Friday 10 April 2020

Será isto um reagendamento de "business as usual"?



"Acho que é responsabilidade de um director artístico, ou, digamos, do colectivo que é a instituição artística, dizer ‘aqui está a força que estou a sentir na nossa comunidade. Mas, afinal, não é nossa responsabilidade ter uma espécie de eloquência ou articulação em torno disto, que talvez a própria comunidade sinta, mas não manifesta como uma declaração específica de necessidade? Então, acho que ser sensível a isso é liderança, dizer ‘aqui está o que sentimos que está no ar e ao qual pensamos que deveremos dar voz.”

Costumo citar estas palavras de Martha Lavey, directora durante muitos anos do Steppenwolf Theater em Chicago, falecida em 2017. Actualmente, penso nelas com mais frequência ainda, revisito-as, pois resumem lindamente o propósito do trabalho de um director artístico ou de  uma organização cultural.

Voltei a pensar nelas quando vi um vídeo feito por artistas e técnicos portugueses, intitulado "Adiem-nos, mas não nos cancelem agora". Ocorreu-me que esse pedido, essa visão ou sugestão, considerando a situação que estamos a viver, não fazia sentido. Não faz sentido, se considerarmos que há um propósito, uma intenção, por trás do trabalho de um director artístico ou de uma organização cultural; não faz sentido, se entendermos esse trabalho como uma maneira de criar um relacionamento com as comunidades com que procuramos envolver-nos, as suas aspirações, ansiedades, dúvidas e, também, a sua busca da felicidade.

Escrevi na minha página do Facebook:


Alguns colegas expressaram o seu acordo, outros lembraram-nos que não pode haver uma solução "one-fits-all". E não pode mesmo. O sector cultural não é um mundo homogéneo e cada área tem as suas especificidades. Na verdade, parece que a lei portuguesa sobre cancelamentos e adiamentos tinha, até agora, como base a área da música (concertos e festivais). O vídeo, no entanto, fez-me pensar especificamente em teatros e centros culturais com direcção artística. Um colega com esse tipo de responsabilidade criticou o meu post. Aqui está um resumo dos seus argumentos:

  • O reagendamento é fundamental para cumprir com o compromisso de co-produzir e apresentar um espectáculo;
  • Sem reagendamento, os artistas ficam sem as apresentações e o contacto com o publico;
  • Nós reagendámos os nossos espectáculos para que tudo possa voltar a cena;
  • Portanto, defendes que os artistas deviam ser prejudicados pese embora já tivessem as apresentações marcadas?
  • As temporadas são decididas neste momento. Não se pode “esperar” sob pena de estarmos a condenar a temporada 20/21 penalizando duplamente os artistas.
Li atentamente esses argumentos, grata por poder ter uma visão das preocupações e prioridades de um director artístico num momento como este. No entanto, depois disso, adiar fez ainda menos sentido para mim.

Antes de tudo, não quero parecer insensível à situação dos artistas, muito menos causar-lhes mais danos ou angústia. Dito isto, a programação de uma organização cultural tem apenas a ver com os artistas ou com uma comunidade maior, da qual fazem parte os artistas, outros profissionais da cultura e as pessoas a quem chamamos de “público”? Uma encomenda ou co-produção decidida há meses, resultado de uma intenção específica, será relevante para esta comunidade quando voltarmos? E o que é que "voltarmos" significa ao certo neste momento? Que forma vai tomar? É realista acreditar que daqui a uns meses estaremos a festejar “normalmente” a abertura de mais uma temporada? Trata-se de adiar o “business as usual” ou será esta uma oportunidade de transformá-lo?

Há muitas perguntas para as quais não temos respostas neste momento. A nossa realidade continua a evoluir, continua a mudar. Talvez, a única coisa que possamos dizer com certeza é que não teremos a abertura "normal" de uma temporada em Setembro, não como a tínhamos planeado. As questões serão diferentes, a nossa psicologia será diferente, os espaços e formatos provavelmente terão que ser diferentes também. Será um lento retorno à normalidade pela qual ansiamos (estarmos juntos, tocarmo-nos, partilharmos a experiência de um espectáculo). Ao mesmo tempo, este é provavelmente o momento para pensarmos também na "normalidade" à qual não queremos voltar (vejam o questionário Where to land after the pandemic?)

Como vamos sobreviver a isto? Como podemos adaptar-nos para sobrevivermos? O que fará sentido? O que desejamos? Para o que é que não queremos voltar? Acredito que as respostas a essas perguntas não virão do reagendamento de projectos previamente programado, pelo menos, não de todos eles e não da forma como tinham sido pensados. Faria sentido procurarmos juntos as respostas, com as nossas comunidades, incluindo os artistas. "Não nos fixemos no plano, mas fixemo-nos na pessoa", disse a minha amiga e colega Chiara Organtini na nossa mais recente reunião do RESHAPE.

Neste processo em que vamos ter que rever o nosso trabalho e o nosso lugar na comunidade, vamos discordar. É natural e é necessário, nunca antes passámos por isto. Não há outra maneira para afinarmos e ajustarmos as nossas ideias e imaginarmos o nosso futuro juntos.


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