Monday 25 March 2013

O começo e o final de uma semana a p&b em Viena


Angelo Soliman (imagem retirada de www.economist.com)
Chego a Viena numa sexta à noite. A cara do taxista diz-me que o seu país de origem poderá ser algures no Médio Oriente. Não fala inglês, por isso, não podemos falar. Alguns minutos mais tarde atende uma chamada. Oiço-o falar turco. “So, you´re from Turkey?”, pergunto quando desliga. Olha para mim através do retrovisor surpreendido e pergunta-me (provavelmente): “Percebe turco?”. Digo-lhe “Yunanistan” (“Grécia” em turco). Olha para mim ainda mais surpreendido e exclama: “You?! Yunanistan?!”. E continua em inglês: “Me, you, no problem, no problem.” Sorrio: “No problem”, digo-lhe. Quando chegamos ao hotel, agradeço-lhe em turco. Parece estar contente. 

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Estou em Viena para um workshop sobre racismo e consciência cultural, financiado pelo Grundtvig, o programa da União Europeia de aprendizagem ao longo da vida – começa na segunda. A formadora principal é uma mulher preta que parece ser dinâmica e muito autoconfiante. Os participantes vêm da Bulgária, Roménia, República Checa, Polónia, Alemanha, Irlanda, Holanda, Reino Unido, Espanha e Turquia. Pessoas pretas e brancas – ou uma espécie de pretas e uma espécie de brancas – muitas originárias de países diferentes daqueles onde hoje residem, pessoas de várias idades e áreas, reunidas em Viena para debaterem o racismo.

É-nos pedido para falarmos das nossas expectativas face ao workshop. Digo-lhes que espero que as minhas ideias sobre o racismo sejam desafiadas, que o meu pensamento se desenvolva, porque sei que nenhum de nós se considera racista, mesmo assim, poderíamos ficar surpreendidos.

Um pouco mais tarde, é-nos dada pela formadora uma definição do racismo: “Racismo é discriminação com poder numa sociedade dominada pelos brancos.” Esta definição não me deixa confortável.

“Vê o racismo hoje em dia como algo que apenas os brancos fazem contra os pretos?”, pergunto.
“Não sou eu que o estou a dizer”, responde a formadora, “é assim que tem sido definido.”

E nesse momento, com aquele género de resposta, sei que a semana que temos pela frente será mais complicada e menos interessante do que tinha antecipado. Mas desafiante, mesmo assim.

São várias as razões porque esta experiência me deixou profundamente preocupada e desiludida, para além de me fazer sentir desconfortável.

Em primeiro lugar, ao longo da semana, fomos bombardeados com afirmações (algumas delas sendo sérias imprecisões históricas), raramente, ou melhor nunca, fazendo referência a qualquer fonte bibliográfica e sem espaço para serem discutidas: assim, foi-nos dito que deveríamos esquecer os filósofos Gregos antigos e o seu contributo para a cultura europeia e mundial, porque tinham sido vistos no Egipto (só isso, “tinham sido vistos”); que Heródoto tinha feito a descrição de Cleópatra como tendo traços africanos (como, se viveu cinco séculos antes dela?); que Alexandre o Grande incendiou a biblioteca de Timbuctú (bem, acho que não se aventurou por esses lados); que os médicos hoje fazem um juramento escrito por um médico egípcio (mmm… será de Hipócrates que estamos a falar?).

