os planos que tinha e fui ao CCB por duas razões: o título curioso do simpósio internacional organizado pelo Lisbon Estoril Film Festival,  Arte vs. Cultura e Indústrias Culturais; e o facto do escritor Hanif Kureishi fazer parte do primeiro painel.

Acabou por ser uma experiência frustrante. Fiz um grande esforço para perceber de que forma aquilo que a maioria dos intervenientes dizia se relacionava, realmente, com o tema do simpósio, o qual me tinha parecido tão intrigante. No fim, senti-me como se tivesse assistido a uma conversa privada, que teria acontecido de qualquer forma, independentemente do título do simpósio. Rancière, Benjamin, Adorno, Horkheimer e outros foram mencionados mais que uma vez e era óbvio que alguns dos intervenientes estavam mesmo a divertir-se entre eles, enquanto eu tentava controlar a minha frustração e o sentimento que tinha desperdiçado a minha manhã.

Acabei por sair sem ter percebido a afirmação “Arte vs. Cultura”, mas acho que percebi uma outra coisa: alguns dos intervenientes lamentavam o facto da ‘indústria’ dominar a criatividade, não deixando espaço para trabalhos menos ‘populares’ ou menos ‘mainstream’ serem conhecidos (e talvez… tornar-se tão ‘populares’ ou tão ‘comerciais’ como outros?). Houve momentos em que a queixa não parecia ser o facto de terem sido deixados sem espaço, mas o facto da ‘indústria’ não lhes permitir terem audiências igualmente grandes. Confuso, não?

Achei estranho que esta pudesse ser uma questão nos dias que correm. E achei também que, se era este o assunto que era suposto ser discutido sob o título “Arte vs. Cultura e Indústrias Culturais”, o painel deveria ter incluído um ou dois oradores que pudessem ter baixado a idade média dos intervenientes dos 65 anos (Hanif Kureishi tentou, na verdade, re-centrar o debate, mencionado o que tem estado a observar entre os seus filhos e os amigos destes, confiante de que hoje em dia há muita criatividade, graças também às novas tecnologias, mas ninguém seguiu a deixa, por isso ele desistiu e, visivelmente aborrecido, concentrou-se no seu telemóvel…).

Eu também acho que estes são tempos muito criativos, especialmente no que diz respeito aos produtos de nicho. Uma criatividade sem fronteiras, que pode ser concebida, produzida e distribuída sem estar dependente das regras da ‘indústria’. Ou… que tem, realmente, um espaço graças à ‘indústria’. Considerando o caso específico dos livros (todos os intervenientes eram escritores ou argumentistas), o livro de Chris Anderson The Long Tail: Why the future of business is selling less of more  fala-nos dos inúmeros livros que nunca teriam vendido um exemplar numa livraria normal (não haveria espaço para armazenar centenas e centenas de livros que iriam vender pequenas quantidades), mas que vendem, realmente, graças à Amazon e as suas sugestões (“pessoas que compraram este livro, compraram também este”…) e graças ao facto de poder fornecer qualquer livro, uma vez que não tem que o armazenar até ser encomendado. Hoje em dia, os livros também podem ser impressos a pedido, podem ficar disponíveis na Internet, podem chegar aos lugares mais distantes (e não nos esqueçamos dos e-books).

Este é também o tempo em que jovens talentos em música podem fazer o upload do seu trabalho para quem estiver interessado, tornando-se mais conhecidos através do “like” e da “partilha”; este é o tempo em que concertos acontecem na sala de estar das pessoas; em que festivais de cinema são apresentados no You Tube. 

Sei que esta é uma matéria muito mais vasta e que não seria possível abordar aqui todos os aspectos com ela relacionados. Mas, pergunto-me, será que é negado espaço a alguém nestes dias? Não é verdade que aos nichos não é cedido espaço, mas que são eles a criar o seu próprio? Isto tudo não poderá ser uma questão sobre o quem é que procura comunicar com quem? Os produtos ‘populares’ (uso o termo no sentido das vendas, não do conteúdo) precisam provavelmente da ‘indústria’ e das grandes instituições culturais formais para a sua distribuição, mas os produtos de nicho (que podem um dia tornar-se ‘populares’) parecem capazes de viver de forma relativamente independente nestes dias, felizes de serem quem são. Será assim?


