Monday 24 June 2013

Elitismo para todos

Our Lady, by Eszter Szabó, 2012 (Foto: Maria Vlachou)

E de repente, em menos de uma semana, houve três posts diferentes no Facebook, escritos por três pessoas diferentes, referentes a três situações diferentes, mas com uma questão subjacente comum: o elitismo cultural.

Primeiro, o programador António Pinto Ribeiro criticou o anúncio de uma edição única e limitada do último livro do poeta Herberto Hélder. Considerou esta opção uma campanha de marketing ofensiva, uma decisão arrogante, pouco dignificante para todos os envolvidos. Alguém comentou que esta tinha sido provavelmente a vontade do poeta – que se sentiu desconfortável por ter ficado na moda e que preferiu tornar os seus livros em objectos menos acessíveis. António Pinto Ribeiro reafirmou a sua crítica (ler o post aqui).

Poucos dias depois, o crítico de arte Alexandre Pomar escreveu sobre a popular artista contemporânea Joana Vasconcelos – que representa Portugal na Bienal de Veneza – e os ferozes ataques e críticas que tem recebido de muitas pessoas do sector. Falou da rejeição de qualquer obra de arte que tenha impacto público, êxito popular, um lugar no mercado internacional. Referiu-se ainda à subordinação a uma camarilha que se reserva o direito de definir o que é arte contemporânea de qualidade e que gere o “Great Divide” (erudito vs. de massas; de vanguarda vs. popular; culto vs. inculto; “high” vs. “low”). Na sua conclusão, Alexandre Pomar afirma: “Se existe uma relação traumática com a Joana e a sua obra é porque ela movimenta poderosas tensões (e pulsões)”. (ler o post aqui).

Dois dias mais tarde, a jornalista Paula Moura Pinheiro partilhou que achou muita graça ao facto da notícia mais popular no sector “Cultura” do Público ter sido a revelação de Michael Douglas que o seu cancro na garganta se deveu à prática de sexo oral… Daí, continuou e comentou sobre uma reinante confusão entre categorias, sobre o misturar o entretenimento (interessante para muitos) e as artes e o pensamento (interessante apenas para poucos). Escreveu que muito frequentemente tinha dificuldades em convencer os decisores de televisões e rádios que era mau serviço apresentar no mesmo programa a estreia do último filme do Zorro e o último livro de Herberto Hélder (aqui está ele outra vez). “Chateia os apreciadores do Zorro que, em muitos casos, se estarão nas tintas para a Poesia e afasta os amantes do Herberto.” (ler o post aqui).

Estava ainda a pensar nestes três posts e nas questões que levantavam, quando um amigo me enviou um texto do escritor José Luís Peixoto, intitulado Luta das classes. Nele partilhava a sua convicção que o seu trabalho só ganha sentido quando há um receptor do outro lado. Procura, por isso, assegurar que este tenha a mais ampla divulgação possível: deve-o a ele próprio e à convicção que tem naquilo que escolheu dizer; mas fá-lo também por respeito às pessoas que queiram ler o seu trabalho. O jornalista Vítor Belanciano comentou este texto e afirmou que, apesar de ter gostado e desgostado tanto de textos de José Luís Peixoto como de Herberto Hélder (aqui está ele outra vez), e apesar de respeitar o silêncio de Hélder, identifica-se mais com o Peixoto e os seus esforços em tornar o seu trabalho o mais disponível possível, sendo criticado por isso (uma visão que Vítor Belanciano considera elitista, acanhada e provinciana). Um ou outro comentário a este post  afirmava: “ Estás a comparar o incomparável” (o comentador não percebeu o ponto do Vítor…); “Como é que podes falar no mesmo parágrafo e nos mesmos termos sobre o José Luís Peixoto e o Herberto Hélder?” (Como é que se “atreveu”, realmente…?). (ler o post aqui).

Trabalho na área da comunicação cultural. O meu objectivo é partilhar informação, provocar interesse, ajudar as pessoas a tomarem decisões, criar acesso. Em última análise, o meu objectivo é contribuir para empurrar as fronteiras das pessoas mais longe, para as desafiar, para as confortar, para enriquecer as suas vidas e alimentar o seu pensamento. Mais que uma vez lidei com artistas que se recusavam ou não estavam interessados em partilhar informação que poderia ajudar a promover o seu projecto, desde uma simples sinopse ao dar uma entrevista (curiosamente, isto raramente acontece quando não têm um cachet assegurado no bolso e o seu pagamento depende da receita de bilheteira…). Esses artistas fazem-me frequentemente pensar: “Para quem fazem o que fazem? Para os seus amigos e familiares? E se assim for, é aceitável quando o fazem com dinheiro público?”.

