Monday 2 April 2012

Ministério da Cultura: qual cultura e de quem?

“A protecção dos direitos humanos, em uma sociedade cultural, requer a observância dos direitos culturais, enquanto direitos universalmente aceites. Não há direitos humanos, nem tampouco democracia, sem a justiça cultural, sem a diversidade e pluralismo cultural e, nem tampouco, sem que se assegure o direito de existir, o direito à visibilidade, o direito à diferença e à dignidade cultural.” Flávia Piovesan em Construindo a Democracia: prática cultural, direitos sociais e cidadania


Coreto em Alpalhão, Portalegre (imagem retirada do blog À espera de Godot)
Um rapazinho de 11 anos disse-me um dia destes que só quando vai de férias ao Algarve pode ir ao cinema, porque em Évora, onde reside, não há cinema. Primeiro senti-me incrédula; depois chocada; depois envergonhada; no fim, revoltada. Évora, capital de distrito, cidade universitária, não tem cinema em 2012.

Isto levou-me a pensar novamente na entrevista de António Gomes de Pinho no Câmara Clara (26.02.2012), onde disse que a manutenção de um Ministério da Cultura, que tinha vindo a perder peso político, era um custo exagerado, um consumo auto-fágico; por isso, António Gomes de Pinho tinha vindo a defender a extinção do mesmo, a redução dos serviços e a afectação dos recursos aos criadores, que são quem faz a cultura.

Por muito que concorde com a primeira parte deste raciocínio, não posso concordar com a solução proposta. A existência de um Ministério da Cultura não se justifica, em primeiro lugar, para apoiar os criadores e a sua extinção não afecta (no sentido de beneficiar ou de prejudicar), em primeiro lugar, a criação. Um Ministério da Cultura existe para que o rapazinho de Évora (e muitos outros rapazes e raparigas, homens e mulheres, em todo o país) possa ver cinema; possa ir ao teatro; possa assistir a concertos; possa visitar um museu; possa ter uma biblioteca. Existe também para proteger e salvaguardar, para todos nós, a herança cultural e para criar as condições necessárias para que algumas pessoas possam dar asas à sua criatividade e partilhá-la com todos nós, dando o seu contributo para aquilo que será a herança de gerações futuras. Existe para garantir que o sector seja ‘povoado’ por profissionais adequadamente preparados, do ponto de vista técnico, para as funções que estão a desempenhar. Existe ainda para contribuir para a formação de cidadãos atentos, críticos, sensíveis, tolerantes, intervenientes. Um Ministério da Cultura existe, em primeiro lugar, para garantir o acesso dos cidadãos à dita, sendo este um direito humano que todos os Estados têm a obrigação de defender.

No entanto, a dialéctica da maioria dos profissionais do sector cultural está bastante afastada da defesa deste direito fundamental. Deixando a sociedade de lado (esquecendo-se dela?), parece-me que o nosso discurso está sobretudo concentrado na reivindicação de apoio financeiro por parte do Estado e a nossa voz é normalmente (e, cada vez mais, esporadicamente) ouvida após anúncios de cortes ou de extinções ou, às vezes, de nomeações. Somos um sector bastante egocêntrico (apesar de existirem, sim, ilustres excepções - a começar pelos serviços educativos de muitos museus deste país) e não nos preocupamos o suficiente pelo facto de, quando reclamamos, estarmos a reclamar sozinhos, nós por nós, sem o envolvimento ou o apoio de grande parte da sociedade (ou até de uma pequena parte). Quando confrontados com esta realidade, preferimos pensar que se trata de um desinteresse da sociedade pela “cultura”. Qual cultura? De quem?