Mais leituras
A década em que todos puderam ser famosos para 15 pessoas (dossier do Jornal Público, 8.10.2010)
Culture and Class (John Holden, 2010)

Ainda neste blog

Monday 19 November 2012

Blogger convidado: "Que género de velho quer ser?", por Rebecca McLaughlin (Irlanda)


A população mundial está a envelhecer. E a ambição do Primeior-Ministro da Irlanda é que o seu país seja o melhor país pequeno do mundo onde envelhecer com dignidade e respeito. Rebecca McLaughlin, minha colega no Kennedy Center, é a coordenadora de Bealtaine, um festival de artes que nos últimos 17 anos tem estado a explorar o papel da criatividade à medida que se envelhece. Bealtaine apresenta todos os anos um programa de mais de 3000 eventos no mês de Maio, convidando as pessoas mais velhas a envolverem-se com as artes e a cultura como público, artistas, críticos ou participantes. E assim, a conversa que a Rebecca e eu não conseguimos ter em Julho passado começa agora neste blog. mv

Mary Russell da orquestra "Blow the Dust" na abertura do Bealtaine Festival em 2010. (Foto: John Ohle)
Que género de velho quer ser? Em que género de sociedade quer envelhecer? Quer continuar a ser criativo e desfrutar as artes e a cultura quando estiver nos seus 50, 70, 90 anos? Acha que a idade é uma barreira à criatividade?

O Bealtaine Festival é o primeiro festival do mundo que celebra a criatividade à medida que vamos envelhecendo. Tem lugar todos os anos em Maio em toda a Irlanda. Ao estar a coordenar Bealtaine, que é hoje o maior festival colaborativo de artes da Irlanda, estas são questões que se levantam com alguma regularidade. Se tivermos sorte, cada um de nós sentirá prazer ao envelhecer e continuará a viver e a experienciar aquelas actividades e oportunidades de afirmação da vida que as artes e a cultura proporcionam às nossas comunidades.

O Bealtaine Festival chega todos os anos a dezenas de milhares de pessoas com 55 anos ou mais, estimulando o seu envolvimento com as artes como artistas, participantes, público e organizadores. Através de parcerias com várias organizações, desde instituições culturais nacionais a bibliotecas, de unidades de cuidados a hospitais, pessoas mais velhas participam em mais de 3000 eventos ao longo do mês de Maio, incluindo música, teatro, artesanato, fotografia, cinema e literatura. ‘Bealtaine’ é a palavra irlandesa para Maio, com todas as suas associações ao crescimento, renascimento e a novos começos.

Não se pode negar que, quer se tenha 5 quer 105 anos, o acesso às artes é uma questão de equidade e cidadania – é um direito, não um privilégio. Da nossa experiência de 17 anos no Bealtaine Festival em que celebramos a criatividade à medida que se vai envelhecendo, sabemos que, entre outras coisas, uma maior participação nas artes é importante para o desenvolvimento de uma auto-imagem e identidade positiva para as pessoas mais velhas. Pode ajudar significativamente a construir ligações e promover o capital social.

A Irlanda está na primeira linha a nível internacional na defesa da criatividade à medida que se envelhece e neste momento cerca de 12% da nossa população tem mais de 65 anos (mais de meio milhão de pessoas). Em 2041 espera-se que o número de pessoas com mais de 65 anos aumente 180% (para 1,3 milhões). O nosso Primeiro-Ministro tem afirmado a ambição de tornar a Irlanda no melhor país pequeno no mundo onde envelhecer com dignidade e respeito.

