Monday 2 December 2013

Blogger convidado: "Construindo memórias", por Ricardo Brodsky (Chile)

Ricardo Brodsky, Director do Museo de la Memoria y los Derechos Humanos em Santiago de Chile, abriu a conferência da Museums Association em Liverpool no passado dia 11 de Novembro. A fotografia que o museu colocou no Facebook fez-me logo sentir pena de não ter podido assistir ao seu discurso. Mas contactei o Ricardo e ele teve a amabilidade de me enviar o seu texto e de autorizar a sua publicação neste blog. Apresentamos aqui uma versão editada, mais curta, mas existe um link no fim para os interessados em ler o texto na íntegra. mv


Este é o nosso 11 de Setembro, o início da história à qual irei referir-me e que inspirou o Museo de la Memoria y los Derechos Humanos (MMDH) no Chile.

1. Memória

A memória não é um exercício nostálgico. A memória é a nossa identidade, o que somos. Poderíamos dizer que a memória habita em nós de tal forma que define as nossas ideias sobre o presente, os nossos valores e a nossa percepção do futuro.

No seu texto La Muralla y los Libros, Jorge Luís Borges fala do Emperador Shih Huang Ti, que construiu a muralha da China e ordenou, ao mesmo tempo, que todos os livros produzidos antes dele fossem queimados. Com a muralha pretendia proteger o seu país dos inimigos externos e queimou os livros porque os seus opositores recorriam a eles quando queriam louvar os seus antepassados. O mesmo foi testemunhado nos anos de Pinochet, quando as instituições do país foram destruídas, desapareceram pessoas, foram queimados livros e as pessoas ligadas à cultura e história popular foram banidas porque, de alguma forma, representavam todas uma epopeia que tinha que ser abolida.

Uso a palavra ‘abolida’ e não a palavra ‘esquecida’ de propósito. O género de memória de que estamos a falar não equivale à capacidade de armazenamento de um disco rígido num computador, onde tudo é registado sem hierarquia. O oposto à memória não é o esquecimento mas a abolição, a eliminação. A memória funciona com eventos exemplares, com o que nos permite aprender lições, dar sentido à experiência vivida. A memória é, por isso, um passo mais alto, além do trauma e dos sentimentos de desespero, solidão e depressão que a memória pode causar. A memória é o que permite à vida continuar, com a esperança de voltarmos atrás, de voltarmos a nos apoiar nos nossos próprios pés. Com uma narração sobre o nosso passado e uma aposta sobre o nosso futuro.

2. Ligações

No MMDH trabalhamos com material que é extremamente complexo e sensível: verdade, justiça, vitimização, memória, reconciliação, reparação. Todas estas são ideias que nos questionam permanentemente e que nos obrigam, repetidamente, a reflectir sobre os conceitos que são a base do nosso trabalho. É impossível, no entanto, perceber a nossa instituição se não percebermos o processo do qual resultou, assim como as necessidades sociais e políticas que é suposto serem consideradas.

Em 11 de Setembro de 1973 começou uma das experiências políticas mais traumáticas do Chile. As forças armadas, lideradas por uma junta militar de comandantes-em-chefe, levantou as armas contra o Governo de Unidade Popular de Salvador Allende, instalando uma ditadura cruel que durou 17 anos, suprimindo os direitos legais e cometendo graves violações contra os direitos humanos, que resultaram na morte e desaparecimento de mais de três mil pessoas e a prisão política e tortura de mais quarenta mil, assim como o exílio de quase um milhão de Chilenos.  

Dezassete anos mais tarde, no seguimento da vitória da oposição num referendo realizado em 1988, com o objectivo de prolongar o governação de Pinochet, foi iniciada uma transição complexa e difícil para a democracia, que incluiu enfrentar as dívidas espinhosas deixadas pela ditadura, não apenas na esfera social e política, mas especialmente na área da recomposição moral da nossa sociedade, ou seja, na esfera da verdade, da justiça e dos direitos humanos. As políticas de direitos humanos do governo democrático têm-se centrado em quatro pilares ou exigências básicos: verdade, justiça, reparação e memória.

