Saturday 11 July 2020

A "ameaça" dos museólogos




No seu livro “The constructivist museum”, George Hein cita Edward Forbes (naturalista britânico) que, numa palestra em 1853, disse que os curadores/conservadores podem ser prodígios de conhecimento e, ainda assim, impróprios para o seu lugar, se não sabem nada sobre pedagogia, se não estão preparados para ensinar pessoas que não sabem nada.

Anos mais tarde, em 1909, uma das minhas maiores inspirações, o director do Newark Museum, John Cotton Dana, disse que “um bom museu atrai, entertém, desperta curiosidade, leva ao questionamento e, assim, promove o conhecimento. (...) O museu só pode ajudar as pessoas se elas o usarem; elas o usarão apenas se souberem da sua existência e somente se for dada atenção à interpretação das suas colecções de forma que elas, as pessoas, possam entender”. E em 1917 escreveu ainda: “Hoje, os museus de arte são construídos para guardar objectos de arte e os objectos de arte são comprados para serem guardados em museus. Como os objectos parecem fazer o seu trabalho se forem mantidos em segurança, e os museus parecem servir o seu propósito se mantiverem os objectos em segurança, tudo isso é tão útil no esplêndido isolamento de um parque distante quanto no centro da vida da comunidade que o possui. Amanhã, os objectos de arte serão comprados para dar prazer, fazer com que as maneiras pareçam mais importantes, promover capacidades, exaltar o trabalho manual e reforçar o prazer de viver, juntando-lhe novos interesses.” (ambas as citações vêm do livro “Reinventing the Museum: Historical and Contemporary Perspectives on the Paradigm Shift” de Gail Anderson).

As pessoas, todas as pessoas, eram centrais no pensamento de ambos estes homens, no que diz respeito ao papel dos museus. Cotton Dana, no entanto, viveu e trabalhou num momento crítico para a história dos museus e para a sua relação com a sociedade. No seu livro “Making Museums Matter”, Stephen Weil dedica um capítulo a uma das mudanças de paradigma mais decisivas: no início do século 20, dois dos principais museus dos EUA, o Museum of Fine Arts em Boston e o Metropolitan Museum of Art em Nova Iorque, determinaram que a ênfase no seu trabalho seria dada aos aspectos estéticos das obras de arte que escolhiam adquirir ou expor e não no seu potencial de instruir. Weil cita o sociólogo Paul DiMaggio, que disse que atrás desse processo estava "uma ideologia estética que distinguia nitidamente entre a nobreza da arte e a vulgaridade do mero entretenimento", resultando em distinções sociais que também diferenciavam o público da alta cultura e da cultura popular.

Este movimento não ficou confinado nos EUA. Aliás, considera-se que foi uma má réplica de modelos desadequados de museus de arte europeus. No seu ensaio de 1991, “Museums and Gallery Education”, Eilean Hooper-Greenhill escreve sobre uma nova geração de curadores, a partir da década de 1920, menos interessada no uso público dos museus e mais interessada na acumulação de colecções. Pelo caminho, as pessoas foram deixadas para trás, os museus realmente não existiam para elas, mas para o prazer dos especialistas que cuidavam das suas colecções e de algumas elites instruídas. Como afirma John Berger no seu ensaio "Lanscapes", "Qualquer pessoa que não seja um especialista e que entre num museu comum hoje em dia sente-se como um pobre mendigo cultural que recebe caridade". Essa foi uma mentalidade adoptada por vários profissionais de museus (e, entre eles, muitos directores de museus) que ainda se mantém, afectando de forma decisiva a relação que os museus têm com a sociedade. Se mais de cinquenta anos depois do "L' amour de l' art" de Pierre Bourdieu é um facto que o perfil dos visitantes dos museus não mudou significativamente, é para isto que deveremos olhar melhor.

Novas mentalidades foram formadas nos últimos trinta anos, que trazem as pessoas de volta à atenção dos museus de todos os géneros (nem todos os museus são museus de arte). Os museus inicialmente "para" e, mais recentemente, "com" as pessoas são o sonho de um número significativo de profissionais, que não vêem as funções de coleccionar / preservar / investigar como antagónicas às de expor e comunicar. Uma outra grande inspiração para mim, Elaine Heumann Gurian, no seu livro “Civilizing the Museum”, resumiu esta vontade de mudar usando a expressão “o museu ‘e' ”: o museu que não determina que algumas das suas funções sejam mais importantes que outras ou que têm algum tipo de prioridade, mas procura cumpri-las todas, para melhor servir a sociedade. O museu não é 'ou' colecções 'ou' pessoas; é colecções 'e' pessoas. Não há necessidade de os museus escolherem; não devem escolher. É precisamente isto que os torna 'museus'.

Esta semana, ouvi o nome Rita Rato pela primeira vez. Ela é a pessoa escolhida para dirigir o Museu do Aljube em Lisboa, que conta a história de resistência ao regime ditatorial de António de Oliveira Salazar. Aljube era o local onde eram mantidos os presos políticos. Fiquei realmente surpreendida ao descobrir que a nova directora é formada em Ciência Política e Relações Internacionais e não tem estudos de museologia ou alguma experiência profissional em museus (este último era um factor preferencial no anúncio de recrutamento). Pessoas com qualificações, aparentemente, mais relevantes nem sequer foram entrevistadas. Assim, espero que as preocupações expressas por vários especialistas (historiadores, sociólogos, diferentes profissionais de museus e museólogos) sejam respondidas em breve, com toda a transparência.

O debate acalorado sobre esta nomeação levantou mais uma vez uma questão sobre a qual tenho reflectido nos últimos anos:

Em 2020, não é expectável que qualquer anúncio para o cargo de direcção num museu indique os estudos de museologia como um requisito obrigatório para candidatos interessados ​​em dirigir um museu?

O debate público desta semana em Portugal revela (mais uma vez) uma série de mal-entendidos sobre a preparação técnica e o papel dos museólogos. Aqui estão algumas das coisas que li:

  • Catarina Vaz Pinto, Vereadora da Cultura na Câmara Municipal de Lisboa, afirmou que "o perfil de direção para o museu não tem de ser necessariamento um perfil académico ou museológico". Defendeu a escolha de Rita Rato não apenas pelo projecto que apresentou (embora o anúncio de recrutamento não mencionasse que os candidatos deveriam apresentar um projecto), mas também pela “expectativa da sua demonstrada experiência de relacionamento interpessoal e político vir a assegurar uma transição e renovação geracionais”. - Pergunta: A vereadora da cultura sabe o que é um museólogo? E uma experiência em “relações interpessoais e políticas” é um requisito técnico para a direcção de um museu que compense a falta de outros requisitos essenciais e de experiência profissional?

  • O historiador e político Rui Tavares escreveu que “o problema com Rita Rato ter vencido o processo de recrutamento para dirigir o Museu do Aljube não é ela não ser historiadora nem museóloga. O que não falta por aí são excelentes diretores de museu, programadores culturais e gestores públicos que não são uma coisa nem a outra (considera que O único problema de Rita Rato é uma entrevista de 2009 em que ela defendeu o estalinismo e disse não saber nada sobre os gulags; Rato foi deputada do partido comunista...). - Pergunta: quem é um “excelente director de museu” para Rui Tavares? Como define "excelência" nesta área?

Alguns comentários adicionais em relação à minha posição sobre este assunto mostraram ainda que não há uma noção clara sobre o que um museólogo estuda e faz:
  • “Os historiadores quase sempre revelaram pouco respeito pelos museólogos. 'são técnicos de conserva', um dia ouvi dizer a um colega mais velho. os museólogos, entretanto, passaram ao contra-ataque e conseguiram a sua quota de mercado no negócio do passado. (…) O museólogo pretende ter o seu cantinho protegido.” - Resposta curta: ser historiador e museólogo não é mutuamente exclusivo, não é um relacionamento de confronto. A museologia é uma especialização para historiadores, arqueólogos, antropólogos, historiadores de arte, engenheiros, astrofísicos, biólogos, bem como educadores e mediadores de museus, profissionais de marketing e comunicação e diversos outros profissionais e investigadores que desejam trabalhar na gestão de museus e talvez também tornar-se directores de museus.

  • “Uma pessoa que tenha uma formação genérica em museologia está automaticamente habilitada para dirigir um museu, seja ele do design, dos coches ou da pesca do bacalhau?” - Resposta curta: Sim, juntamente com a experiência em trabalhar em ou para museus (a propósito, não existe uma "formação genérica em museologia").

Hoje, temos vários profissionais a trabalhar em museus e todos eles são profissionais de museus (foi publicado pelo ICOM - Conselho Internacional dos Museus em 2008 um referencial das profissões museais, que necessitaria hoje de uma actualização). Mas não é museólogo quem trabalha num museu. Um museólogo é um especialista oriundo de diversas formações profissionais, que se forma em gestão de museus, gestão de colecções, preservação de coleções, comunicação, educação. Há quase dois séculos que está a ser construído um “corpus” significativo de conhecimento, de teoria e prática, que forma a base dessa especialização, acompanhado de conferências, seminários, debates que mantêm uma contínua e intensa reflexão sobre o papel e o desenvolvimento dos museus. Esse é o tipo de preparação que gostaria de ver em quem deseja dirigir um museu em 2020. Depois de mais de cem anos de um paradigma diferente, chegou a hora de tentar algo diferente, algo mais substancial - algo de que Edward Forbes, John Cotton Dana e muitos outros sonharam há muito tempo.

Esta expectativa e exigência parece constituir uma ameaça para algumas das pessoas que monopolizaram a direcção dos museus todos estes anos: especialistas em colecções (em alguns casos, investigadores). Tendo-me formado inicialmente em Arqueologia, posso garantir que não foi na faculdade nem nas escavações nem enquanto trabalhava num museu de arqueologia que desenvolvi o meu pensamento sobre os museus e o seu papel na sociedade. Assim, se eu tivesse de escolher entre um excelente arqueólogo e um excelente museólogo (com formação em arqueologia ou não) para dirigir um museu de arqueologia, definitivamente escolheria o último. Estamos a falar de um tipo diferente de conhecimento e prática.

Esta não é uma relação de confronto, não é um privilégio que desejo dar aos museólogos, como me disse um colega. Diversos especialistas e investigadores podem candidatar-se ao cargo de director de museu, mas em 2020 essas pessoas devem estar tecnicamente preparadas para isso. E muitas pessoas na nossa área o são. Este tipo de preparação técnica não pode continuar a ser uma “opção”, um “factor preferencial”. É básico, é essencial, é necessário. Bons museólogos são aqueles que nos podem dar “o museu ‘e’ ".


Mais textos da minha autoria sobre este assunto:


Para que servem os museus?, Público, 21.9.2019

Os museus devem promover a igualdade ou a sua missão (ainda) é outra?, Público, 1.9.2019 (enrevista à Lucinda Canelas)



Sobre a nomeação de Rita Rato:

João Pedro George, Aqui há Rato

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