’Velho’ é uma palavra difícil para muitos. De acordo com a nossa experiência, se perguntarmos às pessoas o que é que consideram ser ‘velho’, falarão invariavelmente de uma idade que ultrapasse a delas por 10 anos! No Festival, estamos mais à vontade para falar sobre o processo de envelhecimento em vez de ‘estar velho’ como uma espécie de destino no fim de uma viagem. É impossível colocar todas as pessoas entre os 55 e os 105 anos numa categoria homogénea de ‘velho’. Um dos objectivos do festival é desafiar esses estereótipos e as percepções negativas sobre o ficar mais velho. Concentramo-nos nas capacidades das pessoas mais velhas e abraçamos o seu valor e contributo para a sociedade.

Trabalhando no projecto "Wandering Methods" durante o Bealtaine Festival de 2012. (Foto: Lian Bell)
Com cada Bealtaine Festival, ficámos inspirados e encantados com os talentos criativos que se redescobrem ou com as novas capacidades adquiridas pelas pessoas que atendem e pela paixão de fazer arte, o que para certas gerações de Irlandeses simplesmente não fazia parte da sua educação formal ou do seu mundo. Para os nossos organizadores do Bealtaine, o mês de Maio está integrado na sua agenda cultural anual como um tempo para se concentrarem naquilo que oferecem às pessoas mais velhas. Para muitos deles, ‘pessoas mais velhas’ tem-se tornado mais num conceito abstracto e ao longo do tempo têm sido desenvolvidas entre as instituições culturais e as pessoas mais velhas actividades sustentáveis e verdadeiras relações a vários níveis; por exemplo,  de um projecto original na edição de 2010 surgiu uma orquestra permanente de pessoas mais velhas, chamada “Blow the Dust off your Trumpet” (sacode o pó do teu trompete), residente hoje no National Concert Hall em Dublin.

As tendências demográficas são claras – mais de um quinto da população mundial (22%) terá mais de 60 anos em 2050 – o dobro da actual população sénior. Nos EUA, daqui a 10 anos as pessoas mais velhas serão mais do que as crianças e um em cada três bebés nascidos hoje pode esperar viver até aos 100 anos. Quando muitos de nós estamos a lutar para atrair públicos novos e a tentar fazer malabarismos para lidar com a actual situação económica, vale a pena considerar que o grupos dos que têm mais de 50 anos detém 80% da riqueza nos EUA e 75% na EU.

Na actual sociedade, é preciso pensar radicalmente todo o leque de políticas públicas em todas as áreas, desde o emprego e a saúde às pensões. Como devemos lidar com este desafio demográfico do envelhecimento? Como podemos dar resposta às necessidades e os requisitos em constante mudança da nossa população mais velha? O envelhecimento da população e especialmente o aumento do número de pessoas no grupo dos ‘velhos mais velhos’ têm muitas implicações relacionadas com a idade (por exemplo, um aumento dos casos de demência) que exigem respostas inovadoras e sensíveis que possam garantir a inclusão desta população. Como gestores culturais e curadores, precisamos de reflectir sobre as vidas da população que está a envelhecer e permanecer relevantes para ela. Se não o fazemos ainda, deveríamos, então, começar a investir no acesso e nas oportunidades de participação para envolvermos os nossos públicos mais velhos e construir relações com eles. Ocupamos um lugar único na construção deste futuro, um dia, eu e você faremos parte desses públicos mais velhos.

Por isso, pensando nisto… “Que género de velho quer ser?!”


Rebecca McLaughlin é a coordenadora de Bealtaine Festival. Previamente, tinha sido Exhibitions Curator para o programa de exposições temporárias da Dublin City Gallery The Hugh Lane, que reúne uma das mais importantes colecções de arte moderna e contemporânea da Irlanda e integra o estúdio remodelado do artista Francis Bacon. No Reino Unido, foi Marketing Manager para o lançamento de The New Art Gallery Walsall, um projecto pioneiro de £21 milhões nos West Midlands, que apresentou a primeira Children's Art Discovery Gallery no Reino Unido. Estudou em University College Dublin e na Universidade de Leicester e é Fellow no DeVos Institute of Arts Management no Kennedy Centre em Washington.