O discurso do encenador e director dos Artistas Unidos Jorge Silva Melo foi, por isso, uma agradável excepção. Ao comentar o anúncio do corte de 100% nos apoios anuais e pontuais (SIC, Edição da Manhã, Revisão de imprensa, 17.03.2012), Jorge Silva Melo deu uma orientação diferente a tudo isto, centrando as suas preocupações no espectador: “(…) Eu, como espectador, vou deixar de ter espectáculos em que possa descobrir jovens talentos, jovens afirmações. (…) Os apoios não são para financiar os artistas, os apoios são para financiar o espectador. Porque se eu quiser ir ver um espectáculo do colectivo Truta, se ele não tiver apoio, terei que pagar mais ou menos 100 Euros por bilhete e não tenho esse dinheiro. E tenho direito de ver aquilo que os jovens criadores andam a fazer, a inquietar-se, a pensar. É esse apoio que a mim, enquanto espectador, me é retirado. (…)”.

Se bem que a reflexão de Jorge Silva Melo incida sobre um ponto muito concreto - um dos muitos com os quais um Ministério da Cultura se deveria preocupar (continuemos a falar a esse ‘nível’, de Ministério, mesmo que a nossa realidade seja ‘menor’), é um exemplo sobre a forma como deveríamos estar a construir a nossa argumentação: não esquecendo e não deixando esquecer em momento nenhum ao serviço de quem está o Estado; ao serviço de quem está um Ministério da Cultura; para quem existem os museus públicos; ou com quem pretendem comunicar, partilhar a sua reflexão, os criadores e artistas apoiados; entre muitas outras coisas.

Por outro lado, tanto nós, profissionais do sector, como a tutela, devemos tomar consciência o mais rapidamente possível que é obrigatório, urgente, abrirmos o debate, envolvermos a comunidade, procurarmos - quando apoiamos, quando programamos, quando planeamos, quando divulgamos - uma maior representatividade das várias realidades culturais do país, procurarmos o pluralismo e o respeito pelos anseios, preocupações, necessidades e gostos de muitos cidadãos (criadores e público) e não apenas de uma minoria. Porque a maioria dos cidadãos não tem falta de interesse pela cultura em geral; mas talvez tenha, sim, pela ‘nossa’.


Ainda neste blog

Mais leituras
António Pinto Ribeiro, O Ministério dos Assuntos Culturais

3 comments:

Pedro Freitas said...

Boys R Us da Cultura

Começo por dizer que não tenho qualquer conflito de interesses na área cultural nacional. Não sou sequer de Letras mas acredito que um homem de Ciência pode (e deve) interessar-se pela História, Arte e Património do seu país. Talvez seja uma das vias de fuga à alarvice atávica que grassa por este rectângulo à beira mar especado…
Contrariando a tendência nacional não vejo reality shows televisivos, nem futebol e muito menos touradas. Vou ao cinema, ao teatro, a exposições, visito museus, palácios e conheço o nosso património histórico edificado. Pertenço ao grupo de amigos de museus e acompanho de muito perto a “luta pela sobrevivência” de alguns (muitos?) museus e palácios nacionais. Para além disso sou mecenas ocasional de alguns eventos culturais. Por tudo isto penso ter toda a legitimidade para denunciar factos, levantar questões e indignar-me com o muito que se tem maltratado a cultura no nosso país. Mas, se reflectirmos um pouco, até não é assim tão estranho se olharmos atentamente para o curriculum de quem nos tem governado nos últimos anos… Mas como não padeço de insuficiência curricular, nunca precisei de me inscrever numa qualquer J partidária para ter emprego, nunca me filiei em nenhum partido político, não sou Maçon nem Opus Dei, vou tentando dizer o que muito bem me apetece acerca deste Estado de coisas e destas coisas do Estado!
O nosso Primeiro anunciou ad nauseam que o mérito iria presidir às nomeações para a Administração Pública, e alguns acreditaram…
A questão que hoje me assola o espírito prende-se com a reunião anunciada para o dia 16 deste mês na qual irão estar presentes todas as chefias da área cultural nacional (IMC, IGESPAR, etc). Esta reunião, convocada por Elíseo Summavielle, hoje Director Geral da Direcção Geral do Património Cultura, ex-sub-Director da DGEM em vários Governos e ex-Secretário de Estado da Cultura no Governo PS – portanto um sobrevivente ou um peixe que navega em qualquer água – serve aparentemente para informar as chefias da nova Lei Orgânica da nova Direcção Geral do Património Cultural, que engloba os ex-IMC, ex-IGESPAR e ex-Direcção Regional de Cultura de Lisboa e Vale do Tejo, sem que ninguém tenha sido ouvido. Este aliás parece ser o novo lema: nem nos dêem a vossa opinião que nós faremos como muito bem entendermos…
Mas tão ou mais surpreendente, vai ser entretanto anunciado o que toda a gente já sabe, a nomeação do João Soalheiro para o lugar de Director dos Museus!!! Este senhor, que deixa um rasto de despotismo e de exercício gratuito de poder na Direcção Regional de Cultura de Lisboa e Vale do Tejo, vai certamente conseguir dar o toque final na transformação dos nossos museus em ruínas museológicas! Este senhor (não ofendendo os verdadeiros senhores porque esses são educados…), que nada sabe de museologia, que nunca geriu um museu e dedicou a sua vida aos bens culturais da Igreja, deve ter sido o melhor achado, quiçá por inspiração divina ou Patriarcal, para ser o salvador dos museus! O seu curriculum e a sua experiência na área são o garante… do desastre! Quem está por trás de João Soalheiro, um homem que também vem de uma nomeação do Governo PS?
Na supracitada reunião vão igualmente ser anunciadas “fusões” de museus e passagem de alguns apara as Direcções Regionais de Cultura. Ninguém pergunta porquê? Ninguém quer saber qual a vantagem para essas instituições de ficarem ligadas a organismos sem vocação nem experiência nesta área? Ninguém estranha? Que ganho terá o Estado? E nós, cidadãos contribuintes, o que podemos esperar de melhor?
Este país tem o que merece e o problema, o grande problema mesmo, é que a culpa é de todos e de cada um de nós, pelo nosso silêncio, pelo nosso conformismo, pelo nosso laxismo.
Como dizia Eça de Queiroz, “pensar e fumar são duas operações idênticas que consistem em atirar pequenas nuvens ao vento”. É assim que me sinto mas vou continuar a lutar contra ventos e marés…

Manoel de Ligne

Maria Vlachou said...

Caro Pedro,

Obrigada pelo seu comentário. Retenho em especial as suas palavras sobre o nosso silêncio, o nosso conformismo, o nosso laxismo. Nunca se justificam, muito menos agora.

mv

André Fonseca said...

"Deixando a sociedade de lado (esquecendo-se dela?), parece-me que o nosso discurso está sobretudo concentrado na reivindicação de apoio financeiro por parte do Estado e a nossa voz é normalmente (e, cada vez mais, esporadicamente) ouvida após anúncios de cortes ou de extinções ou, às vezes, de nomeações." Aqui no Brasil é o mesmo panorama. Parece que frequentemente artistas, produtores e espaços culturais - nem irei mencionar os gestores, pois são tão poucos os que assim merecem ser chamados - entendem cultura como sinônimo de "artes", e mais estritamente, as artes dentro da área na qual atuam. É como se cinema, dança ou teatro não fossem parte de algo maior chamado "cultura". E enquanto nem mesmo os profissionais da cultura forem capazes de mudar seu entendimento, não é possível esperar que a sociedade também o faça.

Sempre me questiono muito sobre que imagem a área cultural transmite para o poder público, para as empresas patrocinadoras e para a sociedade. E não me parece que seja algo positivo. A julgar pelos comentários de internautas que leio em matérias publicadas sobre o Ministério da Cultura no Brasil, boa parte das pessoas acha que é um ministério sem razão de ser, assim como os artistas estariam apenas fazendo muita festa com os recursos públicos das leis de incentivo à cultura. É como se a área cultural estivesse desconectada da sociedade, o que muito me lembra o artigo "A cultura é cara? Experimentem a ignorância", de Antônio Pinto Ribeiro.

Quem realmente está preocupado com a cultura, para além dos interesses privados de cada um? Às vezes tenho receio da resposta.