Em segundo lugar, havia uma determinação em fazer calar qualquer pessoa, preta ou branca, que estaria a tentar colocar o racismo numa perspectiva mais contemporânea, mais ampla. Era-nos dito que este não era o tema do workshop ou os nossos comentários e questões provocavam risos irónicos ou respostas agressivas, uma vez que o nosso desejo para haver debate era visto como uma tentativa de minimizar a seriedade do racismo dos brancos contra os pretos a fim de lidarmos com a nossa “culpa de brancos”. Os argumentos para apoiar esta tese continuavam a chegar. Num passeio pela cidade (chamado “Black Vienna” no programa do workshop), uma jovem mulher preta – que vive na Áustria desde os 2 anos e que tem hoje nacionalidade austríaca – partilhou a história da sua participação numa peça de Tennessee Williams, fazendo de empregada (um papel típico reservado a actores pretos, disse-nos). Sentiu-se desconfortável com o uso da palavra “nigger” (preto) no texto de Williams. Queria que fosse substituída (vamos ver: teria ficado satisfeita se tivesse mudado um texto escrito nos anos 50 que apresentava uma história no sul dos EUA, onde um personagem branco (provavelmente racista) que queria rebaixar um preto usasse talvez o termo “african american” em vez de “nigger”? E talvez a criada devesse ser interpretada por uma actriz branca? A sério, é assim que se vai combater o racismo?). Depois disto, continuando o nosso passeio, fomos levados ao parque da cidade e foi-nos mostrado o local onde um jovem preto tinha sido atacado pela polícia com enorme gravidade (presumivelmente por ser preto), onde a ambulância demorou séculos para chegar, resultando o incidente na morte do jovem (umas semanas antes tinha ocorrido em Salónica, na Grécia, um incidente bastante parecido, quando a polícia não gostou do aspecto “anarquista” de um jovem – branco…).

A aparente incapacidade da comunidade preta de Viena em se organizar para lutar pelos seus direitos e para partilhar de forma mais ampla as suas preocupações com a sociedade vienense deixou-me também apreensiva e algo surpreendida. Foi-nos contada a história de Angelo Soliman, um homem preto que chegou a Viena no século XVIII e era muito respeitado pela sociedade local e um companheiro do imperador pela sua inteligência e vastos conhecimentos e até se casou com uma mulher branca… para depois da sua morte ser embalsamado e exposto no Museu de História Natural. Uma exposição do Museu de Viena sobre Soliman uns anos atrás foi severamente criticada pela nossa guia, pela forma como representava as pessoas de África, mas, aparentemente, não houve nenhuma reacção oficial da comunidade preta (mais sobre a exposição aqui). Mais tarde, quando perguntámos que tipo de associações tinham para serem representados na sociedade austríaca e nas suas relações com o Estado austríaco, foi-nos dito que este género de associação não era possível, uma vez que a maior comunidade africana era da Nigéria e as pessoas pertencem a tribos diferentes e no passado rivais… Como pode ser que sejam todos “um” (“pretos” ou “africanos”) quando atacados ou discriminados, mas que as tribos se metam no caminho quando é suposto organizarem-se?

Por último, uma outra razão de preocupação: a óbvia raiva e igualmente óbvia incapacidade (ou falta de vontade) de colocar as coisas numa perspectiva diferente. Quando foi mencionado o caso de Zimbabwe, e concretamente a forma como os brancos tinham sido tratados pelo governo de Mugabe, foi-nos dito que tinha sido feita justiça. Os pretos viviam lá desde sempre, os brancos chegaram depois, por isso, mesmo que nasçam e cresçam naquele pedaço de terra há décadas, não lhes é permitido chamá-lo “seu”… Por outro lado, jovens que hoje em dia são oficialmente Austríacos (pretos) – depois de terem vivido durante alguns anos no país – reclamam furiosos contra o racismo e a discriminação austríacos. Estão convencidos (ou preferem pensar, para poderem continuar a alimentar a sua raiva) que qualquer coisa que aconteça a um preto é porque é preto.

Não estou a negar este género de racismo – ao contrário, se o estivesse a fazer, não teria ido a Viena -, mas nas suas repetidas tentativas de nos fazer ver uma vítima preta, alguns de nós víamos simplesmente uma vítima: um pobre, uma mulher, um homossexual, um cigano… Fiquei muito impressionada quando um participante do Senegal, que vive hoje em Barcelona, nos disse que, quando um rapaz do Senegal foi assassinado por ciganos (que estavam a gritar “mata o preto”…), a comunidade recusou-se a ver este incidente como um crime racial e concentrou-se no crime, no homicídio que deveria ser punido. Tinha sido uma opção consciente para evitar virar uma comunidade contra a outra. O homicídio tinha sido visto como um homicídio.

