Monday 29 January 2018

Ainda sobre o Maria Matos: o etos de um teatro

"Have a Good Day!", de Vaiva Grainytė, Lina Lapelytė, Rugilė Barzdžiukaitė (Foto: Simonas Svitra). Teatro Maria Matos, 2017

Etos: (grego éthos-ouscostumehábito), substantivo masculino
Conjunto
 de características ou valores de determinado grupo ou movimento.
Fonte: Dicionário Priberam

Anne Pasternak assumiu a direcção do Brooklyn Museum em Nova Iorque em 2015, sucedendo a Arnold L. Lehman, que tinha ocupado o lugar durante 18 anos. A Anne impressionou-me pela positiva na sua primeira entrevista ao New York Times quando afirmou: “I am excited to build on that ethos of welcome” (numa tradução livre minha: Estou entusiasmada por poder construir sobre esse etos de bom acolhimento).

Na altura da nomeação de Pasternak houve várias vozes a criticar a escolha de alguém que nunca tinha trabalhado num museu. No entanto, a mim bastou-me esta frase, mesmo-mesmo no final do artigo no New York Times, para pensar: Ela percebeu! Ela percebeu “quem” é o museu para o qual vai trabalhar.

A missão de um espaço cultural (e de qualquer outro) é “quem” ele é. São as suas características, princípios, valores; ou seja, é a sua identidade, que o distingue de qualquer outro espaço no mesmo sector e com a qual as pessoas (o chamado “público”) se relacionam. Esta missão, este etos, não é definido individualmente por cada director, não muda quando o director muda, a não ser que a sua tutela assim o entenda (e a mudança deve ser bem fundamentada). A missão é a linha orientadora que permite cumprir um propósito com coerência, honestidade e rigor. A missão permite criar relações duradouras, de confiança e cumplicidade, sendo que cada director vai ao seu encontro à sua maneira.

Lembrei-me várias vezes do caso do Brooklyn Museum ao ver vários comentários a propósito do Teatro Maria Matos que parecem confundir a “missão” com a “programação” (e que, por isso, consideram natural que um teatro como o Maria Matos mude de rumo porque determinado director artístico abraçou um outro desafio). A missão é da responsabilidade da tutela (nos EUA seria o board; no caso do Maria Matos Teatro Municipal, seria a Câmara Municipal). Diferentes directores cumprem essa mesma missão seguindo caminhos diferentes. É assim que deveria funcionar se se pretende uma boa gestão e não o desperdício do que se fez nos anos anteriores. Uma boa gestão pressupõe construir, não desmantelar.

Qual é o etos do Maria Matos, qual é a sua missão, pela preservação da qual tantos cidadãos reclamam?

A grande maioria das entidades culturais em Portugal não apresenta nos seus websites declarações de missão, mas sim, uma descrição do que fazem. O Maria Matos não é excepção. Apresentar teatro, dança, concertos e projectos para crianças e jovens é o que dezenas de teatros fazem em Portugal. No entanto, a intenção de cada um é (ou deveria ser) diferente. Porque as identidades são (ou deveriam ser) diferentes.

A grande maioria das entidades culturais em Portugal não declara uma intenção. Apresenta uma programação, mas não nos permite entender o propósito, porque não o assume, não o declara. Assim, há coisas que tanto se podem ver num sítio como noutro qualquer. E desta forma, não se cria uma relação, criam-se one-night stands (há quem goste).

"Clean City", de Anestis Azas e Prodromos Tsinikoris (Foto: Kathari Poli). Teatro Maria Matos, 2017

No caso do Maria Matos, suponho que não tenha sido a tutela a definir (como devia) aquilo que muitos de nós entendemos como sendo a sua missão (única, específica, no contexto da oferta cultural lisboeta). Mas pode ser encontrada numa entrevista do seu director artístico Mark Deputter ao Público, em 2016, no início do ciclo Utopias: “A nossa escolha de temas e a maneira de os tratar não tem uma agenda em termos de política partidária, mas nasce de uma visão do mundo. Nasce de não querermos aceitar a ideia de que estamos a viver no melhor dos mundos e de acreditarmos que o mundo pode ser um lugar melhor”. Pode ser encontrada mais resumida, como uma declaração de missão o deve ser, nas palavras de Liliana Coutinho, co-comissária desse mesmo Ciclo: “A arte de pensar como vamos viver em conjunto”.

É este o etos do Maria Matos. É isto que nos fará falta se se avançar com o desmantelamento do projecto, tal como foi anunciado pela Câmara Municipal de Lisboa. Porque esta missão não se cumpre enviando a programação para as crianças e jovens para um espaço, o teatro para outro, a música para outro, as conferências-pensamento-debates para outro ainda. Assim, a missão destrói-se. A relação também.

Provavelmente, como já disse, não foi a Câmara Municipal de Lisboa a pôr em palavras a missão do Maria Matos. Mas é isto que este teatro/espaço representa hoje na cidade de Lisboa. É este o seu etos. É disso que muitos cidadãos precisamos – da arte de pensar como vamos viver juntos - e não encontramos noutro espaço. É isso que queremos que a Câmara Municipal continue a garantir. É isso que consideramos que seja da sua responsabilidade garantir, perante nós e perante a cidade.


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