Monday 16 December 2013

Blogger convidado: "Museus na Ucrânia: Aprendendo a estar com as pessoas", por Ihor Poshyvailo (Ucrânia)

O Museu Ivan Honchar em Kiev, onde trabalha o meu amigo e colega Ihor Poshyvailo, publicou um post no Facebook no passado dia 20 de Novembro que dizia: “O Museu Ivan Honchar apoia os protestos nacionais contra a política do governo e contra os crimes da polícia para com os estudantes em protesto, e encoraja as pessoas a juntarem-se ao actual movimento popular para a democracia. Não sejam indiferentes – venham à Maidan! Só poderemos ganhar se estivermos juntos!”. Fiquei profundamente impressionada com esta afirmação tão audaz da parte de um museu nacional e pedi ao Ihor para partilhar connosco a sua reflexão sobre o papel que os museus podem desempenhar nas suas sociedades em momentos históricos, como estes que estão a ter lugar actualmente na Ucrânia. Não tenho palavras para agradecer ao Ihor o seu lindíssimo texto. mv

Foto: Bohdan Poshyvailo

No dia 1 de Dezembro, a minha amiga e colega americana Linda Norris publicou o post  If I Ran a Museum in Kyiv Right Now no seu blog The Uncataloged Museum. Foi a resposta imediata desta especialista em museus, muito conhecida na Ucrânia, ao ataque nocturno da polícia de choque a manifestantes pacíficos, sobretudo estudantes, em Kiev. Uma onda de manifestações e de agitação civil surgiu no final de Novembro, resultado de uma reivindicação maciça em Kiev por uma maior integração europeia, que se chamou “Euromaidan”. Guy Verhofstadt, membro do Parlamento Europeu e antigo Primeiro-Ministro da Bélgica, considerou-a a maior manifestação pró-Europa na história da UE. Victoria Nuland, Assistant Secretary no United States Department, declarou que a Euromaidan é um símbolo do poder da sociedade civil: “É sobre justiça, direitos civis e a exigência das pessoas de ter um governo que as ouve, que representa os seus interesses e que as respeita.”

No seu post, Linda coloca-se no lugar do director de um museu ucraniano e apresenta um plano de acção em três áreas: representação dos valores e ética da comunidade, serviço à comunidade, e colecção. Mais especificamente, teria feito uma declaração pública, teria olhado para o comportamento ético e a transparência no seu próprio museu, teria aberto as portas e convidado o público a entrar gratuitamente. Teria mantido o museu aberto cedo de manhã e até tarde à noite, oferecido chávenas de chá, proporcionado um lugar quente para reflexão e contemplação e criado, na exposição, um espaço para as pessoas escreverem ou desenharem sobre as suas esperanças e medos; teria encorajado os participantes a pensar sobre a Ucrânia como uma nação, sobre a beleza, a verdade e as histórias complicadas. Mais do que isso, teria permitido e até encorajado os funcionários do museu a participar nos protestos, se assim desejassem. Se a Linda fosse directora de um museu de história, estaria na rua a coleccionar objectos para a colecção, começando por Tweets e posts no Facebook, histórias orais, bandeiras, estandartes e sinais feitos à mão, e fotografias de barricadas, capacetes e fardas de polícia e até antídotos ao gás lacrimogéneo feitos em casa.

Foto: Bohdan Poshyvailo
Realmente, esta é uma reacção simples, eficaz e aparentemente comum para um típico museu americano ou ocidental. Um museu que é “sobre”, “para” e “com” as pessoas. Tinha sido este o tema da comunicação de uma outra colega e amiga, Maria Vlachou, na European Museum Mediators Conference em Lisboa, no ano passado (aqui). Servir a comunidade é particularmente importante para os museus modernos, que se estão a tornar em agentes de comunicação, operando não apenas explicitamente ao nível dos objectos de história, ciência, cultura, educação e entretenimento, mas também a um nível implícito, abordando as esferas do poder, da ideologia, dos valores e da identidade.

Mas para mim, no contexto dos actuais eventos em Kiev, a combinação das palavras “museus com as pessoas” ganha um novo sentido, um sentido especial. Isto parece bastante óbvio, banal até. Mas será comum para a Ucrânia e outros nações pós-soviéticas? Os nossos museus querem, podem e sabem como estar com as pessoas? Especialmente num período de revoltas sociais e tensões políticas, em situações invulgares, que exigem de um museu um olhar aberto e honesto nos olhos dos seus actuais e potenciais visitantes, das comunidades que representam.