No entanto, sou também eu própria consumidora. Uma consumidora que gosta tanto de “Bridget Jones” como da poesia de Cavafi; que sabe um pouco sobre música clássica e que se sente completamente inadequada quando na presença de pessoas que sabem tudo sobre a cena musical pop ou indie; que não gosta de videojogos, apesar de fazerem parte da colecção do MOMA; que saiu de exposições de arte contemporânea furiosa porque um curador “culto” pensou que ela seria tão “culta” quanto ele e que não iria precisar de qualquer explicação ou contextualização (ou que provavelmente pensou que se não fosse suficientemente “culta” não deveria lá estar de qualquer forma); que se sentiria ofendida e profundamente irritada se um dos seus escritores favoritos optasse pro fazer uma edição limitada do seu último trabalho por não gostar de se sentir “popular”.

Já vi qualidade e já vi coisas muito malfeitas em todo o tipo de expressões culturais e artísticas, “high” e low”, em todo o tipo de obras de arte “populares” e “não-tão-populares”. Admiro aquelas pessoas que não categorizam e que adoptam uma abordagem mais cosmopolita no seu consumo cultural e crítica de arte, que não estão contra o elitismo, mas que defendem o “elitismo para todos”. E sou grata àqueles (amigos, colegas, curadores, artistas, escritores, jornalistas) que me têm mostrado coisas novas, que têm partilhado e comunicado o seu trabalho, que me têm ajudado a perceber, que me têm permitido descobrir o “inseguro” quando eu ia pelo “seguro”, que têm empurrado as minhas fronteiras para a frente e que me têm dado o espaço e a confiança para falar do que gosto e do que não gosto sem medo e complexos.

Mais neste blog


Mais leituras
Vitor Belanciano, Herberto ou Peixoto (Público, 23.6.2013)
Emer O´Kelly, The case for elitism. The Arts Council, Ireland
John Holden, Culture and Class.


Monday 17 June 2013

Blogger convidado: "Sou daqui", por Zeina Soudi (Palestina)

Conheci a Zeina Soudi no mês passado, graças à Laurinda Alves. São as gestoras do Dialogue Café em Ramallah e Lisboa, respectivamente. Em duas horas conseguimos falar de imensas coisas, mas o que chamou em particular a minha atenção foi a busca da Zeina pela sua identidade. Nascida no Líbano de pais palestinianos, visitou pela primeira vez a Palestina com passaporte jordano. Foram precisos mais 10 anos para conseguir o seu bilhete de identidade palestiniano. A pergunta “De onde és?” foi sempre difícil de responder. Apesar do contexto palestiniano ter, naturalmente, as suas especificidades, várias partes na sua narrativa terão um significado especial para muitos de nós e irão levantar novamente questões sobre cultura, identidade, raízes, ‘nós’ e o ‘outro’. mv
No passaporte de Zeina Soudi.
“De onde és?” é uma pergunta com a qual fui muitas vezes confrontada quando era mais nova. Uma pergunta que durante anos me deixava confusa e que não podia responder sem primeiro pensar. A resposta era normalmente uma embrulhada. Sou o produto de uma “terceira cultura”. Nasci no Líbano e vivi em Malta e no Chipre até quase ao fim da adolescência, quando mudei para a Jordânia. Sou cidadã jordana de origem palestiniana. Mas até àquele momento, nunca tinha vivido na Jordânia ou estado na Palestina. A Palestina era apenas uma terra da fantasia sobre a qual falavam os meus pais e eu via na televisão. Sendo uma estrangeira nesses países, a pergunta “De onde és?” era uma pergunta que me apavorava, quando deveria ser uma das mais simples perguntas à qual uma pessoa devesse responder.
Na minha viagem para afirmar e reafirmar a minha identidade houve muitas reviravoltas, confusões e restrições. A começar pela pergunta “De onde és?”.
Fiz os dois últimos anos da escola em Amman, e apesar de ter adquirido um sentimento de pertença, algo faltava ainda. Havia uma pequena parte em mim que ainda precisava de encontrar para me sentir completa. Assim, quando acabei a escola, decidi ir à Palestina sozinha e inscrever-me na universidade. Esta decisão ia ser o início de uma viagem muito difícil. Foi em 1997.
Como sabem, a Palestina continua ocupada. Para ir até lá preciso de ter autorização de Israel, o que provou ser mais difícil do que tinha alguma vez imaginado. Quando finalmente consegui a autorização a primeira vez, cheguei a meio caminho e depois não me foi permitida a entrada na fronteira israelita. Quando questionei porquê, responderam “Por razões de segurança”.
“Razões de segurança”? Que género de ameaça poderia ser por ir para a universidade estudar Inglês e Literatura? Isto não lhes interessava. Puseram um carimbo “Entrada NEGADA” no meu passaporte e mandaram-me de volta para Amman. Essas duas palavras no meu passaporte mudaram a minha vida. Tinha apenas 18 anos naquela altura. Só muitos anos depois descobri porque é que era uma “ameaça”.
Cheguei tão perto, mesmo assim estava ainda longe. Lembrei-me de A Letter to His son do escritor palestiniano Ghassan Kanafani:
“Ouvi-te no outro quarto a perguntar à tua mãe ‘Mamã, sou palestiniano?’. Quando ela respondeu ‘Sim’, um pesado silêncio caiu em toda a casa. Era como se algo que estivesse suspenso sobre as nossas cabeças tivesse caído, o seu barulho a explodir, depois – silêncio. Depois… ouvi-te chorar. Não conseguia mexer-me. Havia algo maior do que a minha consciência a nascer no outro quarto através do teu choro perplexo. Era como se um bisturi abençoado estivesse a abrir o teu peito para colocar ai o coração que te pertencia… Era incapaz de me mexer para ir ver o que se passava no outro quarto. Sabia, no entanto, que uma pátria distante estava novamente a nascer: colinas, olivais, pessoas mortas, bandeiras rasgadas e dobradas, tudo isto a abrir caminho para um futuro de carne e sangue e a nascer no coração de uma outra criança… Acreditas que o homem cresce? Não, nasce de repente – uma palavra, um momento, penetra o seu coração dando um novo pulsar. Uma cena pode lançá-lo do tecto da infância para a dureza da rua.”
Mas não desisti facilmente. Tentei várias vezes até conseguir a autorização para ir à Palestina.
Maqueta do The Palestinian Museum que começou a ser construído este ano. O museu será dedicado à exploração  e compreensão da cultura, história e sociedade da Palestina e dos palestinianos. Podem ler uma entrevista com o director do museu aqui.
Estava a aprender lentamente quantos bilhetes de identidade diferentes nós palestinianos somos obrigados a ter. E essas diferentes identidades determina por que rua podemos passar ou a que cidade podemos ir. Por exemplo, não me era permitido ir a Jerusalém, de onde é a minha família. Nós palestinianos somos obrigados a estar separados e a ser categorizados de acordo com a nossa origem e cor do bilhete de identidade.
Quando começou a segunda Intifada, decidi ficar na Palestina e acabar o meu curso. Foi quando me tornei numa “estrangeira-ilegal” no meu próprio país e passei 8 anos numa prisão ao ar livre, sem possibilidade de viajar, por ter receio que a entrada no meu país me pudesse ser negada para sempre. Estava determinada em plantar as minhas raízes, tal como os meus pais, avós e bisavós tinham feito. Apesar de me sentir claustrofóbica às vezes, e prestes a desistir, no fim consegui o que queria. Tive direito a um bilhete de identidade palestiniano e tornei-me “legal”. Esta foi a minha maneira de resistir a esta injustiça. Esta foi a minha maneira de afirmar a minha identidade. Esta foi provavelmente a razão porque para os israelitas era uma ameaça.
E aqui estou ainda hoje, sentada na minha sala de estar com todos os meus amigos, todos com bilhetes de identidade de cor diferente, passaportes diferentes, aqueles que nasceram na Palestina e outros, como eu, que nasceram noutros países. Seguimos todos caminhos diferentes. Mas temos todos uma coisa em comum, somos todos persistentes. Recusamos todos esta injustiça. Recusamos todos ser categorizados. Acordamos todos dia após dia e dizemos ‘não’ à ocupação.

E no final do dia, quando alguém me pergunta “De onde és?” posso dizer facilmente “Sou daqui”.