Museo de la Memoria y los Derechos Humanos (Foto: MMDH)
3. Verdade

Quando a democracia foi recuperada, o primeiro esforço na área dos direitos humanos no Chile foi no sentido de procurar estabelecer a verdade sobre as mais sérias violações dos direitos humanos cometidas durante a ditadura de Pinochet. Foram estabelecidas duas comissões, envolvendo pessoas com altas credenciais, que afirmaram que as violações dos direitos humanos cometidas por agentes do estado eram massivas, sistemáticas e tinham sido aprovadas ao mais alto nível do governo de então. Esta afirmação, apoiada pela existência de provas e testemunhos irrefutáveis, permitiu ao país saber a verdade sobre a existência de mais de 3.000 detidos-desaparecidos e executados e permitiu ainda dar um segundo passo muito relevante, que foi a abertura da possibilidade de estabelecer políticas de reparação para as vítimas e as suas famílias. Em 2003, a segunda comissão, criada para investigar os casos de pessoas que foram presos políticos e que tinham sido torturadas, reconheceu a existência de 38.254 vítimas de tortura.  

4. Justiça

A luta pela justicça no processo de transição tem sido o aspecto mais difícil e polémico. Desde o fim do regime militar e até 1998, a investigação judicial teve, em geral, escassos progressos e era normal os tribunais aplicarem um decreto de amnistia passado pela ditadura militar. Em 1998, com a detenção de Pinochet em Londres, ordenada pelo juiz espanhol Baltazar Garzón, foram criadas novas condições, que produziram, lentamente mas gradualmente, alguns progressos nas investigações judiciais, que permitiram identificar aqueles directamente responsáveis por violações dos direitos humanos. Hoje em dia, existem 1.426 casos abertos, dos quais 1.402 lidam com desaparecimentos ou assassinatos. No entanto, apenas 66 agentes servem penas de prisão, entre eles algumas figuras-chave da DINA (Departamento de Inteligência Nacional) e da CNI (Agência de Inteligência Nacional); 173 agentes foram condenados mas não estão na prisão, por várias razões, e existem ainda 528 agentes cuja acusação foi concluída, mas que ainda não tiveram uma sentença definitiva. 

5. Construindo memória

Neste contexto, o governo de Michelle Bachelet criou em 2010 o Museo de la Memoria y los Derechos Humanos, como um projecto de reparação moral ou simbólica para as vítimas da ditadura e como um projecto educativo, de forma que as novas gerações possam entender o valor do respeito pelos direitos humanos.

Museo de la Memoria y los Derechos Humanos

O MMDH, onde a sociedade chilena cumpre simbolicamente o seu dever de memória, olha directamente para o seu passado e dá resposta ao direito de memória para as vítimas da ditadura. As suas origens podem ser encontradas nas recomendações do relatório de verdade de 1991 e na afirmação em 2004 da UNESCO que os arquivos de varias organizações de direitos humanos do Chile fazem parte da memória do mundo. Além disto, existe uma exigência por parte das organizações de familiares e vítimas de abusos dos direitos humanos. O museu dispõe da maior colecção de documentos, fotografias, testemunhos e filmes sobre a ditadura no país e expõe-los ao público, procurando criar empatia pelas vítimas e fazer reviver os valores e lições das experiências de abusos dos direitos humanos. Os grupos de vítimas estão activamente envolvidos na vida do museu e sentem-se incluídos.

A missão do MMDH é “dar a conhecer as violações sistemáticas dos direitos humanos em nome do estado chileno entre 1973 e 1990, de forma a – reflectindo eticamente sobre a memória, a solidariedade e a importância dos direitos humanos – a vontade da nação seja reforçada, para que não se repitam nunca mais repetidas acções que afectam a dignidade humana”.

Museo de la Memoria e los Derechos Humanos (Foto: MMDH)
Qual o lugar deste museu na sociedade chilena hoje?

Pierre Nora disse que os Lugares de Memória são construções que procuram “fazer parar o tempo, bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado das coisas, imortalizar a morte, materializar o que é imaterial de forma a cativar o maior número de sentidos no menor número de sinais”. Neste sentido, o MMDH tem como missão recuperar e preservar os vestígios desse passado traumático, dar testemunhos do sofrimento, de forma que o conhecimento do público sobre o que se passou possa quebrar o círculo de silêncio e impunidade e dar ênfase à necessidade de prevenir que algo assim volte a acontecer. Noutras palavras, o Museo de la Memoria, como expressão de uma política pública de reparações, é o principal gesto do Estado de reparação moral para as vítimas da ditadura: é aqui que a história ou a biografia de cada uma das vitimas é encontrada ou construída e onde a sua dignidade, que lhes foi arrancada, lhes é devolvida. O MMDH tornou-se numa referência para o país e a região, estando a ser construídos projectos similares em países como Peru, Brasil, Argentina e Colômbia.