E sinto que este poderá ser o caminho. Considerando que existe apenas uma raça, a raça humana, o racismo hoje em dia para mim só pode ter um significado metafórico. É discriminação com poder (independentemente da cor do discriminado e de que detém o poder). Numa entrevista com Mike Wallace, Morgan Freeman considerou o Black History Month “ridículo”, recusando-se a ver a sua história reduzida a um mês. Quando o jornalista lhe perguntou “Então, como vamos ver-nos livres do racismo”, simplesmente respondeu: “Parem de falar sobre isso. Vou parar de te chamar branco e vais parar de me chamar preto. Sou Morgan Freeman para ti, e és Mike Wallace para mim.”




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No final da semana, esperando pelos nossos voos no aeroporto – quatro de nós, pretas e brancas de diferentes origens – estamos a falar de viagens e depois das companhias low cost e dos seus serviços. Uma de nós, preta, conta-nos a história da sua tia que vinha para a Europa com a Easyjet e foi-lhe dito para esperar algures para fazer o check-in, tendo sido “esquecida” propositadamente e obrigada a comprar um bilhete novo. “Estão a ver, é o que fazem aos Africanos.”

Mais leituras

Diane Ragsdale, Are we overdue to amend our default cultural policy? (um post muito interessante sobre o impacto do 'quadro racial branco' no sector cultural)

Molefi Kenti Asante, An african origin of philosophy: myth or reality?





Spectra, What kind of African doesn´t speak any african languages? Me.

Monday 18 March 2013

Blogger convidado: "Festival dos festivais", por Gustavo Gordillo (Colómbia)

No verão passado ouvimos no Kennedy Center a história de Fanny Mikey, uma actriz colombiana, nascida na Argentina, que era uma daquelas pessoas que podem mover montanhas para conseguirem aquilo que querem. E uma das coisas que ela queria era promover as artes na Colómbia. Uma das suas maiores conquistas foi a criação e organização do Festival Iberoamericano de Teatro de Bogotá. Fanny Mikey morreu em 2008, mas as pessoas que com ela trabalharam estão determinadas em continuar a fazer acontecer o maior festival de teatro do mundo. O nosso colega Gustavo Gordillo é o director criativo e aceitou partilhar connosco a sua reflexão sobre o festival que tem mudado o cenário cultural e social da Colómbia. mv

Sara Says, Teatro Petra, Colómbia (Foto: Juan Antonio Monsalve)
Qual é a primeira coisa que vos vem à cabeça quando ouvem falar da Colómbia? Se ainda pensam na violência ou no cartéis de tráfico de drogas, deveriam reconsiderar. A verdade é que nos últimos dez anos o país tem feito uma viragem e é hoje considerado um dos quatro países no mundo com maior desenvolvimento económico, sendo ainda um país com uma economia muito estável. Aqueles tempos difíceis, quando todos pensavam que os Colombianos eram uma ameaça para a sociedade e que nada iria mudar no país, foram deixados para trás. Mesmo assim, há muito ainda por fazer.

A Colómbia, um país com uma localização estratégica no sul do continente americano, tem reduzido os seus principais problemas sociais e tem começado a mostrar grandes avanços em campos artísticos como o cinema, a música, a literatura, o design, a tecnologia e o teatro.

Bogotá, a capital, com 9 milhões de habitantes, é o sítio onde a maioria destas mudanças têm sido implementadas. Tem desenvolvido uma cultura social (dantes praticamente inexistente) e as atitudes dos seus cidadãos estão num processo constante de transformação. Um reflexo deste processo é, talvez, a mais importante instituição cultural dos últimos tempos: o Festival Iberoamericano de Teatro de Bogotá.

