Imagem retirada de detroitfunk.com |
A discussão à volta do valor das
artes e da cultura conta já com bastante literatura. As questões relativamente
à sua instrumentalização pelos governos ou ao seu carácter intrínseco têm
estado na ordem do dia desde há muitos anos, sobretudo em países como os EUA, o
Reino Unido ou a Austrália. Num determinado momento, considerando todas as
‘provas’ que se tem que dar, pensei que os profissionais da cultura são mesmo e
apenas isso: profissionais da cultura. Não são nem professores, nem terapeutas,
nem médicos, nem padres, nem polícias… Se o seu trabalho tem um impacto
positivo noutras áreas, este impacto deve ser registado e os profissionais
dessas outras áreas, assim como os ‘utentes’ das mesmas, deverão ser os nossos
embaixadores. Mais do que qualquer estudo sobre, por exemplo, o impacto da
cultura na economia de um país (existem vários, os governos usam-nos ou
ignoram-nos), mais do que qualquer argumento que nós possamos apresentar em
defesa do nosso contributo à sociedade, fazem falta os testemunhos dos ‘beneficiários’
directos - mesmo que de benefícios ‘colaterais’ - do nosso trabalho. E não nos esqueçamos, são essas as pessoas que votam nas eleições.
No entanto, mais que uma vez
partilhei aqui a minha preocupação pelo facto dos profissionais do sector
cultural estarem afastados da sociedade, das pessoas. Sempre que se debate a
importância da cultura, as razões porque deve ser financiada pelo Estado,
apresentamos argumentos que servem sobretudo para consumo interno. Somos nós a
falar para os nossos pares em defesa do nosso ‘cantinho’. Passamos mesmo a
ideia de que estamos a defender questões pessoais e não o bem comum.
As pessoas defendem e apoiam com
os seus impostos a existência de hospitais públicos (esperando até que nunca
venham a pôr pé neles, mas porque reconhecem na sua existência um bem comum).
Como fazer para que se pense e se fale dessa mesma forma sobre a cultura? Para
que todos, utilizadores e não utilizadores, a encarem como um bem comum e
indispensável?
Há aproximadamente dois anos,
deparei-me pela primeira vez nas minhas leituras com o termo ‘valor público’
(public value), num texto de John Holden de 2004 que se chamava Capturing Cultural Value: How culture has become a tool for government policy.
Neste texto, o ‘valor público’ é definido como o valor acrescentado por um
governo e pelo sector público no sentido mais amplo. Trata-se da diferença
entre aquilo que os cidadãos dão às entidades públicas e aquilo que recebem. Os
cidadãos reconhecem valor quando abdicam de algo para receber esse valor (na
cultura seria, por exemplo, dinheiro –
para a compra de bilhetes, donativos… -, tempo, energia, trabalho voluntário,
etc.).
No mês passado, o Detroit
Institute of Arts (DIA) tornou-se notícia porque conseguiu convencer os
habitantes de três distritos de Michigan a votar num novo imposto de
propriedade que reverterá para o museu. Assim, o DIA terá $23 milhões por ano
nos próximos 10 anos (91% do seu orçamento), ao mesmo tempo que tentará
angariar mais fundos para, findos os 10 anos, poder continuar a funcionar. Após
a votação do imposto, o museu ofereceu entrada gratuita a todos os habitantes
dos três distritos.
A propósito deste acontecimento,
Diane Ragsdale, autora do blog Jumper, fez uma excelente análise (ler
aqui),
com
links também para outros textos, onde coloca questões que me parecem
extremamente pertinentes: terá sido calculado o impacto (no sentido da redução)
nas contribuições habituais dos cidadãos (donativos, compra de bilhetes,
assinaturas, etc.); teria sido uma solução mais inteligente e mais ética
procurar beneficiar com esta taxa várias instituições da área; estará o DIA a
colocar-se numa posição desconfortável perante a comunidade ao ter que renegociar
a sua relação com ela findos os 10 anos; o que motivou as pessoas a votarem o
imposto e como se estarão a sentir o que votaram ‘não’; como deverá ser
interpretada a triplicação do número de visitantes na semana a seguir à
votação; e, por fim, qual será o impacto deste acordo quid pro quo no
que diz respeito aos benefícios que uma comunidade poderá (e quererá) receber
pelo seu apoio à uma instituição cultural?
Esta última questão leva-me a um
outro excelente texto, de Nina Simon, autora do blog Museum 2.0, que se
concentrou na discussão pública que se gerou durante a campanha do museu (ler
aqui). Nina
analisou os mais de 300 comentários no Detroit Free Press Online e voltou a
colocar questões relativamente à forma como é entendido pelas pessoas o valor
público da cultura e a forma como estes debates podem e devem ser conduzidos
pelas próprias instituições culturais. Nina citou um interessantíssimo estudo, The Arts Ripple Effect: A research-based strategy to build shared responsibility for the arts,
que,
entre outros, identifica três principais ‘pré-conceitos’ no que diz respeito às
artes: as artes são uma questão privada (uma questão de gostos, experiências e
enriquecimento pessoais e também uma questão de expressão pessoal); as artes
são um bem que pode ser adquirido (e por isso, deveriam funcionar como qualquer
outro produto no mercado); as artes não são uma prioridade (até entre as
pessoas que as valorizam). Portanto, o estudo sugere que, conhecendo estas e
outras suposições, é possível construir argumentos em prol da cultura que a
maioria das pessoas possa entender, reconhecendo o seu impacto na sua própria vida
e naquela da sua comunidade. Um bem comum precisa de uma linguagem e de um
quadro comum, partilhado por todos.
Rebecca Lamoin, Directora Associada de Estratégia no
Queensland Performing Arts Centre e minha colega no Kennedy Center, está
actualmente a trabalhar num projecto sobre o valor público das instituições
culturais. No âmbito do projecto, irá promover um programa de rádio a nível
nacional, aberto ao público. Nesta fase preparatória, está a convidar
profissionais da cultura de todo o mundo a fazer breves depoimentos,
respondendo às seguintes perguntas:
- Qual é a coisa mais importante que a sua organização fornece à
sua comunidade?
- Porque é que a sua comunidade gosta da sua organização?
- De que é que as pessoas na sua cidade sentiriam falta se a sua
organização deixasse de existir?
Penso que tentar responder a essas
perguntas, e em especial à última, seria um bom exercício para todos nós. E
seria ainda interessante saber quantas instituições culturais em Portugal têm
já as respostas, porque procuram activamente recolher esses dados e registos.
Rebecca Lamoin irá dar-nos conta neste blog de como as coisas correram
na Austrália no início de Novembro.
Ainda neste blog
Mais leituras
Public Value and the Arts in England: Discussion and conclusions of the arts debate
Sobre outros esquemas de impostos que beneficiam instituições culturais em cidades americanas, vale a pena ler este post de Ian David Moss no blog Createquity.
Sobre outros esquemas de impostos que beneficiam instituições culturais em cidades americanas, vale a pena ler este post de Ian David Moss no blog Createquity.
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