A notícia que o director do Toledo Museum of Art, Alan
Levine, quis "re-enfatizar" nesta altura que o museu não tem uma posição
política soou-me estranha e anacrónica. Não apenas porque me juntei há muito
tempo ao grupo de profissionais da cultura que defendem que a cultura não é
neutra ou apolítica, mas, principalmente, porque no contexto actual dos EUA, e
de outros lugares, as coisas efectivamente mudaram.
Ainda assim, para muitos
colegas que dirigem organizações culturais (e museus), a razão pela qual fazem
o que fazem não é clara. E com muita frequência, não conseguem ver o contexto
maior em que operam e como o trabalho de suas organizações se relaciona com
ele. É quase penoso quando alguém precisa de lembrar ao director do Toledo Museum of Art que, há três anos, o museu apresentou uma
exposição do conhecido artista afro-americano Kehinde Wiley, "explorando
ideias de raça, género e políticas de representação". A nossa programação só
pode estar relacionada com a nossa missão e valores, deriva deles, confirma e
reforça-os.
No meu último post, Não consigo respirar (seguido por uma extensa lista de leituras que tento
manter actualizada), escrevi sobre o que considero ser um grande
desenvolvimento entre o silêncio dos museus americanos em 2014 e as múltiplas
declarações sobre racismo e violência policial em 2020. Acredito que isso é
algo que merece reconhecimento, apesar das críticas legítimas a certas
declarações vazias ou aparentemente inconsequentes. Mike Murawski, um dos
co-produtores do movimento #MuseumsAreNotNeutral, escreveu um post intitulado A moment for accountability, transformation and real questions (Um momento para
responsabilidade, transformação e perguntas reais), lembrando-nos que, além das declarações, o que
precisamos de ver é "se eles [museus] se comprometem ou não a fazer as
mudanças necessárias para desmantelar o racismo, agir e transformar as suas
instituições". A mudança começa por dentro e, no seu post, Mike partilha
as perguntas reais de Madison Rose que deveríamos colocar a nós próprios (nesse
sentido, a declaração pública do Metropolitan Museum e a carta dirigida à equipa mostra como estas coisas devem estar interligadas).
Mas este é um processo e a
maioria de nós está no começo. Do silêncio passamos para as hashtags e
declarações discretas ou anódinas. É um passo. Mas é um passo pelo qual devemos
ser responsabilizados. É por isso que devemos todos manter o nosso espírito
crítico e as nossas expectativas em alerta. Passar das hashtags para a tomada
de posição é o que devemos trabalhar a seguir. E é algo que temos de fazer com sentido
de responsabilidade, com profundo conhecimento, com sensibilidade e respeito.
A imagem foi editada para apresentar à direita os nomes dos três museus. |
Há uma semana, a acção colectiva da Blackout Tuesday chegou também aos museus portugueses. Foram muito poucos
(eu soube de três) e a sua tomada de posição estava limitada a um quadrado
preto e à hashtag #blackouttuesday. Considerando o entusiasmo com que alguns
colegas receberam este desenvolvimento, esse pequeno passo, senti que tínhamos de
ser mais cautelosos e manter as nossas expectativas altas. É definitivamente um
passo, mas esses museus não estavam, realmente, a "dizer algo", pois
não? Como escreveu Joan Baldwin no seu último post, “alguns parecem acreditar
que as hashtags funcionam como declarações de valores. Não o
são.” (leiam The chickens come home to roost: museum values in times of crises). Assim, em relação a esses três museus e outros,
precisamos de nos manter antentos, de ver o que eles farão da próxima vez que
houver um caso de violência policial contra um cidadão negro em Portugal (não
apenas nos EUA) e se este momento terá também resultado numa introspecção.
Outro caso para o qual um
colega chamou a minha atenção foi o do Palácio Nacional da Ajuda. No mesmo dia
de Blackout Tuesday, o Palácio publicou fotos de uma
pintura intitulada “Retrato de um homem negro”, informando que este é “o único
Géricault [?]” na sua colecção, que “Adquirido e incorporado nas Colecções Reais
no século XIX, este é um retrato intimista e, à luz do seu tempo, de grande
carácter humanista ”e que “Encontra-se, sem coincidência, pendurado lado a lado
com o retrato do Imperador Pedro II do Brasil, membro cadete da Casa Real de
Portugal e, em 1888, libertador dos escravos do Brasil. ” Não fosse pelas
hashtags #blacklivesmatter e (a inevitável) #alllivesmatter, eu não teria considerado
esse post uma "declaração".
A discussão que se seguiu
foi muito interessante e informativa (ler aqui) e mostrou quão bem preparados, sensíveis e respeitosos
precisamos de ser ao dar esses primeiros passos. A referência ao imperador
Pedro II do Brasil como "libertador dos escravos no Brasil" foi
controversa. Seguidores informados ajudaram-nos a navegar pela História e as suas
interpretações. Mas o que mais me impressionou foi o quão pouco preparado estava
o Palácio (ou a pessoa que gere a sua página no Facebook) para participar nesta
discussão. Não se trata de assuntos que possamos abordar de forma oportunista…
Houve também as reacções
de outros seguidores, que quiseram lembrar que “Esta é uma página de Cultura e
História e não de Política” ou que se queixaram sobre o quão é “cansativo esse
tempo moderno, de pessoas vazias, que procuram problemas somente para
polemizar, dizer que tem algo interessante. Arf. Não se pode nem ler ou ver um
post sem ter alguma criatura polemizando.” Estes lembram-nos que as
organizações culturais têm a responsabilidade de lidar com a sua própria
fragilidade branca (a maneira como “até uma quantidade mínima de stresse racial
se torna intolerável, desencadeando uma série de reacções defensivas”, de
acordo com a definição de Robin Diangelo) e a dos seus seguidores. Isto também exige decisões
informadas, sensibilidade e respeito.
Tomar uma posição não é
fácil, não deveria ser. Precisamos de investir nisso: investir em estudar, em discutir,
principalmente em ouvir e fazer alguma introspecção. A mudança começa por
dentro.
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