E não é de admirar, uma vez que desde a sua concepção, há 28 anos, houve 13 edições. Foram convidadas mais de 2.000 companhias de teatro de 60 países; aproximadamente 3 milhões de pessoas frequentaram todos os anos os teatros e assistiram a eventos de rua na capital, e foram envolvidos aproximadamente 7000 espaços. As actividades educativas foram frequentadas por 20.000 estudantes e quase 30.000 artistas pisaram os palcos dos teatros da cidade. Foi preciso muito esforço e trabalho para se chegar a estes números. A fundadora do festival inventou este evento cultural numa cidade localizada a uma altitude de 2600 metros, uma cidade recordada por ser fria e chata, que não tinha nada para celebrar.

Fanny Mikey, a fundadora e directora do festival, conseguiu mudar a opinião das pessoas, tirando-as das suas casas numa altura difícil para a cidade e para o país, onde a violência, o medo e a impunidade reinavam nas ruas. Desde o primeiro festival, a violência ameaçou a sua existência quando uma bomba explodiu num dos mais importantes teatros. O incidente ocorreu em 1099, na altura mais trágica e difícil da história recente da Colómbia. Sem vítimas mortais, mas com muito medo, era esperado que o festival fechasse as suas portas, mas o público reagiu enfrentando o medo, opondo-se à ilegalidade e assistindo em massa aos eventos. A cultura surgiu como a arma certa para confrontar o flagelo da violência… e o festival continuou.

Desfile inaugural (Foto: Juan Antonio Monsalve)
O público de Bogotá abraçou o festival como se fosse sua propriedade e, desde aquela altura até hoje, as pessoas esperam com ansiedade pela edição seguinte, realizada de dois em dois anos, e assistem em massa aos vários espectáculos, celebrando com diferentes artistas de todo o mundo o maior festival de artes performativas. 

O Festival Iberoamericano de Teatro de Bogotá tonrnou-se no maior festival do mundo. Artistas e encenadores vêm de todos os cantos, como se chegassem a um oásis cultural, onde os espera um público ansioso para conhecer outras culturas. O festival tornou-se num palco prestigiante para actores e encenadores, que voltam e continuam a participar sem interrupções. É por isso que hoje, depois de 13 edições, o sentido de orgulho dos habitantes da cidade neste evento permanece intacto.

O festival apresenta programação para toda a família e pensa também em todos os sectores da população. Começa com um enorme desfile, onde o público da cidade dá as boas-vindas aos países que participam, e que se realiza na avenida principal da cidade e que acaba na praça central. Ali, um concerto dá as boas-vindas a mais de 40.000 participantes, no primeiro evento de entrada livre. Depois disso e durante 17 dias, os 40 teatros mais representativos da capital apresentam produções de todos os continentes. Ao mesmo tempo, o melhor do teatro de rua é apresentado gratuitamente em parques, ruas movimentadas e centros comerciais.

As actividades educativas são de grande importância, uma vez que a maioria dos artistas convidados tornam-se mentores e formadores, realizando workshops e seminários para mais de 1.500 estudantes interessados em aprender sobre as formas artísticas. Este é também um mercado que junta produtores de todo o mundo, criando espaço para todo o tipo de projectos criativos.

Players of Light, Groupe, França (Foto: Juan Antonio Monsalve)
No fim de cada dia, os participantes partilham as suas experiências num espaço onde todos falam a mesma língua: a música. Diferentes bandas tocam música ao vivo e fazem a festa todas as noites. Procurando descentralizar o festival, aproximadamente 4,5 milhões de pessoas nas diferentes regiões do país fazem parte do evento, acompanhando ao vivo num canal exclusivo da televisão pública os eventos aos quais não podem assistir em pessoa.

Ao fim de 17 dias cheios de experiências memoráveis, o evento culmina num encontro sem precedente, onde 300.000 pessoas assistem a um espectáculo de fogo de artifício, música, alegria, sentindo desde logo algumas saudades, uma vez que terão que esperar mais dois anos para a edição seguinte.