Monday 12 November 2012

O lobby da "ficção cultural"


Fernando Birri (Foto retirada de www.extracine.com)
Estou envolvida num projecto europeu chamado CETAID – Community Exhibitions as Tools for Adult Individual Development. Reúne parceiros de quatro países europeus: Hungria, Reino Unido, Itália e Portugal. No mês passado, os parceiros reuniram-se pela primeira vez em Manchester e Londres. Em três dias intensos de encontros, troca de experiências e de ideias, tornou-se mais uma vez óbvia a grande distância entre as práticas e preocupações actuais no Reino Unido e nos restantes países. Muito frequentemente em encontros como este vejo expressões de frustração e desespero nas caras das pessoas, às vezes acompanhadas de comentários de auto-sarcasmo ou auto-lástima. Para os nossos colegas britânicos, as nossas realidades foram as deles há 10 ou 20 anos (em alguns casos, há mais até…). Aquilo que estamos ainda desesperadamente a tentar alcançar, eles fizeram-no há muito tempo. Já o avaliaram, já o criticaram, já o desenvolveram mais.

Questão nº 1: Para que serve juntar realidades que estão tão distantes entre elas? Para que serve colocar à volta da mesma mesa instituições e profissionais com diferentes visões, diferentes prioridades e diferentes meios?

Num segundo encontro com a colega polaca que referi num post anterior, tivemos uma longa conversa sobre assuntos que parecem ser comuns nos nossos países: uma visão relativamente curta para o sector cultural (em alguns casos inexistente), falta de profissionais qualificados (sobretudo no que diz respeito à gestão), falta de espaço para se discutir ideias e abordagens novas, onde a maioria das pessoas parece sentir a necessidade de lançar foguetes apenas porque as coisas acontecem, sem considerar como é que deveriam ter acontecido e como pode e deveria ter sido planeado o seu futuro (vale mesmo a pena ler o artigo de Inês Fialho Brandão Os museus da crise, sobre a anunciada criação de um novo museu municipal em Peniche; mais uma vez, foi impressionante ver, na discussão que se seguiu no Facebook, como as pessoas estão dispostas – talvez também necessitadas – a lançar foguetes apenas porque uma câmara municipal teve esta ‘nobre’ ideia).

Questão nº 2: Os profissionais da cultura que pensam diferente terão um lugar ou até um  impacto num sector que parece ainda ser bastante conservador, bastante amador, determinado em evitar qualquer tipo de avaliação, e mais preocupado em arranjar garantias de bem-estar pessoal/profissional em vez de servir os objectivos das instituições culturais e cumprir as suas obrigações perante a sociedade?

Pensei muito em ambas estas questões. E acho que estão relacionadas até.

O escritor uruguaio Eduardo Galeano conta a história de uma conferência que ele e o seu amigo Fernando Birri, o cineasta argentino, deram numa universidade. Aparentemente, quando questionado por um estudante “Para que serve a utopia?”, Birri respondeu: “A utopia está no horizonte… Sei muito bem que nunca a vou alcançar… Mas é para isso que serve a utopia: para caminhar.”

As realidades que são muito diferentes ou muito melhores ou muito distantes da nossa são esse género de utopia que serve para continuar a caminhar. Inspiram-nos, fazem-nos querer ser melhores, ajudam-nos a sonhar. Quando era mais nova, sentia-me frustrada por não as poder alcançar, ou por não as alcançar suficientemente rápido. Aquilo que aprecio hoje em dia quando as encontro é o conforto de saber que estão por lá, existem, alguém as fez acontecer, nós também podemos.

