Monday 17 June 2013

Blogger convidado: "Sou daqui", por Zeina Soudi (Palestina)

Conheci a Zeina Soudi no mês passado, graças à Laurinda Alves. São as gestoras do Dialogue Café em Ramallah e Lisboa, respectivamente. Em duas horas conseguimos falar de imensas coisas, mas o que chamou em particular a minha atenção foi a busca da Zeina pela sua identidade. Nascida no Líbano de pais palestinianos, visitou pela primeira vez a Palestina com passaporte jordano. Foram precisos mais 10 anos para conseguir o seu bilhete de identidade palestiniano. A pergunta “De onde és?” foi sempre difícil de responder. Apesar do contexto palestiniano ter, naturalmente, as suas especificidades, várias partes na sua narrativa terão um significado especial para muitos de nós e irão levantar novamente questões sobre cultura, identidade, raízes, ‘nós’ e o ‘outro’. mv
No passaporte de Zeina Soudi.
“De onde és?” é uma pergunta com a qual fui muitas vezes confrontada quando era mais nova. Uma pergunta que durante anos me deixava confusa e que não podia responder sem primeiro pensar. A resposta era normalmente uma embrulhada. Sou o produto de uma “terceira cultura”. Nasci no Líbano e vivi em Malta e no Chipre até quase ao fim da adolescência, quando mudei para a Jordânia. Sou cidadã jordana de origem palestiniana. Mas até àquele momento, nunca tinha vivido na Jordânia ou estado na Palestina. A Palestina era apenas uma terra da fantasia sobre a qual falavam os meus pais e eu via na televisão. Sendo uma estrangeira nesses países, a pergunta “De onde és?” era uma pergunta que me apavorava, quando deveria ser uma das mais simples perguntas à qual uma pessoa devesse responder.
Na minha viagem para afirmar e reafirmar a minha identidade houve muitas reviravoltas, confusões e restrições. A começar pela pergunta “De onde és?”.
Fiz os dois últimos anos da escola em Amman, e apesar de ter adquirido um sentimento de pertença, algo faltava ainda. Havia uma pequena parte em mim que ainda precisava de encontrar para me sentir completa. Assim, quando acabei a escola, decidi ir à Palestina sozinha e inscrever-me na universidade. Esta decisão ia ser o início de uma viagem muito difícil. Foi em 1997.
Como sabem, a Palestina continua ocupada. Para ir até lá preciso de ter autorização de Israel, o que provou ser mais difícil do que tinha alguma vez imaginado. Quando finalmente consegui a autorização a primeira vez, cheguei a meio caminho e depois não me foi permitida a entrada na fronteira israelita. Quando questionei porquê, responderam “Por razões de segurança”.
“Razões de segurança”? Que género de ameaça poderia ser por ir para a universidade estudar Inglês e Literatura? Isto não lhes interessava. Puseram um carimbo “Entrada NEGADA” no meu passaporte e mandaram-me de volta para Amman. Essas duas palavras no meu passaporte mudaram a minha vida. Tinha apenas 18 anos naquela altura. Só muitos anos depois descobri porque é que era uma “ameaça”.
Cheguei tão perto, mesmo assim estava ainda longe. Lembrei-me de A Letter to His son do escritor palestiniano Ghassan Kanafani:
“Ouvi-te no outro quarto a perguntar à tua mãe ‘Mamã, sou palestiniano?’. Quando ela respondeu ‘Sim’, um pesado silêncio caiu em toda a casa. Era como se algo que estivesse suspenso sobre as nossas cabeças tivesse caído, o seu barulho a explodir, depois – silêncio. Depois… ouvi-te chorar. Não conseguia mexer-me. Havia algo maior do que a minha consciência a nascer no outro quarto através do teu choro perplexo. Era como se um bisturi abençoado estivesse a abrir o teu peito para colocar ai o coração que te pertencia… Era incapaz de me mexer para ir ver o que se passava no outro quarto. Sabia, no entanto, que uma pátria distante estava novamente a nascer: colinas, olivais, pessoas mortas, bandeiras rasgadas e dobradas, tudo isto a abrir caminho para um futuro de carne e sangue e a nascer no coração de uma outra criança… Acreditas que o homem cresce? Não, nasce de repente – uma palavra, um momento, penetra o seu coração dando um novo pulsar. Uma cena pode lançá-lo do tecto da infância para a dureza da rua.”
Mas não desisti facilmente. Tentei várias vezes até conseguir a autorização para ir à Palestina.
Maqueta do The Palestinian Museum que começou a ser construído este ano. O museu será dedicado à exploração  e compreensão da cultura, história e sociedade da Palestina e dos palestinianos. Podem ler uma entrevista com o director do museu aqui.
Estava a aprender lentamente quantos bilhetes de identidade diferentes nós palestinianos somos obrigados a ter. E essas diferentes identidades determina por que rua podemos passar ou a que cidade podemos ir. Por exemplo, não me era permitido ir a Jerusalém, de onde é a minha família. Nós palestinianos somos obrigados a estar separados e a ser categorizados de acordo com a nossa origem e cor do bilhete de identidade.
Quando começou a segunda Intifada, decidi ficar na Palestina e acabar o meu curso. Foi quando me tornei numa “estrangeira-ilegal” no meu próprio país e passei 8 anos numa prisão ao ar livre, sem possibilidade de viajar, por ter receio que a entrada no meu país me pudesse ser negada para sempre. Estava determinada em plantar as minhas raízes, tal como os meus pais, avós e bisavós tinham feito. Apesar de me sentir claustrofóbica às vezes, e prestes a desistir, no fim consegui o que queria. Tive direito a um bilhete de identidade palestiniano e tornei-me “legal”. Esta foi a minha maneira de resistir a esta injustiça. Esta foi a minha maneira de afirmar a minha identidade. Esta foi provavelmente a razão porque para os israelitas era uma ameaça.
E aqui estou ainda hoje, sentada na minha sala de estar com todos os meus amigos, todos com bilhetes de identidade de cor diferente, passaportes diferentes, aqueles que nasceram na Palestina e outros, como eu, que nasceram noutros países. Seguimos todos caminhos diferentes. Mas temos todos uma coisa em comum, somos todos persistentes. Recusamos todos esta injustiça. Recusamos todos ser categorizados. Acordamos todos dia após dia e dizemos ‘não’ à ocupação.

E no final do dia, quando alguém me pergunta “De onde és?” posso dizer facilmente “Sou daqui”.


Zeina Soudi é gestora do Dialogue Café em Ramallah. O Dialogue Cafe é uma rede aberta de videoconferências que junta pessoas com vários perfis, em todo o mundo, para trocarem ideias, conhecimentos e experiências, lidando com diferentes culturas, sociedades e tradições. No passado, trabalhou para ONGs na área dos direitos humanos e do desenvolvimento social, e também para projectos relacionados com a arte e cultura palestiniana. Começou a sua carreira como professora de inglês. 

1 comment:

laurie said...

Obrigada, Maria, por amplificares mais esta voz e por dares sempre tempo e espaço a tantas e tão boas causas. Abraço! Hoje em dia a Zeina é muito mais do que um par ou uma 'colega' de DC para mim. É uma verdadeira amiga que me inspira e que muito admiro. Abraço daqui para ela, também.