Em termos comparativos, festivais similares noutros países desenvolvidos angariam apenas 10% do custo total do evento através da venda de bilhetes, e o restante 90% através de patrocínios e apoios do estado. No Festival Iberoamericano de Taetro de Bogotá a receita de bilheteira ronda os 70%, enquanto os patrocinadores contribuem com 20% e o estado e as embaixadas estrangeiras apenas com 10%. Isto torna o festival num evento de grande risco, mas, ao mesmo tempo, extremamente gratificante para um público interessado em cultura, artes performativas e empenhado em mostrar ao mundo a melhor face da Colómbia: cultura, arte e celebração.

Vinte e seis anos depois, o Festival Iberoamericano de Teatro de Bogotá está mais vivo do que nunca, abrigando-se na visão que o público colombiano adoptou como mote: “Um acto de fé na Colómbia”. Entre 4 e 20 de Abril de 2014, poderão fazer parte do público que irá assistir à 14ª edição do festival, que terá como tema aquele que foi criado para o primeiro festival: “O Melhor Teatro do Mundo na Colómbia, o Melhor da Colómbia para o Mundo”.



Gustavo Gordillo é o director criativo do Festival Iberoamericano de Teatro de Bogotá. Foi co-fundador da primeira companhia de produção da Colómbia especializada em cultura. A companhia associou-se à Fundação Teatro Nacional e com o Festival Iberoamericano de Teatro de Bogotá, que conta com 13 edições e que se tornou no maior festival de teatro do mundo. Estudou marketing e produção cinematográfica e anteriormente trabalhou como realizador e argumentista de spots publicitários, vídeos, telenovelas, eventos e documentários. Gustavo fundou ainda uma conhecida banda musical na Colómbia, que produziu até à data cinco álbuns.

Monday 11 March 2013

Três anos, 130 posts e um livro


Biodiversidade, de acordo com o dicionário, é o grau de variação de formas de vida de uma determinada espécie, ecossistema, bioma ou de um planeta inteiro, e é considerada absolutamente essencial para que se mantenham saudáveis.

O blog ‘Musing on Culture nasceu há três anos procurando contribuir para a manutenção da ‘diversidade de vozes’ no sector cultural; um direito, mas também uma obrigação, para todos nós que escolhemos ‘viver’ e trabalhar neste sector e que acreditamos no seu potencial de transformar as vidas das pessoas e até a sociedade no seu todo. Aconteceu graças às tecnologias digitais, em especial as redes sociais, que nos dão a oportunidade de criarmos o nosso próprio espaço de expressão, onde podemos partilhar, debater e testar os nossos pensamentos, convicções e ideias, procurando levar as coisas um pouco mais para a frente de cada vez.

Foi particularmente gratificante para mim ver que o ‘Musing on Culture’, que começou como um projecto de auto-expressão, se tenha tornado útil também para outras pessoas. Desenvolveu-se numa espécie de biblioteca, onde amigos e colegas podem encontrar não apenas as minhas opiniões, mas também inúmeras ligações para notícias, relatórios, livros e vídeos relacionados com os temas que estão a ser discutidos. O facto de ser bilingue abre-o ao mundo e vários colegas estrangeiros têm já contribuído com textos, enriquecendo os seus conteúdos e ajudando-nos a manter o contacto, aprender através das circunstâncias específicas em que cada um opera e, ao mesmo tempo, permitindo-nos definir objectivos e direcções comuns a todos.

Assim, esta semana que marca o terceiro aniversário do blog, gostaria de agradecer à minha amiga Cecília Folgado, revisora oficial do meu português e com cuja crítica sobre os meus escritos posso sempre contar; ao meu amigo Rui Belo, que desenhou o lindo cabeçalho do blog; a todos os amigos e colegas que têm escrito posts, partilhando generosamente as suas ideias e experiências connosco; e, last, but not least, a todos os leitores e comentadores, que têm tornado esta experiência ainda mais rica.  