Há momentos em que aquilo que no dia anterior era uma utopia, no dia seguinte passa a ser realidade. Para se tornarem realidade, essas ‘utopias’ precisam de pessoas que pensam diferente, que têm uma visão, que são persistentes, que trabalham muito e que são boas naquilo que fazem. Pode levar tempos e tempos até haver efectivamente uma mudança, mas essas pessoas podem ter um impacto e têm um impacto. No entanto, não conseguem fazê-lo sozinhas, especialmente quando são mais novas, pouco conhecidas no seu meio profissional, quando não têm uma posição que lhes permita tomar ou influenciar decisões. Por isso, precisam de identificar os seus pares (e por ‘pares’ não quero dizer pessoas que pensam igual, quero dizer pessoas que tem uma mente aberta, que estão abertas ao diálogo, que querem fazer mais e melhor); precisam de criar o seu próprio espaço, a sua própria plataforma de expressão e debate, para que a sua voz possa ser ouvida (e hoje em dia conseguir um “gostei” e ser amplamente “partilhada”); precisam de se apoiar uns aos outros para evitarem a exclusão e o isolamento; e assim nasce o lobby da "ficção cultural”.

Monday 5 November 2012

Blogger convidado: "Uma questão de valor", por Rebecca Lamoin (Austrália)


Há umas semanas, no meu post Sobre o nosso valor público, mencionei que Rebecca Lamoin, fellow no Kennedy Center e Directora Associada no Queensland Performing Arts Centre, estava a organizar um fórum de dois dias sobre o valor público das instituições culturais. Durante a preparação deste projecto, Rebecca fez a vários gestores culturais três perguntas cruciais: “Qual é a coisa mais importante que a sua organização fornece à sua comunidade? Porque é que a sua comunidade gosta da sua organização? De que é que as pessoas na sua cidade sentiriam falta se a sua organização deixasse de existir?”. Conforme prometido, Rebecca dá-nos agora feedback sobre o fórum. Não nos podemos esquecer que este é só o início do projecto, teremos, portanto, curiosidade em saber do seu desenvolvimento nos próximos meses e do resultado final. Por isso, tenho a certeza que voltaremos a ter notícias da Rebecca. mv

In Whose Interest?  Debate transmitido pela ABC Radio National. Da esquerda para a direita: Rhonda White (Membro do QPAC Board), Mark Moore (Harvard University), Julianne Schultz (Griffith University) e Paul Barclay (amfitrião, Big Ideas, ABC Radio National). Foto: QPAC

Na introdução do livro On Kissing, Tickling and Being Bored, Adam Phillips refere-se à psicanálise como uma história, ou uma forma de contar histórias, que faz as pessoas sentirem-se melhor. Ao fazer esta afirmação, Phillips demonstra as suas capacidades tanto como psicoterapêuta como também como mestre louvado da língua. Lembra-nos que um dos principais objectivos de contar histórias é fazer as pessoas sentirem-se melhor – com elas próprias, com os outros e com o mundo. De repente, apercebo-me que esta é também uma das principais ambições da arte.

Como gestores culturais, também nós procuramos histórias como uma forma de projectar uma luz ou uma sombra diferente sobre pessoas, lugares e ideias. Ao desenvolver recentemente um projecto, apercebi-me que a capacidade de criar uma narrativa sólida e cativante é-nos solicitada não apenas na curadoria de programas para os nossos públicos, mas também na comunicação do fim principal das organizações para as quais trabalhamos. 

O projecto do valor público

O projecto do valor público, apesar de lhe faltar um título poético, pretende, mesmo assim, iluminar os pontos importantes numa narrativa sobre um grande centro de artes performativas e a sua interligação com as comunidades que está a servir.

O Queensland Performing Arts Centre (QPAC) é uma das principais instituições culturais da Austrália e ao longo dos seus 27 anos de história tem servido as pessoas de Queensland, o segundo maior estado do país. O QPAC atraiu no último ano mais de um milhão de visitantes e apresentou mais de 1400 espectáculos, desde comédia à dança, música, musicais, teatro, entre outros. Tem estabilidade financeira e está a crescer em termos de reputação e capacidade. É um centro de grande sucesso, de todos os pontos de vista. Ao perguntarmos a nós próprios “E agora, o que é que se segue?”, e sabendo que crescimento não significa simplesmente expansão, olhámos colectivamente para trás para reflectirmos sobre a nossa missão, o nosso propósito principal. O que é que queremos ser exactamente, qual é a história, a narrativa mais abrangente do nosso Centro?

Construímos um projecto que se desenvolverá ao longo de um ano com o principal objectivo de moldar uma história partilhada sobre aqueles aspectos do nosso trabalho que nos distinguem pelo que conseguimos fazer no passado e que definem a próxima década. Temo-nos apoiado muito no trabalho de um líder na área da gestão pública, Mark H. Moore, Professor na Universidade de Harvard. O seu livro seminal Creating Public Value: Strategic Management in Government teve, em meados dos anos 90, um grande impacto sobre o discurso de políticas públicas em todo o mundo. O seu conceito de ‘público’ é simultaneamente simples e complexo e não lhe faço justiça ao tentar resumi-lo aqui, mas tento na mesma: as empresas privadas existem para criar valor para os accionistas, as organizações públicas existem para criar valor público. As nuances aparecem quando surgem questões sobre o que é que constitui valor público e quem é que decide o que é. Moore propõe essencialmente que as organizações públicas criam valor quando cumprem as ambições sociais integradas nas suas missões.

Professor Mark H. Moore

Na semana passada, o QPAC teve a sorte de receber o Prof. Mark Moore que durante dois dias debateu connosco o que é este conceito significa para um centro de artes performativas público. Este não é território desconhecido para o Professor. Dedicou vários anos a um trabalho encomendado pela Arts Midwest e a Wallace Foundation que estudou a forma como 13 organizações culturais públicas nos EUA criaram valor público (ver aqui)

O Professor Moore fez uma comunicação pública, participou numa discussão na rádio a nível nacional e moderou workshops com membros do nosso Conselho Consultivo e com os nossos funcionários que procuraram proporcionar uma introdução às questões e às práticas relacionadas com o valor público e também apoiar o QPAC a seguir em frente.  Pormenores das suas sessões podem ser encontrados aqui.

Valor público, uma introdução. Conferência aberta ao público. (Foto: QPAC)
Resultados

Mais de 400 pessoas apareceram para ouvir o prof. Moore. Representantes do governo, do mundo empresarial, do sector da educação, das organizações sem fins lucrativos e de grandes e pequenas instituições culturais. O QPAC quis partilhar a presença deste grande pensador durante a sua breve estadia connosco. Para o resto da cidade, foi uma oportunidade para dar voz e espaço a um assunto que é claramente actual, relevante e que talvez ofereça uma forma de explorar as complexidades da liderança pública contemporânea.

Durante o tempo que passou com o Conselho Consultivo e os funcionários do QPAC, as questões colocadas pelo Prof. Moore foram ao mesmo tempo provocadoras e reconfortantes. Desafiou-nos a considerar o que somos, o que é que aqueles que nos dão autoridade querem que nós sejamos e o que temos a capacidade de fornecer. Como instituição cultural, considerámos o território entre os nossos feitos – excelentes programas, grandes audiências e sucesso financeiro – e a conquista genuína em criar uma cidadania melhor e mais envolvida através da arte.

O que é que se segue?

O projecto de valor público do QPAC continua nos próximos meses com uma discussão mais aprofundada na própria organização, mas que se expandirá para incluir um diálogo rico com os nossos parceiros, colegas e comunidades. A nossa reflexão e aprendizagem será integrada no nosso próximo ciclo de planeamento e será, com certeza, evidente, em tudo o que fizermos ao seguirmos em frente.

Na próxima fase do projecto enfrentamos o desafio de definir exactamente que género de valor procuramos criar e, claro, o desafio inevitável de como vamos medi-lo. É um desafio que estamos prontos a abraçar.

As grandes instituições, criadas para servir o público, beneficiam quase sempre de momentos de reflexão honesta, resultado de um desejo genuíno de serem melhores no que fazem. Se principalmente facilitamos as formas como as pessoas partilham histórias, então talvez o resultado mais significativo da visita do prof. Moore e do nosso trabalho tenha sido que nós também iremos encontrar novas formas, a nossa própria forma para contar a história de como trabalhamos com as comunidades que servimos para criar valor público através da arte. 
 

