Monday 24 June 2013

Elitismo para todos

Our Lady, by Eszter Szabó, 2012 (Foto: Maria Vlachou)

E de repente, em menos de uma semana, houve três posts diferentes no Facebook, escritos por três pessoas diferentes, referentes a três situações diferentes, mas com uma questão subjacente comum: o elitismo cultural.

Primeiro, o programador António Pinto Ribeiro criticou o anúncio de uma edição única e limitada do último livro do poeta Herberto Hélder. Considerou esta opção uma campanha de marketing ofensiva, uma decisão arrogante, pouco dignificante para todos os envolvidos. Alguém comentou que esta tinha sido provavelmente a vontade do poeta – que se sentiu desconfortável por ter ficado na moda e que preferiu tornar os seus livros em objectos menos acessíveis. António Pinto Ribeiro reafirmou a sua crítica (ler o post aqui).

Poucos dias depois, o crítico de arte Alexandre Pomar escreveu sobre a popular artista contemporânea Joana Vasconcelos – que representa Portugal na Bienal de Veneza – e os ferozes ataques e críticas que tem recebido de muitas pessoas do sector. Falou da rejeição de qualquer obra de arte que tenha impacto público, êxito popular, um lugar no mercado internacional. Referiu-se ainda à subordinação a uma camarilha que se reserva o direito de definir o que é arte contemporânea de qualidade e que gere o “Great Divide” (erudito vs. de massas; de vanguarda vs. popular; culto vs. inculto; “high” vs. “low”). Na sua conclusão, Alexandre Pomar afirma: “Se existe uma relação traumática com a Joana e a sua obra é porque ela movimenta poderosas tensões (e pulsões)”. (ler o post aqui).

Dois dias mais tarde, a jornalista Paula Moura Pinheiro partilhou que achou muita graça ao facto da notícia mais popular no sector “Cultura” do Público ter sido a revelação de Michael Douglas que o seu cancro na garganta se deveu à prática de sexo oral… Daí, continuou e comentou sobre uma reinante confusão entre categorias, sobre o misturar o entretenimento (interessante para muitos) e as artes e o pensamento (interessante apenas para poucos). Escreveu que muito frequentemente tinha dificuldades em convencer os decisores de televisões e rádios que era mau serviço apresentar no mesmo programa a estreia do último filme do Zorro e o último livro de Herberto Hélder (aqui está ele outra vez). “Chateia os apreciadores do Zorro que, em muitos casos, se estarão nas tintas para a Poesia e afasta os amantes do Herberto.” (ler o post aqui).

Estava ainda a pensar nestes três posts e nas questões que levantavam, quando um amigo me enviou um texto do escritor José Luís Peixoto, intitulado Luta das classes. Nele partilhava a sua convicção que o seu trabalho só ganha sentido quando há um receptor do outro lado. Procura, por isso, assegurar que este tenha a mais ampla divulgação possível: deve-o a ele próprio e à convicção que tem naquilo que escolheu dizer; mas fá-lo também por respeito às pessoas que queiram ler o seu trabalho. O jornalista Vítor Belanciano comentou este texto e afirmou que, apesar de ter gostado e desgostado tanto de textos de José Luís Peixoto como de Herberto Hélder (aqui está ele outra vez), e apesar de respeitar o silêncio de Hélder, identifica-se mais com o Peixoto e os seus esforços em tornar o seu trabalho o mais disponível possível, sendo criticado por isso (uma visão que Vítor Belanciano considera elitista, acanhada e provinciana). Um ou outro comentário a este post  afirmava: “ Estás a comparar o incomparável” (o comentador não percebeu o ponto do Vítor…); “Como é que podes falar no mesmo parágrafo e nos mesmos termos sobre o José Luís Peixoto e o Herberto Hélder?” (Como é que se “atreveu”, realmente…?). (ler o post aqui).

Trabalho na área da comunicação cultural. O meu objectivo é partilhar informação, provocar interesse, ajudar as pessoas a tomarem decisões, criar acesso. Em última análise, o meu objectivo é contribuir para empurrar as fronteiras das pessoas mais longe, para as desafiar, para as confortar, para enriquecer as suas vidas e alimentar o seu pensamento. Mais que uma vez lidei com artistas que se recusavam ou não estavam interessados em partilhar informação que poderia ajudar a promover o seu projecto, desde uma simples sinopse ao dar uma entrevista (curiosamente, isto raramente acontece quando não têm um cachet assegurado no bolso e o seu pagamento depende da receita de bilheteira…). Esses artistas fazem-me frequentemente pensar: “Para quem fazem o que fazem? Para os seus amigos e familiares? E se assim for, é aceitável quando o fazem com dinheiro público?”.

No entanto, sou também eu própria consumidora. Uma consumidora que gosta tanto de “Bridget Jones” como da poesia de Cavafi; que sabe um pouco sobre música clássica e que se sente completamente inadequada quando na presença de pessoas que sabem tudo sobre a cena musical pop ou indie; que não gosta de videojogos, apesar de fazerem parte da colecção do MOMA; que saiu de exposições de arte contemporânea furiosa porque um curador “culto” pensou que ela seria tão “culta” quanto ele e que não iria precisar de qualquer explicação ou contextualização (ou que provavelmente pensou que se não fosse suficientemente “culta” não deveria lá estar de qualquer forma); que se sentiria ofendida e profundamente irritada se um dos seus escritores favoritos optasse pro fazer uma edição limitada do seu último trabalho por não gostar de se sentir “popular”.

Já vi qualidade e já vi coisas muito malfeitas em todo o tipo de expressões culturais e artísticas, “high” e low”, em todo o tipo de obras de arte “populares” e “não-tão-populares”. Admiro aquelas pessoas que não categorizam e que adoptam uma abordagem mais cosmopolita no seu consumo cultural e crítica de arte, que não estão contra o elitismo, mas que defendem o “elitismo para todos”. E sou grata àqueles (amigos, colegas, curadores, artistas, escritores, jornalistas) que me têm mostrado coisas novas, que têm partilhado e comunicado o seu trabalho, que me têm ajudado a perceber, que me têm permitido descobrir o “inseguro” quando eu ia pelo “seguro”, que têm empurrado as minhas fronteiras para a frente e que me têm dado o espaço e a confiança para falar do que gosto e do que não gosto sem medo e complexos.

Mais neste blog


Mais leituras
Vitor Belanciano, Herberto ou Peixoto (Público, 23.6.2013)
Emer O´Kelly, The case for elitism. The Arts Council, Ireland
John Holden, Culture and Class.


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