Como alguns de vocês já sabem, há mais uma coisa nesta semana de aniversário: um livro. Um livro que nasceu na cabeça de Gaëlle Marques e Álvaro Seiça (Bypass Editions) e que junta, a partir da variedade de posts dispersos, uma selecção de textos que ajudam a identificar melhor as principais áreas de interesse e preocupação para mim, assim como o processo de construção da minha reflexão à volta das questões de gestão cultural, comunicação e da nossa relação com as pessoas. Desejamos que o livro seja útil aos profissionais do sector, que seja informativo para as pessoas interessadas nas questões que levanta, que possa provocar mais reflexão e debate. Será lançado na próxima quinta-feira, às 18h30, na livraria Bulhosa Entrecampos em Lisboa. Esperamos que se possam juntar a nós para saber mais sobre os conteúdos, o processo da sua produção e as pessoas que trabalharam – com inspiração, dedicação, entusiasmo e talento – para o fazer acontecer. Esperamos também que se possam juntar e participar no debate. Estaremos em muito boa companhia…


Monday 4 March 2013

Blogger convidado: "Movimento Cultura Viva Santo André: a sociedade quer diálogo", por Simone Zárate (Brasil)


Lembram-se de Santo André? A cidade onde o inimaginável – para nós – aconteceu, quando a população questionou o Secretário de Cultura sobre as suas políticas culturais e exigiu participar? Fiquei mesmo intrigada com este caso e foi uma feliz coincidência o facto de eu e a Simone Zárate termos um amigo comum, o André Fonseca, que nos pôs em contacto. Simone foi ela própria Secretária da Cultura em Santo André e ajuda-nos a perceber como é que isto aconteceu. Tem um processo longo e contínuo, o resultado de uma visão, de muito trabalho e de determinação. E é bom saber que é possível. mv

Seminário Cidadania e Cultura, 1993. (Foto: Cibele Aragão)
“Pela criação de uma biblioteca municipal e de um salão de conferências”. Esta foi uma das propostas do programa dos candidatos do Partido Social Trabalhista às eleições municipais de 1947 em Santo André. Os candidatos (prefeito e parlamentares) venceram as eleições, porém, foram impedidos de exercer seus mandatos em virtude de problemas políticos em âmbito nacional. A biblioteca municipal foi criada sete anos depois, em 1954.

A história de lutas pela atuação cultural do poder público em Santo André é antiga. Passou por diversos atores e propostas de acordo com os tempos vividos. Santo André é uma das cidades da região conhecida como Grande ABC (A de Santo André; B de São Bernardo; C de São Caetano), localizada na região metropolitana de São Paulo; região que teve seu desenvolvimento impulsionado pela indústria; região de lutas operárias e sociais, mas também de movimentos artísticos e culturais.

Desde 1954 a prefeitura de Santo André intervém no desenvolvimento cultural da cidade. Para o bem e para o mal. Mas foi no início dos anos 90 do século passado que uma atuação incisiva do poder público municipal nas questões culturais tornou-se evidente. Refiro-me à primeira administração do Partido dos Trabalhadores na cidade: criação de novos equipamentos e programas, descentralização de serviços e de poder de decisão, indução da participação social na construção de políticas públicas (com acertos e erros inerentes a qualquer projeto inovador). Não foi um privilégio de Santo André, mas de muitas outras cidades administradas por um partido político que em âmbito nacional contava com reflexões acerca da importância das políticas culturais. Políticas culturais que dissessem não ao clientelismo de balcão (individual ou corporativo) e que induzissem à reflexão e à cidadania – poética e crítica.

Feira de Cultura em Centro Comunitário de Santoa André, 1991. (Foto: Jason Brito Pessoa) 
Muitos dos que hoje participam do Movimento Cultura Viva Santo André participaram também desse período histórico da atuação pública na cultura da cidade, bem como de outros movimentos. Como usuários de serviços culturais, como artistas, como críticos, como trabalhadores, como militantes.  Em 1993, tempos bastante diferentes dos atuais, o Fórum Permanente de Debates Culturais – que retomou suas atividades em 2007, que retomou suas atividades em 2007, colheu milhares de assinaturas contra o “desmanche cultural” ocorrido na mudança da gestão municipal e realizou o Seminário Cidadania e Cultura; em 2009, o Movimento Livre S.A, realizou ato público para sensibilizar o prefeito recém-eleito sobre “a importância do setor cultural para a cidade”. Em 2013, a reivindicação é pela construção conjunta das políticas culturais (e talvez sempre tenha sido: em cada tempo a seu modo).