Rebecca Lamoin é Directora Associada de Estratégia no Queensland Performing Arts Centre em Brisbane, Austrália. Trabalhou em pequenas e grandes organizações culturais, tendo assumido vários papéis relacionados com múltiplas formas artísticas, incluindo as artes performativas, as artes visuais, a literatura e os festivais. É licenciada em jornalismo e Mestre em Políticas Culturais.
É Fellow do DeVos Institute of Arts Management no Kennedy Center for the Performing Arts em Washington.

Monday 29 October 2012

Qual - ou quem - é a barreira?

Castelo de Mértola (Foto: Fátima Alves)

Uma família chega ao sopé do castelo de Mértola. Tem quatro crianças, uma delas com mobilidade bastante condicionada; um rapazinho nos seus 10-11 anos. Um dos irmãos pega no andarilho e transporta-o a correr até ao topo dos degraus que levam à entrada do castelo. A mãe apoia o seu filho no braço e começam os dois a subir lentamente os degraus. A meio, sugere-lhe fazer uma pausa. O rapaz prefere continuar. Faz um esforço enorme para colocar o pé, que treme do cansaço, no degrau seguinte. Não quero ultrapassá-los; sigo-os, quero acompanhá-los no seu ritmo. Chegando à entrada do Castelo, o rapaz finalmente descansa. A mãe avança um pouco para avaliar a dificuldade do resto do caminho.

Assisti a esta ‘subida ao castelo’ no fim de uma semana em que participei em dois encontros sobre museus e acessibilidade: o seminário anual do GAM – Grupo para a Acessibilidade nos Museus, no Seixal, intitulado Programar para a Diversidade, e o 1ºEncontro Transfronteiriço de Profissionais de Museus, em Alcoutim. Dias antes da realização do seminário do GAM, encontrei-me com uma colega polaca que me colocou a seguinte questão: “O que esperas destes encontros”?

Fala-se bastante de acessibilidade entre os profissionais de museus, cada vez mais. E o conceito de ‘acessibilidade’ está constantemente a crescer e a alargar-se. Não se trata apenas da preocupação em e da obrigação de dar resposta às necessidades das pessoas com deficiência (física e cognitiva), mas de um amplo leque de necessidades intelectuais, sociais e culturais dos cidadãos. Trata-se, ainda, de gerir e de saber aproveitar uma cada vez maior vontade e necessidade das pessoas em estarem envolvidas no processo de tomada de decisões, de forma a que se revejam nos produtos finais propostos pelos museus ao público (a minha comunicação sobre este tema em Alcoutim encontra-se disponível na coluna da direita).

Escrevo este texto quase uma semana depois e apercebo-me que as coisas que mais me marcaram nesses dois encontros e que mais me fizeram reflectir estão todas ligadas a questões de mentalidade, da nossa mentalidade, dos profissionais de museus.

Fernando António Baptista Pereira, professor na Faculdade de Belas-Artes e comissário de várias exposições apresentadas em Portugal e no estrangeiro, fez a conferência de abertura no seminário do GAM. Questionado sobre a sua melhor e a sua pior exposição, não hesitou em admitir que as suas piores exposições, apesar de lindíssimas, foram aquelas que fez para os seus pares, aquelas que não foram feitas a pensar no público em geral. Dá esperança ouvir isto da parte de alguém que comissariou e voltará a comissariar exposições que atraem um grande número de pessoas. E como Fernando António Baptista Pereira, haverá, com certeza, mais profissionais desta área (comissários, directores de museu, curadores) que, mesmo que não o digam, tenham consciência que assim é. Por isso, uma pessoa fica a pensar quando é que podemos esperar ver nos museus portugueses, e em particular nos museus nacionais (públicos) portugueses, exposições que possam ser entendidas pelos não-especialistas que as visitam e que são a maioria dos visitantes. Exposições que possam ser fonte de novos conhecimentos, de verdadeiro prazer e de descoberta, em vez de um meio de comunicação e de diálogo entre poucos entendidos e uma fonte de frustração para os restantes?

Em Alcoutim, assistimos à apresentação de Maribel Rodriguez Achutégui “Redacção de textos expositivos para todos os públicos”, que veio lembrar-nos que é possível, sim, escrever para todos, sem infantilizar, sem banalizar o discurso, sem pôr em causa a precisão científica da informação apresentada. A alguns de nós, a sua apresentação trouxe memórias do excelente seminário Sabe escrever para todos? A acessibilidade da comunicação escrita nos museus, o primeiro seminário anual do GAM, em 2006, que contou com duas presenças marcantes: a de Helen Coxall (consultora em museum language – sim, a especialidade existe, assim como existe extensa bibliografia sobre a matéria, que em parte se encontra no site do GAM) e a de Julia Cassim (designer ligada ao Helen Hamlyn Centre for Inclusive Design). Mais tarde nesse ano, Helen Coxall fez um memorável workshop, Am I Communicating? Writing effective museum texts, organizado pelo GAM na Fundação Calouste Gulbenkian. Qual terá sido o impacto dessas iniciativas em Portugal? Quem trabalha em serviços educativos queixa-se frequentemente da dificuldade em ‘convencer’ comissários e directores de museus da necessidade dos textos (para as exposições, mas também para todos os suportes de comunicação do museu) serem escritos  numa linguagem mais acessível (se bem que as excepções existem: lembro-me, por exemplo, dos textos da exposição sobre o automóvel no Museu dos Transportes e Comunicações no Porto ou dos do Museu da Comunidade Concelhia da Batalha, para referir apenas dois). Uma pessoa fica a pensar, porque é que é que tão difícil convencê-los? Será que nunca ouviram as queixas dos seus visitantes, destinatários últimos, diz-se, desta oferta? Ou será que não se importam?

Uma outra apresentação brilhante e muito ‘educativa’ foi a do designer gráfico Filipe Trigo, que nos trouxe uma série de exemplos daqueles que já todos temos visto nas nossas visitas a museus e exposições: bíblias na parede (ou book on the wall), letra pequena, legendas escondidas ou colocadas muito baixo ou muito alto, contrastes que tornam a leitura impossível, anarquia na apresentação dos conteúdos (que ficam onde der mais jeito, sem uma lógica por trás). Esta apresentação merecia ser vista por comissários e directores de museus, mas também por designers gráficos, uma vez que não existe consenso sobre quem é que impõe soluções a quem. Existe é uma desconfiança mútua e talvez alguma indefinição sobre o papel de cada um e, entre os dois, sobre o papel dos museólogos e/ou profissionais dos serviços educativos e/ou profissionais da comunicação. Não faria sentido que cada um fosse ouvido sobre a sua área de especialidade, com o objectivo final de servir melhor as necessidades dos visitantes?

Hoje poderia responder melhor à pergunta da colega polaca, “O que esperas destes encontros?”. Espero que da próxima vez que se organizar um encontro para se falar de acessibilidade (qualquer tipo de acessibilidade) haja mais directores de museu, comissários de exposições, arquitectos e designers na audiência. Esta não é uma questão que diga apenas respeito aos serviços educativos. Diria até que diz cada vez mais respeito àqueles que tomam as decisões finais. Para que serve sensibilizar e preparar tecnicamente nos cursos de museologia futuros profissionais, que só daqui a 20 ou 30 anos estarão numa posição de tomar decisões, se nos próximos 20 ou 30 anos continuarem a encontrar a maior barreira de todas dentro dos próprios museus? Se estes encontros continuarem a ser uma oportunidade para se encontrarem os já sensibilizados e para concordarem entre eles, o seu impacto, então, continuará a ser mínimo ou quase inexistente. Há necessidade de assumir compromissos e não ficar pelo discurso politicamente correcto. Há também a obrigação de cumprir a lei. E tem que ser agora, não daqui a 20-30 anos. Não custa nada (e não custa mais…).


Vídeos
Joaquina Bobes, Textos expositivos y visitantes: ¿hablamos el mismo idioma? 
Julia Cassim, Inclusive design