Tuesday 23 July 2019

Memória que resiste

Uma cena do documentário O Silêncio dos Outros

Há algumas semanas, li num artigo que o impasse nas negociações do Brexit é considerado humilhante para a Grã-Bretanha, tanto por quem votou a favor como por quem votou contra. De acordo com uma pesquisa, 90% dos entrevistados concordaram que a forma como o Reino Unido está a lidar com o Brexit é uma humilhação nacional. O autor do artigo, o Professor de Psicologia Política Barry Richards, referiu-se a uma investigação cada vez mais influente na teoria da psicologia que enfatiza que “a necessidade de dignidade é básica para a nossa constituição psicológica. Sentir que nos foi retirada é muito ameaçador e desestabilizador”. Richards faz a distinção entre o sentimento de humilhação e o sentimento de traição e o seu conselho é evitar endossar e ampliar o sentimento de humilhação. Sugere também que a palavra "humilhação" e outras (como "traidor" ou "traição") não sejam usadas no debate.

Concordo que a necessidade de dignidade não deve ser negligenciada (tal como o tem sido em muitos países, em diferentes situações). Também é relevante lembrar que “as mentes daqueles que não se sentem seguros ou dignos no mundo contemporâneo” podem virar-se para um líder “homem forte” que promete reconquistar o orgulho perdido. Mas podemos lidar com a perda de dignidade não dizendo a palavra? Isso fará com que o sentimento desapareça? A palavra “irá atrapalhar qualquer processo posterior de reconciliação”, como sugerido por Richards?

Acredito que dizer a palavra (dizer e não "usar") é um passo importante no processo. É o reconhecimento de um sentimento ou de situação legítimos. É preciso fazer algo, no entanto, começando por ... falar sobre isso. Alguma vez a verdadeira reconciliação foi resultado do silenciamento? O perdão foi resultado do esquecimento?

O documentário O Silêncio dos Outros trouxe-me essas mesmas questões. Não tinha cohecimento do Pacto de Esquecimento espanhol, do "pacto de silêncio" em nome da reconciliação e em nome do futuro da Espanha. Acreditaram, realmente, que as pessoas permaneceriam em silêncio para sempre? Como podem ter pensado que a Espanha seria forte e o seu futuro brilhante por não lidar com o passado, tentando impor um silêncio sobre ele, chamando a busca de justiça das vítimas do franquismo de “vingança”, mantendo os jovens ignorantes (uma das cenas mais chocantes no documentário, juntamente com a votação na Assembleia Municipal de Madrid para a renomeação de ruas que tinham os nomes de conhecidos torturadores)? Nerea, personagem do livro Patria de Fernando Aramburu (sobre o grupo terrorista basco ETA e as suas vítimas), também diz: “A nossa memória não se extingue com canhões de água. E vais ver que eles vão atirar nas caras das vítimas que nos recusamos a olhar para o futuro. Eles dirão que estamos à procura de vingança." O perdão, porém - e paz e a reconciliação - não são o resultado do silêncio no livro de Aramburu.

O 30º aniversário do massacre de Tiananmen em 4 de Junho levantou, igualmente, a questão do esquecimento forçado. As jornalistas Luisa Lim e Ilaria Maria Sala escreveram sobre a forma como testemunharam o Grande Esquecimento de Pequim, em outras palavras, como o Estado “apagou sistematicamente as evidências e a memória dessa repressão violenta usando o seu aparato altamente tecnológico de censura e controlo”. Uma das pessoas entrevistadas por Luisa Lim para o seu livro The People's Republic of Amnesia; Tiananmen Revisited, a co-fundadora das Mães de Tiananmen Zhang Xianling, disse-lhe que uma vez conseguiu realizar um pequeno acto de recordação no local onde o seu filho de 19 anos foi morto com uma bala na cabeça. “No ano seguinte, uma câmera de circuito fechado foi colocada naquele local para impedir qualquer acto público de memória.” A abertura em Abril de um museu em Hong Kong para a comemoração do massacre foi recebida com alguns vandalismos e com protestos moderados. Um participante disse que os moradores locais estavam preocupados que o museu iria perturbar a comunidade. “Este edifício tornará as nossas vidas muito desconfortáveis. Nós somos apenas pessoas normais que querem viver uma vida pacífica.” A paz vem com o silêncio e o esquecimento? Lee Cheuk-yan, secretário da Aliança de Hong Kong para o Apoio aos Movimentos Patrióticos Democráticos da China (que criou o museu graças a donativos públicos), disse que o museu serve um interesse público. “A luta de 4 de Junho é a lembrança contra o esquecimento. Acreditamos que quanto mais as pessoas tentam suprimir o museu, mais isso mostra como é importante para Hong Kong e para o mundo.” Os protestos em curso e as enormes marchas pela democracia em Hong Kong mostram que as pessoas estão determinadas a não esquecer.

Estamos todos muito familiarizados com declarações como “nunca mais” ou “nunca esquecer” ou “aqueles que não conhecem a história estão condenados a repeti-la”. Museus, monumentos, arquivos dizem estar ao serviço da memória. E, no entanto, essas afirmações são diariamente postas à prova nos dias de hoje, e frequentemente nos confrontamos com tentativas oficiais de impor um silêncio, de apagar certas memórias, em nome da paz e da reconciliação. Reconciliação baseada na amnésia, paz baseada no silêncio estão condenadas a ser de curta duração. A coesão de uma comunidade deve ser o resultado do conhecimento; o seu orgulho não pode basear-se, como frequentemente acontece, na arrogância mal-informada. Não desejemos a leveza da ignorância... Alguma vez houve um futuro melhor nisso? Alguma vez haverá?

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