Monday 11 June 2018

Discutindo a descolonização dos museus em Portugal

Foto: Maria Vlachou

Adoro museus. Adoro-os pelo que são; adoro-os pelo que não são, mas podem ser; adoro-os pelo seu potencial. Adoro-os especialmente devido ao trabalho desenvolvido por vários colegas em todo o mundo para que os museus se adaptem a novas realidades, permaneçam ou se tornem relevantes para as pessoas e até se reinventem. Ultimamente, adoro-os particularmente pelas controvérsias que causam ou enfrentam, empurrando o nosso pensamento e prática para a frente.

O debate sobre a proposta de um Museu dos Descobrimentos em Lisboa é um dos melhores (talvez o único, em termos de duração e envolvimento cívico em geral) que tive o prazer de seguir em Portugal, no que diz respeito aos museus. Li coisas que me inspiraram e que me permitiram desenvolver o meu próprio pensamento; li coisas que me desapontaram; li coisas com as quais não concordo. Foram todas importantes.

A descolonização dos museus é algo relativamente novo para mim. Quando ainda estudava museologia no início dos anos 90 e nos anos que se seguiram, talvez a única referência a esse conceito (embora, que eu me lembre, o termo “descolonização” não fosse usado) fosse o debate em torno da proveniência dos objectos dos museus, bem como a devolução de restos humanos e objectos sagrados às suas comunidades de origem.

Mais recentemente, uma das minhas primeiras referências sobre o conceito da descolonização veio no final de 2015, ao ler sobre o projecto do Rijksmuseum de reescrever as suas tabelas, a fim de evitar termos hoje considerados racistas. O museu decidiu que “Não queremos mais usar termos que reflictam uma maneira eurocêntrica de olhar para pessoas ou momentos históricos, ou que sejam considerados discriminatórios porque os termos usados ​​referem-se à raça de maneira negativa, ou contêm termos que remontam aos tempos coloniais”, segundo a curadora Eveline Sint Nicolaas. Em 2016, a Acesso Cultura convidou Martine Gosselink, Directora do Departamento de História do Rijksmuseum, para ser a oradora principal na sua conferência “O quê? E então? Relevância de conteúdos e linguagem simples”. Lá, tivemos a oportunidade de saber porque é que o museu decidiu tomar em consideração as críticas feitas por alguns dos seus visitantes e porque é que o objectivo deste projecto não era “revisionismo histórico, censura ou o politicamente correcto a ir longe demais”, como tinha sido acusado.

Nos últimos dois ou três anos, o movimento de descolonização alargou-se a vários países. Os casos de museus acusados ​​de apropriação cultural (que recentemente discuti neste blog) também podem ser considerados parte desta discussão. A descolonização dos museus tornou-se finalmente parte do debate público em Portugal logo que surgiu a controvérsia em torno do Museu dos Descobrimentos. Assim, foi com grande interesse que quis assistir à palestra de Nicholas Mirzoeff "Decolonizing the Museum: Lessons from New York", que decorreu em Lisboa a 6 de Junho, organizada pelo Colectivo Descolonizando e por um grupo de agentes culturais que se opõem à designação e missão do proposto Museu dos Descobrimentos. Penso que decidi assistir com a expectativa de obter uma visão mais estruturada do que se entende por museus colonizados e o que pode ser feito se quisermos descolonizá-los, principalmente como profissionais de museus.

Foto: Helena Correia

Num primeiro momento, surpreendeu-me pela negativa a quase total ausência de profissionais de museus na sala. Penso que éramos três ou quatro - nenhum a trabalhar “em” museus, mas sim “para” museus. Isto levanta algumas preocupações muito sérias sobre o género de debate que queremos promover em Portugal e se este será um debate honesto, se não sairmos da nossa zona de conforto para sermos confrontados com diferentes pontos de vista. Por outro lado, a sala estava praticamente cheia de pessoas que desconhecia, o que foi um bom sinal para mim; um sinal de que há um interesse real na descolonização dos museus, também - e especialmente - entre aqueles que não trabalham neles. Mais uma razão para os profissionais de museus portugueses participarem em debates em territórios desconhecidos.

