Monday 9 July 2012

Conforto e perturbação

Foto: Lalla Essaydi
O regresso a Washington; o reencontro com os colegas do fellowship e com a equipa do Kennedy Center; os novos fellows que se juntam a nós este ano; a primeira semana de seminários, trabalhos, apresentações; os primeiros museus e espectáculos; a celebração do 4 de Julho; as conversas, as intermináveis conversas, sobre a história que se está a escrever nos países de alguns dos nossos colegas… Uma inundação de pensamentos e sentimentos.

Os primeiros seminários lembraram-nos da clareza da missão do Kennedy Center e da forma disciplinada como esta equipa funciona. Disciplinada no sentido de concentrada, focada, organizada, esclarecida quanto ao caminho que está a seguir e o onde pretende chegar. E não pude evitar de me sentir novamente surpreendida pelo facto de todos os seus membros falarem ‘a mesma língua’, algo que nunca tinha visto acontecer na prática antes de chegar ao Kennedy Center e não voltei a ver depois. Não há ‘desvios’ (o que não significa que não haja discordâncias), a missão é concreta e todos sabem o que têm que fazer para contribuir para o seu cumprimento. Não é fácil isto acontecer, mas também não é impossível. É preciso uma liderança forte, consciente e esclarecida sobre a sua visão; é preciso bons técnicos à volta do líder; é preciso perseverança, rigor e disciplina; é preciso trabalho, muito trabalho; e é preciso conversa, muita conversa, como diria Michael Kaiser.

Este ano juntam-se a nós fellows de Oman, Singapura, Austrália, Zimbabwe, Bósnia, Albânia. Irlanda, Inglaterra e Colômbia. Cada um representa um caso particular dentro da área da gestão cultural: instituições financiadas por governos, outras privadas, projectos particulares, instituições que atribuem financiamento a projectos culturais. Cada caso enfrenta desafios muito específicos, mas há outros, comuns quase a todos: a preocupação relativamente ao financiamento e a sustentabilidade; a falta de políticas culturais nos países de origem; a falta de planeamento; os públicos e os seus gostos e necessidades; os desafios sociais e tecnológicos. Ao mesmo tempo que vamos conhecendo estes novos colegas, é com muito prazer e satisfação que descobrimos os progressos que alguns dos colegas antigos fizeram no último ano; as pequenas ou grandes mudanças que conseguiram introduzir nas suas instituições, resultado do que se aprende no Kennedy Center e, igualmente, através dos colegas do fellowship, gestores culturais experientes, empreendedores, inteligentes, informados, preocupados. É um enorme desafio estar na companhia deles.

As preocupações dos nossos colegas egípcios relativamente ao seu novo presidente (membro da Irmandade Muçulmana) e a postura que vai adoptar perante a cultura e as artes têm sido frequentemente objecto de conversas. Olho para estas pessoas: corajosas, determinadas, sensíveis, cheias de sonhos e de vontade de criar e de ter um impacto na sua sociedade (por via da cultura e das artes), pessoas que lutam pela democracia, que valorizam a sua liberdade e que revelam, ao mesmo tempo, alguma ansiedade relativamente ao que poderá vir a ser o resultado desta luta. Penso novamente no texto de Marta Porto Imaginário, um espaço para pensar a democracia, que foi aqui publicado na semana passada. Penso novamente no debate entre Pensadores do Norte de África (em francês) que o Programa Próximo Futuro organizou no fim do mês passado. E penso em todos nós, que assumimos, entre outros, também o papel de guardião dos valores democráticos. E questiono-me: O que aconteceu à nossa democracia? O que nos aconteceu a nós? Que uso damos à nossa liberdade? O que significa o facto de termos abdicado do direito e da obrigação de nos envolvermos nos assuntos do colectivo (os gregos antigos chamavam a quem não se envolvia nos assuntos da cidade “idiota”, que na altura tinha o significado de uma pessoa “privada”)? Ou o facto de lutarmos por ideais e convicções, mas de nos remetermos a um silêncio estratégico quando esses ideais são violados por gente de quem poderemos vir a precisar? Ou o facto de nos considerarmos intocáveis e unaccountable* quando ocupamos lugares de chefia (a qualquer nível)? A cultura alimenta mentes sensíveis e críticas, cultiva valores, mas pouco acontece se não houver um bom fertilizador, ou seja, honestidade intelectual e consciência das responsabilidades, pessoais e colectivas.

“As artes devem confortar o perturbado e perturbar quem se sente confortável”, citou um fellow na sua apresentação. E eu tive momentos lindíssimos de conforto e de perturbação na semana que passou. No Domingo, visitei a exposição Revisions de Lalla Essaydi no National Museum of African Art. Essaydi projecta no corpo feminino as suas reflexões sobre questões de género, cultura e religião. A exposição inclui fotografias, pinturas e instalações; imagens belas, refrescantes, provocadoras, sensuais. Na quinta-feira estreou no Kennedy Center Giselle, com o Ballet de l´Opéra National de Paris, que está em digressão nos EUA. Há muitos anos que não via este bailado. O segundo acto foi de uma beleza indescritível.


*Accountability significa que quem desempenha funções de importância na sociedade deve regularmente explicar o que anda a fazer, como faz, por que faz, quanto gasta e o que vai fazer a seguir. Não se trata, portanto, apenas de prestar contas em termos quantitativos, mas de auto-avaliar a obra feita, de dar a conhecer o que se conseguiu e de justificar aquilo em que se falhou. (Fonte: Wikipedia)

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