Dito isto, devo também dizer que este é um projecto localizado na terra das controvérsias. Cada museu que lida com histórias traumáticas sabe da tensão entre história e memória, entre a explicação dos acontecimentos organizados cronologicamente e a experiência subjectiva das memórias apoiadas por testemunhos. Os museus de memória enfrentam, precisamente, o desafio de conjugar esta tensão, de forma que os testemunhos possam ser exemplares e representativos, transcendendo a mera experiência pessoal ou aquela dos grupos directamente afectados. Apenas resolvendo esta tensão de uma forma positiva pode a mensagem ser universal e ligar as exigências para verdade e justiça com um imaginário democrático mais amplo.

De acordo com alguns, a museografia do MMDH coincide com o que Pierre Nora chama de transformação da memória em história, ou seja, “depende completamente do que é mais preciso nos rastros deixados, do que é mais natural nos destroços, do que é mais concreto nos registos, o mais visível na imagem”. Certamente, os visitantes enfrentam os vestígios do passado, as caras dos desaparecidos, o bombardeamento de La Moneda, os testemunhos dos que foram torturados, a angústia das famílias. São forçados a viver uma experiência de apreensão, de compaixão, empatia e emoção. Mas encontram também os documentos, os ficheiros legais, os decretos que levam a uma experiência de confronto, de análise, de comparação, de visualização do contexto em que a violência teve lugar. Neste sentido, o museu propõem uma narrativa capaz de transmitir sentido, começando por um sentimento de empatia para com as vítimas.

A criação do MMDH gerou uma grande controvérsia no país desde o primeiro dia. Estes são precisamente os tópicos desta conferência. Como lidamos com questões sensíveis e controversas numa instituição que deve apresentar uma história que é ainda viva na sociedade chilena, uma vez que muitos dos seus actores ocupam ainda lugares públicos e as famílias chilenas vêem ou sofrem ainda as consequências desse período?

As atitudes críticas perante o Museu de la Memoria ou negam a existência de violações dos direitos humanos ou as justificam, invocando a necessidade de travar uma guerra contra uma ameaça representada por partidos marxistas. Há uma crítica mais ligeira da parte de outros grupos, acusando o museu de distorcer a história mostrando apenas um aspecto do período da ditadura (as violações dos direitos humanos) e fragmentando o tempo, não permitindo, assim, às pessoas visualizarem as causas da ditadura militar. Resumindo, os críticos apontam para a parcialidade do museu quando inclui uma visão desse período, aquela das vítimas. Isto significaria que a narrativa não é tão objectiva quanto devia e, sobretudo, que não nos permite saber porque é que teve lugar a crise política de 1973, culminando no golpe de estado e nas violações dos direitos humanos.

Instalação de Alfredo Jaar no Museo de la Memoria y los Derechos Humanos (Foto: Cristóbal Palma para o jornal El País) 
Para nós, a missão do museu é sensibilizar o público em relação à gravidade das violações dos direitos humanos no período Pinochet, e esta sensibilização não tem um propósito político ou eleitoral, mas, sim, um propósito moral, ou seja, transformar o respeito pelos direitos humanos num imperativo categórico na nossa coexistência, independentemente do contexto em que tem lugar.

O Museu não pode fingir estabelecer uma leitura inequívoca do passado. Pelo contrário, a sua perspectiva é abrir múltiplas possibilidades de leitura. É importante dizer que o MMDH é entendido como um museu vivo, aberto à reinterpretação da experiência e, por isso, fornece um espaço importante para a arte contemporânea. Prova disto é a presença de obras de arte na exposição permanente, tal como o poema de Jorge Tacla escrito por Victor Jara na prisão e o trabalho de Alfredo Jaar “A geometria da consciência”, que sugere que o diálogo é um tributo às vítimas.


Leiam o discurso na íntegra aqui.

Ricardo Brodsky Baudet é Director do Museo de la Memoria y los Derechos Humanos em Chile desde Maio 2011. Desenvolveu um projecto no Museo de la Memoria como um espaço de reflexão e de educação pública, dando mais importância à colecção e à exposição permanente e uma posição proeminente às artes visuais e vários eventos culturais relacionados com a memória e os direitos humanos. Foi Secretário-Geral da Federação de Estudantes no tempo da ditadura. Secretário Executivo da Fundação “Chile 21” em 1992, da Fundação “Proyectamérica” em 2006 e fundador e director da Fundação para as Artes Visuais de Santiago; organizador da primeira Trienal do Chile (2009). Foi consultor para a política cultural do Conselho Nacional para a Cultura e as Artes, Chile (2004-2007). Ocupou vários lugares no governo entre 1993 e 2010. Chefe da Divisão de coordenação interdepartamental da Secretaria-Geral do Ministério da Presidência (2007-2010), Embaixador do Chile na Bélgica e no Luxemburgo (2000-2004).


No comments: