Monday, 10 January 2011

A iniciativa privada em tempo de crise

O livro de Sir Peter Hall Cities in Civilization aborda as seguintes questões: como é que acontecem as idades de ouro de certas cidades? Porque é que a chama criativa arde de forma tão especial, tão única, em cidades e não no campo? O que é que faz com que uma determinada cidade, num determinado momento, se torne de repente imensamente criativa, excepcionalmente inovadora? Porque é que este espírito floresce durante alguns anos, em geral uma ou duas décadas, e depois desaparece tão repentinamente como apareceu?

Na primeira parte do seu livro, The city as cultural crucible (A cidade como cadinho cultural), Hall analisa as idades de ouro de Atenas, Florença, Londres, Viena, Paris e Berlim. Ao todo, o livro tem quase 1000 páginas. Levarei algum tempo para o acabar, mas já li o capítulo sobre Atenas. É sobre ela que quero escrever.

Foto: GNTO

Atenas, diz o autor, foi a primeira. A primeira em tantas das coisas que, desde aí, se tornaram importantes para a cultura ocidental: democracia, filosofia, escrita sistematizada da história, conhecimento científico, poesia lírica, tragédia, comédia, arte naturalista, arquitectura. Mas porquê ali? E porquê naquela altura? Haverá factores como a geografia, o clima, o crescimento económico, a abundância, a democracia, o pensamento livre, o facto de ter sido provavelmente a primeira cidade global. No entanto, nenhum desses factores constitui explicação suficiente para Peter Hall, sobretudo porque todos eles existiram, duma forma ou doutra, também noutras cidades, noutros territórios, que tiveram os ingredientes, mas esses não se juntaram com a ordem certa, da forma certa.

Para perceber o milagre que foi Atenas, diz o autor, é preciso ser historicamente mais específico. Atenas teve uma localização única, como centro comercial. Foi o comércio que trouxe a exposição às altas culturas do Oriente e também pessoas com muita energia e talento, provenientes de todo o mundo grego e do Mediterrâneo oriental, produzindo um cadinho étnico e cultural único. Depois, foram as invasões do norte que trouxeram novas influências e interromperam o contacto com o Oriente, obrigando a cidade a viver dos seus próprios recursos. A seguir, foi o desenvolvimento de um grande império comercial, que trouxe todos os bens do mundo civilizado aos mercados de Atenas e também dinheiro de impostos e escravos, fornecendo a base para uma muito particular democracia aristocrática. A sociedade e cultura atenienses baseavam-se na exploração: primeiro, existiam graças aos impostos que afluíam do império; segundo, Atenas mantinha aspectos críticos de uma sociedade aristocrática; terceiro, dependia significativamente do trabalho de estrangeiros ali residentes, que alimentavam a economia e foram responsáveis por muitos dos avanços ocorridos. Hall conclui que do conflito entre a ordem antiga e os pregadores da inovação gerou-se uma criatividade única: surgiu uma sociedade que combinava a fina discriminação e padrões críticos da velha sociedade com o cepticismo e inventividade de uma nova ordem.

Enquanto lia a análise de Peter Hall sobre o milagre de Atenas, procurava (inevitavelmente?) identificar ‘o que resta’. No entanto, encontrava mais semelhanças com os factores que levaram a cidade antiga à crise: o colapso económico provocado essencialmente pela guerra com Sparta, o individualismo (tão encorajado pelos Sofistas), o abandono da assembleia, a procura da riqueza pessoal, a perda de fé na e preocupação pela ‘polis’.

Nos últimos meses houve algumas iniciativas na capital grega que indicam que os Atenienses (mas também os Gregos em geral e pessoas de todos os lados do mundo) procuram no legado deixado pelos Gregos antigos respostas que os possam guiar no futuro, que os possam ajudar a redefinir valores e prioridades. No fim de Outubro foi organizada no novo Museu de Acrópolis uma maratona cultural sobre a relação da Grécia moderna e do mundo em geral com o mundo antigo. Um evento que juntou especialistas, intelectuais e artistas de todo o mundo e que durou 12 horas. Semanas depois, o novo Centro Cultural da Fundação Onassis abriu as suas portas com os “Diálogos de Atenas”, uma iniciativa que contou com a colaboração de oito instituições académicas internacionais e colocou a civilização grega no centro de uma reflexão sobre o seu papel na sociedade moderna. Foram organizados seis painéis sobre as temáticas “Identidade e alteridade”, “História e histórias”, “Razão e arte”, “Democracia e estado”, “Ciência e ética”, “Qualidade de vida”.

Foto: Centro Cultural Onassis
Foi na abertura deste novo Centro Cultural da Fundação Onassis que encontrei algo que liga a cidade moderna à antiga: a entrega livre e voluntária de parte da riqueza pessoal à cidade (na Grécia antiga os impostos eram considerados indignos de um cidadão livre, mas esta entrega voluntária era esperada e honorífica). Chamava-se leitourgia (serviço) e financiava a construção de edifícios públicos, eventos desportivos, banquetes, etc. No entanto, a leitourgia mais importante era a khoregia (palavra que podemos traduzir por ‘patrocínio’), que servia para pagar os membros do coro das tragédias e comédias.

A Fundação Onassis tem abraçado este espírito, tal como muitas outras fundações privadas, e a abertura do centro cultural é disso prova. Nas palavras do seu presidente, Antonis Papadimitriou: “A perda global de confiança das pessoas precisa de respostas de apoio. Mais que nunca, o teatro, a dança ou as artes plásticas podem providenciar este espaço necessário para a reflexão. O Centro Cultural Onassis, ao escolher apoiar a criação contemporânea num país virado sobretudo para o seu património, tem um papel determinante a desempenhar para dar sentido aos debates actuais” (jornal Le Monde de 23.12.2010).

O Estado Grego moderno, criado em 1830, beneficiou nas primeiras décadas da sua vida do apoio financeiro de muitos Gregos abastados da diáspora. Hoje em dia, o país continua a contar muito com a iniciativa privada em várias áreas da vida pública, inclusivamente na cultura. Nessa mesma avenida onde abriu agora o Centro Cultural Onassis, a Fundação Niarchos (que tinha sido o grande rival de Onassis) está a construir o novo edifício da Biblioteca Nacional e do Teatro Nacional de Ópera.

Em tempo de crise, económica e sobretudo social, encontra-se ‘refúgio’ na cultura. A iniciativa privada assume também responsabilidades, contribui, ‘devolve’ à sociedade. Uma ‘devolução’ voluntária e honorífica, que não se concretiza procurando fazer negócio com o estado. Afinal, parece que resta algo.

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