As minhas impressões em relação à apresentação de Nicholas Mirzoeff e ao debate que se seguiu são mistas. Houve referências muito interessantes na palestra, mas não me parece que tenham sido realmente tecidas de forma a promover uma discussão mais estruturada sobre a descolonização dos museus (começando por deixar claro o que entendemos por “colonização”) ou, pelo menos, para construir uma base mais clara para essa discussão. Acho que isso teria sido fundamental, já que o debate mostrou que a maioria das pessoas que tomaram depois a palavra não tinha uma visão clara sobre essas questões, mas sim procurava respostas.

A estátua de Theodore Roosvelt no American Museum of Natural History, Nova Iorque (Imagem retirada de jakerajs.photoshelter.com)

Logo no início, Mirzoeff mostrou a imagem de uma das múmias do Museu Arqueológico do Carmo, em Lisboa; que muitos portugueses têm visto, mas cuja presença e exposição no museu poucos questionaram. Não tenho certeza se ficou claro, entretanto, para os presentes (excepto, talvez, para os alunos de Mirzoeff) porque é que essa imagem foi mostrada e de que forma esta era relevante para a nossa discussão sobre a (des)colonização dos museus.

A seguir, foram partilhadas diversas referências filosóficas muito interessantes, que culminaram num exemplo concreto na cidade de Nova Iorque: a acção desenvolvida em Outubro de 2017 em frente ao Museu Americano de História Natural em relação à estátua de Theodore Roosvelt, encomendada na década de 1930 (leia mais aqui). O Presidente dos Estados Unidos é representado em cima de um cavalo, com um nativo americano e um africano a acompanhá-lo a pé de cada lado (a controvérsia começou no final dos anos 90, quando o sociólogo e historiador americano James Loewen argumentou em Lies Across America que a composição das figuras tinha como objectivo defender a supremacia branca; a estátua foi também discutida pelo artista e activista Titus Kaphar na sua TED Talk de Abril de 2017 Can Art Amend History ). A discussão não foi muito além do óbvio racismo na concepção da estátua (um pouco mais sobre isto neste artigo) e o mesmo aconteceu com algumas referências sucintas ao Brooklyn Museum ou à remoção da estátua de Cecil Rhodes da Universidade da Cidade do Cabo.

Foto: Helena Correia

Não há dúvida que Nicholas Mirzoeff sabe do que está a falar, mas pergunto-me se as pessoas presentes realmente perceberam como esses exemplos se relacionam com o nosso assunto e o que elas, como cidadãos, podem fazer: o que é que realmente significa a colonização / descolonização dos museus e como isto afecta praticamente todos os aspectos do trabalho do museu (para além da discussão sobre o que é considerado hoje uma representação racista; a pensar nas colecções, interpretação, marketing, equipas, etc.). Não queria soar paternalista, também me considero principiante nestas matérias, mas, dado que a discussão é bastante recente em Portugal e em Lisboa, penso que teria sido útil proporcionar uma base de discussão mais sólida e concreta, em vez de debater certos exemplos pressupondo algum conhecimento prévio sobre o assunto.

Houve duas coisas no debate que se seguiu que ficaram comigo: um senhor que disse que é muito raro a autoridade dos museus ser questionada, identificando a última tentativa talvez nos anos 80; e algumas pessoas que disseram que os museus em geral são ferramentas coloniais, outras afirmando “não a mais museus” e uma senhora que respondeu que “os museus estão aqui, não podemos apagá-los, precisamos é de os confrontar”. Isso pareceu-me um pouco estranho. À medida que vou avançando com as minhas leituras sobre o tema da descolonização dos museus, posso dizer facilmente que nem um dia passa sem que apareça um artigo sobre a autoridade dos museus a ser questionada, quer de dentro (por membros da equipa) ou por indivíduos e comunidades. Não ter consciência desse tipo de revolução, que já está a afectar os museus, bem como ver todos os museus como sendo de um tipo e ferramentas coloniais, não reconhecendo o seu desejo e capacidade de evoluir, é deixar de fora uma parte importante desta equação.


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