Zeina Soudi é gestora do Dialogue Café em Ramallah. O Dialogue Cafe é uma rede aberta de videoconferências que junta pessoas com vários perfis, em todo o mundo, para trocarem ideias, conhecimentos e experiências, lidando com diferentes culturas, sociedades e tradições. No passado, trabalhou para ONGs na área dos direitos humanos e do desenvolvimento social, e também para projectos relacionados com a arte e cultura palestiniana. Começou a sua carreira como professora de inglês. 

Monday 10 June 2013

Como toma o seu El Greco?

Museu de Belas-Artes, Budapeste (Foto: Maria Vlachou)
Quando entro numa sala de museu que tem um El Greco pendurado na parede, tudo pára à minha volta. Não há barulho, não há movimento, apenas eu, ele e silêncio. Em alguns casos em que fui apanhada de surpresa, porque não sabia que tinham um El Greco na suas colecções, houve mais ainda: pareceu que de repente deixei de respirar, senti uma fraqueza nas pernas. Ele é um dos meus pintores favoritos. E é também um homem de Creta, que levou Bizâncio com ele para qualquer lugar onde fosse e que nunca assinou as suas obras numa língua que não fosse a dele.

Vi El Greco em várias ocasiões e em diferentes circunstâncias: exposições blockbuster nas Pinacotecas de Atenas e Londres, salas muito movimentadas no Louvre ou no Metropolitan ou em Toledo, um canto sossegado na Phillips Collection em Washington ou, mais recentemente, numa sala grande quase só para mim, no Museu de Belas-Artes de Budapeste. Qual foi a melhor experiência? Todas elas.

Várias vezes nos últimos tempos li e ouvi comentários de profissionais de museus e de visitantes que se queixam que os museus não são o que eram. Sentem que não podem ter o que chamam “uma verdadeira experiência” porque estão cheios de gente. Anseiam para poder estar sozinhos com a arte e são muito críticos deste museu novo onde toda a gente é bem-vinda, mesmo que não estejam lá pelas “razões certas”. Compreendo as pessoas que procuram um ambiente específico de calma e intimidade quando visitam. Mas preocupa-me quando parece que acham que os museus foram feitos só para eles (e assim deveriam ficar) e quando os profissionais apoiam estas opiniões.

Os museus têm que dar resposta a todo o tipo de pessoas e necessidades. Quando se procura diversificar a audiência, levanta-se sempre a questão de como o fazer sem afastar os públicos existentes. Não é fácil de qualquer forma e torna-se ainda mais difícil no caso de museus movimentados e populares. Há visitantes que sabem mais e visitantes que sabem menos; visitantes que procuram intimidade e visitantes preparados para fazer a fila durante horas e para visitar na companhia de centenas de outras pessoas. Necessidades diferentes, perspectivas diferentes, mas nenhuma mais legítima que as outras, diria eu.

Uma amiga enviou-me na semana passada o artigo de Brian Cohen How to visit a museum. Apesar de não concordar com as suas opiniões sobre o que os museus representam (ou deveriam representar) na vida cultural de quem os visita, vejo que é um visitante que sabe muito bem o que procura e gostei muito de ler os seus conselhos para as pessoas que desejam adaptar a visita às suas necessidades e interesses. Os museus talvez pudessem adoptar esta ideia e aconselhar os seus visitantes no que diz respeito a horários e dias mais calmos, percursos sugeridos ou alternativos etc. (alguns já o fazem). Deveriam estar abertos e ser corajosos, deveriam reconhecer que os seus visitantes têm agendas diferentes e tentar orientá-los nos seus propósitos. E acima de tudo, deveriam deixar claro que um visitante não é mais bem-vindo do que outro.

Voltando a mim, uma visitante como tantos outros, tomo o meu El Greco como estiver. Adoro os encontros íntimos, aqueles momentos preciosos em que o tenho só para mim e posso parar, olhar e sentir o tempo que quiser. Mas já mais que uma vez tive que o partilhar com muitas-muitas outras pessoas, tive que ficar na fila e esperar pacientemente até ser a minha vez de ficar em frente a um quadro, sentindo-me um pouco pressionada pela pessoa atrás de mim. Faz tudo parte do ritual. Sabia que ia ser assim e gostei daquele sentimento de comunidade, de prazer e alegria partilhados. Gosto de museus calmos e gosto de museus movimentados. Gosto de museus.