Foto: Bohdan Poshyvailo
Acontece que a maioria dos museus na Ucrânia são estatais e, por isso, dependem ideologicamente, financeiramente e administrativamente do governo. Portanto, como deveriam comportar-se durante um conflito profundo entre o governo e a sociedade? Espero que para muitos museus a resposta seja teoricamente óbvia – o mesmo que para os soldados do exército e da polícia de choque que juraram “estar ao serviço das pessoas”. Serão os museus ucranianos observadores indiferentes dos eventos empolgantes da Praça da Independência, que têm tido cobertura a nível internacional? Como é que podem responder e mostrar-se inclusivos para as necessidades da sociedade e das comunidades que representam e que servem?

Ironicamente, no momento que o Presidente da Ucrânia Yanukonych estava de visita no Museu Qin dos Soldados em Terracotta na China e escrevia no livro dos convidados de honra, o ICOM Ucrânia e uma série de museus ucranianos emitiam declarações públicas condenando a inesperada repressão de manifestantes pacíficos e a retirada do pacto de associação à União Europeia. O Conselho de Directores dos Museus de Lviv coordenou as declarações de protesto de vários museus de Lviv. Um dos mais antigos museus etnográficos da Europa Oriental-Central, o Museu de Etnografia e Artesanato de Lviv, exibiu um estandarte na sua varanda que dizia “Apoiamos as exigências do Euromaidan”. Em Kiev, uma dúzia de museus fizeram declarações públicas, incluindo o Museu da História de Kiev que é gerido pela Câmara e tutelado pelo seu Presidente, cuja sede foi ocupada pelos manifestantes. O Museu-Memorial Pavlo Tychyna (perto de Maidan) abriu as suas portas aos manifestantes e ofereceu-lhes chá, um espaço para descansarem e programas culturais. O Museu-Reserva de História “Tustan” na região de Lviv pediu às pessoas através do Facebook para cozinharem bolos de mel, escreverem uma mensagem e enviarem aos activistas que gelam na rua. O Museu Ivan Honchar, que glorifica as eternas virtudes tradicionais do povo ucraniano – liberdade, fé, honra, democracia e humanismo, levou os seus programas educativos para a Euromaidan. Realizou uma série de flash mobs (como a instalação e decoração do tradicional símbolo ucraniano do Natal – Didukh, “o espírito dos antepassados”, aos pés do monumento da Independência) e organizou celebrações populares, danças e canções no epicentro da área dos protestos.

Praticamente todos os museus na Ucrânia são geridos e financiados pelo estado. Naturalmente, estamos preocupados com eventuais repercussões. Soubemos do director do famoso Museu do Território do Terror em Lviv que foi inquirido pelo Departamento de Investigação do Gabinete do Procurador-Geral como “testemunha” dos eventos na Euromaidan. Ouvimos sobre o condutor do metro de Kiev que foi despedido simplesmente por dizer aos passageiros como encontrar a saída mais próxima das estações centrais que estavam bloqueadas para se juntarem aos manifestantes. Ouvimos sobre os comandantes da polícia de choque que foram dispensados em algumas regiões quando os seus soldados se recusaram a ir a Kiev e atacar os manifestantes.

Foto: Bohdan Poshyvailo
Claro que o síndrome da Praça Tahrir está vivo nas memórias de muitos profissionais de museus, mas penso que a Euromaidan ucraniana é uma grande oportunidade para muitos museus testarem a sua capacidade de estar com as pessoas. Vi esta necessidade nos olhos brilhantes de muitos manifestantes pacíficos nas últimas três semanas. Cheguei à conclusão que, para estarem com as pessoas, os nossos museus não precisam necessariamente de fazer coisas extraordinárias, deveriam sobretudo ouvir com atenção o pulso da nação e abrir as suas portas aos corações gelados.



Ihor Poshyvailo é Etnólogo, doutorado pelo Instituto de Estudos Artísticos, Arte Popular e Etnologia, Academia Nacional das Ciências da Ucrânia (1998). É Director-Adjunto do Centro Nacional de Cultura Popular “Ivan Honchar Museum” (Kiev). Co-moderador e co-organizador de seminários internacionais sobre gestão de museus (desde 2005). Participou no International Visitor Program (EUA, 2004), Global Youth Exchange Program (Japão, 2004) e The World Master’s Festival in Arts and Culture (Coreia do Sul, 2007). Curador de projectos artísticos internacionais, incluindo a exposição itinerária Smithsonian Folklife Festival: Culture  Of, By, and For People” (2011), “Interpreting Cultural Heritage” (2011), “Home to Home: Landscapes of Memory” (2011-2012). Foi Fulbright Scholar no Smithsonian Center of Folklife and Cultural Heritage (2009-2010) e Summer International Fellow no Kennedy Center (2011-2013). Ihor escreveu um outro post para este blog em 2012, intitulado Reinventando e tornando os museus relevantes.

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