A participação da população na construção de políticas públicas é um processo longo e de aprendizado conjunto em todas as áreas, porém, na área cultural, algumas questões sempre acabam permeando as conversas sobre o assunto: a população não expressa desejo por cultura; a cultura não figura entre as prioridades – nem de governos, nem de cidadãos; o interesse por políticas culturais gira em torno de interesses pessoais e/ou corporativos. Correto em parte: durante muito tempo (e ainda hoje) testemunhamos reivindicações umbilicais, para o “quintal lá de casa”, o financiamento ao meu segmento artístico. No entanto, gradativamente nos últimos anos, essas preocupações corporativas vêm sendo ocupadas por preocupações com o coletivo, por preocupações com as diretrizes da política cultural não apenas em relação aos segmentos específicos, mas em relação à cidade.

No Brasil, a ocorrência desta mudança certamente está associada à política do governo federal, especificamente do Ministério da Cultura, que a partir de 2003, dentre outras ousadias, praticou a ampliação do conceito de cultura na política estatal, estimulou a participação social através de conferências, seminários, fóruns, colegiados, etc. e implantou o Programa Cultura Viva, cujas diretrizes são o empoderamento, o protagonismo e a autonomia de “fazedores” culturais dos diversos cantos e recantos do país. A cultura além das artes e do patrimônio, a cultura feita pelo povo e o Estado como indutor. Somamos a isso as transformações nas relações sociais advindas da internet, especialmente das redes sociais e dos movimentos de software livre: horizontalidade e processos colaborativos.

Um governo eleito sempre possui algum programa, bem como responsabilidades e limitações legais e orçamentárias, porém, tais limitações não impedem a abertura de diálogo. Por mais iluminada e bem intencionada, uma política cultural de gabinete não refletirá a realidade, os desejos, dinamismos e necessidades da população. Apenas desta constatação já deveria partir a necessidade de construção conjunta, resultado da somatória de informações, possibilidades e limitações do governo e da sociedade traduzido em programas e ações, mas também espaço de explicitação e resolução pactual e transparente de legítimos e necessários conflitos.

Reunião do Movimento Cultura Viva Santo André, 2013. (Foto: Marcello Vitorino)
O Movimento Cultura Viva Santo André, ao que tenho observado (ver gravações das reuniões no fim do post) e ao que consta em carta entregue ao prefeito e vereadores eleitos (contendo 13 tópicos, alguns dos quais reforçando  propostas do Programa de Governo da atual administração veiculado durante a campanha eleitoral), não se pretende de oposição e não é corporativo. Ao contrário, está permeado pelo desejo de diálogo, pela construção coletiva, pela autonomia, pela descentralização de poderes e de lideranças, pelo desejo de políticas culturais para a cidade que proporcionem o direito à efetiva cidadania. Quer participar politicamente, no sentido de discussão da pólis, e com isso se fortalece.

Como cantado por Mercedes Sosa, "todo cambia". "Cambia lo superficial, cambia también lo profundo, cambia el modo de pensar, cambia todo en este mundo". Como o próprio significado da palavra, os Movimentos também mudam, vão e vem, adormecem em alguns períodos e permanecem atentos em outros. Porém, o acúmulo cultural, poético e crítico são ressignificados e permanecem presentes. Oxalá!


Simone Zárate é mestre em Cultura e Informação pela Universidade de São Paulo. Desde 1991 atua na área, tendo sido Agente Cultural e Secretária de Cultura, Esporte e Lazer na Prefeitura de Santo André, e Coordenadora de Desenvolvimento Social no Consórcio Intermunicipal do Grande ABC.  É pesquisadora e consultora independente em gestão cultural e políticas culturais e diretora do IFOC – Observatório & Formação Cultural.


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Reunião de 18 de fevereiro