Ainda neste blog

Mais leituras
Are blockbuster exhibitions worth queueing for?Entrevistas com Miranda Sawyer e Charles Saumarez Smith no Observer (12.11.2011)
Blockbuster art: good or bad?. Entrevistas por Emine Saner no Guardian (25.1.2013)




Monday 3 June 2013

Blogger convidado: "'The Fairy Queen' na África do Sul", por Shirley Apthorp

Conheci a Shirley Apthorp há uns meses, numa conferência em Lisboa. Nessa altura, ouvi-a falar de um estádio de 6000 lugares cheio de jovens que participavam num concurso nacional de ópera (uma forma artística “moribunda”, para alguns…). Depois disso, mantivemo-nos em contacto através do Facebook, onde pude acompanhar os preparativos para a apresentação da ópera de Purcell The Fairy Queen em Joanesburgo e na Cidade do Cabo. Neste post, Shirley escreve sobre o amor que os alunos na África do Sul têm pela ópera; sobre Umculo, a organização de música que fundou; e sobre a sua convicção que a África do Sul tem um papel importante a desempenhar no futuro da ópera como uma forma artística significante para o mundo inteiro. mv  

The Fairy Queen, Unculo 2012/2013 (Foto: Neil Baynes)
O endereço está rabiscado num pedaço amassado de papel rascunho: “The Dome”. O trânsito em Joanesburgo é, na melhor das hipóteses, assustador; ainda mais quando estamos atrasados para um evento importante. Quando chego, finalmente, ranjo os dentes de frustração. Porque é que não tinha pedido informação mais exacta? O Dome erguia-se à minha frente, um edifício enorme. Como é que ia encontrar a competição de coros de escolas secundárias num complexo como este? Ansiosamente, apressei-me em direcção a uma das entradas. Fui convidada para entrar com um sorriso. Este era o primeiro de uma série de choques. 

No interior do Dome descobri um enorme estádio coberto. Estava a abarrotar com crianças negras fardadas, que esperavam ansiosamente pelo início da primeira sessão da competição anual de coros das escolas secundárias. Era uma sessão só para rapazes e a peça seria o Coro dos Peregrinos de Tannhäuser. Depois, houve sessões de solos e ensembles, onde os tenores tentaram uma ária de Ascanio in Alba, as sopranos cantaram the “Queen of the Night”, grupos de quatro interpretaram de forma mais que aceitável o quarteto de Cosi fan Tutte. E assim continuou. Os 6000 espectadores ouviram-nos com extrema atenção, sobressaltando em uníssono se se perdia uma nota, saltando do lugar para aplaudir se uma coloratura fosse particularmente bem-sucedida. Seis mil adolescentes negros connoiseurs de ópera num mesmo lugar ao mesmo tempo, a maioria proveniente de comunidades bastante abaixo do nível de pobreza – isto poderia estar realmente a acontecer?

“Pois, sim”, respondeu um dos organizadores em tom de desculpa. “Na verdade, temos aqui 10000 finalistas, mas o estádio pode comportar apenas 6000, por isso, temos que organizar os espectadores em turnos.”

E esta é apenas a ponta do iceberg – estes são os poucos seleccionados que conseguiram passar as finais regionais e provinciais para participarem na cobiçada final nacional.

The Fairy Queen, Umculo 2012/2013 (Foto: Yasser Booley) 
Os coros que competem na competição nacional devem cantar um conjunto variado de repertório, desde canções tradicionais africanas a novas composições sobre temas como o HIV-AIDS, passando por Schubert, Mendelssohn e uma vasta gama de repertório operático. Podemos viajar até à mais afastada township ou povoado informal do país e encontrar Paminas e Taminos de 15 anos, ouvir Verdi e Handel e Puccini de solistas demasiado novos para beber ou conduzir. Para uma Europeia, criada no meio de queixas intermináveis sobre o envelhecimento do público da ópera, isto não é nada mais nada menos do que uma revelação.

Centenas de milhares, literalmente, de adolescentes sul-africanos cantam ópera e muitos sonham fazer disto a sua profissão, como Pretty Yende, de 28 anos, que fez recentemente o seu debuto na Metropolitan Opera depois de uma série de vitórias em competições internacionais e uma passagem por La Scala; como Luthando Quave, que está a criar a sua reputação na Metropolitan Opera e na Europa continental; como Sunnyboy Dlala, actualmente no ensemble da Ópera de Zurique, ou Pumeza Matshikiza, uma das estrelas da Òpera de Estugarda, ou Njabulo Madlala, vencedor do Kathleen Ferrier Award em 2010.

Cantores criados na África do Sul estão a começar a chamar a atenção internacional; porém, o país inteiro dispõe neste momento de apenas uma companhia de ópera a tempo inteiro – a da Cidade do Cabo – que luta para sobreviver num contexto pós-Apartheid que não vê neste género de financiamento cultural uma prioridade. O apoio ‘de brancos’ e ‘para brancos’ dado pelo governo Apartheid a companhias de ópera regionais criou um precedente perigoso e nem mesmo a paixão extraordinária das comunidades desfavorecidas pela ópera é capaz de mudar a maré actual.

Umculo (Foto: Yasser Booley)
Como sul-africana, nascida no meio de uma família de luta de activistas anti-Apartheid, cresci como exilada na Austrália e só conheci o meu país de origem e o resto da minha família já em adulta, depois da instauração da democracia em 1994. Tinha-me mudado para a Alemanha, onde fiquei a conhecer muito bem o circuito internacional de ópera através do meu trabalho como jornalista de música. A discrepância entre a vida da ópera na Europa – bem financiada, altamente qualificada, cínica – e na África do Sul – não financiada, raramente instruída musicalmente, mesmo assim, extraordinariamente apaixonada e talentosa – incomodava-me imenso e, no fim, levou-me a fundar Umculo.

Em Xhosa, a língua de Cabo Ocidental, Umculo significa ao mesmo tempo música e reconciliação. A nossa organização junta uma equipa internacional para trabalhar com jovens sul-africanos com talento, provenientes de comunidades desfavorecidas, fornecendo acesso à ópera, instrução, oportunidades e contactos internacionais. Desde o lançamento em 2010, com uma conferência internacional sobre educação musical, a transmissão a nível internacional na ARTE TV de um concerto coral festivo e a colaboração com El Sistema de Venezuela, Umculo cresceu ao ponto de apresentar em palco produções de ópera para um público novo de adolescentes das townships, que participam, por sua vez, em workshops da Umculo.

Umculo opera nas ‘falhas geológicas’ da complexa sociedade sul-africana. As suas produções usam o teatro musical para lidar com tensões entre raças, grupos sócio-económicos, nacionalidades, grupos linguísticos e grupos etários.

Foto: July Zuma
A nossa produção The Fairy Queen de Henry Purcell em 2012/2013, apresentada em Joanesburgo e na Cidade do Cabo, foi construída em torno de um coro de 30 cantores, com idades entre os 14 e os 18 anos, provenientes da comunidade desfavorecida de Kraaifontein, entre a Cidade do Cabo e Stellenbosch. O maestro Warwick Stengards, que trabalha em Viena, o encenador alemão Robert Lehmeier e a dramaturga Laura Ellersdorfer trabalharam com o figurinista sul-africano Thando Lobese e o desenhador de luz Michael Maxwell, jovens solistas sul-africanos e uma orquestra que juntou músicos com carreira internacional e músicos profissionais locais com membros da South African National Youth Orchestra.


Os membros da equipa de Umculo trabalham como voluntários e os projectos são desenvolvidos com orçamentos muito reduzidos. Financiamento vindo da Hilti Foundation, do Goethe Institut e de patrocinadores privados permite à organização realizar os seus projectos, mas será preciso muito mais para Umculo poder tornar-se numa organização sustentável a tempo inteiro.

Sentimo-nos tocados e motivados pela transformação dos jovens participantes, pela paixão, entusiasmo e excelência dos nossos intérpretes, pela facilidade e a excitação com a qual os nossos jovens públicos aceitam esta experiência e pelo impacto social do nosso trabalho. Umculo acredita que a África do Sul tem um enorme papel a desempenhar no futuro da ópera como uma forma artística significante para todo o mundo. Estamos a fazer o que podemos para levar esta visão para a frente.


Shirley Apthorp nasceu na Cidade do Cabo, África do Sul, e emigrou com a sua família para a Austrália aos dois anos. Estudou música na Universidade da Tasmânia, em Hobart. Durante os seus estudos, começou a escrever a nível local e nacional sobre música; após a licenciatura, iniciou a sua carreira como jornalista de música freelancer. O Churchill Fellowship e bolsas do Australia Council, Arts Tasmania e Goethe Institut levaram-na à Europa em 1994; vive em Berlim desde 1996, escrevendo sobre música para os Financial Times (Reino Unido), Bloomberg, (EUA), The Australian (Austrália) e várias revistas de música.  Fundou Umculo em 2010.