Sunday 6 September 2015

A bofetada italiana

Eike Schmidt, novo director do Uffizzi (imagem retirada de The Art Newspaper, Foto: Zuma Press/Alamy)

"Uma bofetada na cara dos arqueólogos e historiadores de arte italianos." De acordo com um artigo de Margarita Pournara no jornal grego I Kathimerini, esta foi a declaração de Vittorio Sgarbi, ex-Ministro da Cultura italiano, em relação à nomeação de sete profissionais estrangeiros como directores de museus italianos.

A questão foi amplamente discutida em diferentes meios a partir do momento que foi anunciada a nomeação, a 18 de Agosto.
De acordo com o mesmo jornal grego, alguns associaram-na ao encerramento em Julho do sítio arqueológico de Pompeia pelos sindicatos, dizendo que o incidente, que muito prejudicou a imagem do país entre turistas de várias nacionalidades, foi a gota que entornou o cálice e que deu ao Ministro da Cultura, Dario Franceschini, a determinação de ir em frente e anunciar as nomeações (francamente, não vejo a ligação entre os dois, uma vez que o concurso internacional foi anunciado em Janeiro de 2015). Federico Guasti, vice-presidente de Europa Nostra, comentou que talvez os directores estrangeiros não sejam tão influenciados ou limitados nas suas decisões e acções pelos sindicatos (novamente, não vejo a ligação). Louis Godard, assessor do Presidente da República Italiana para a protecção do património cultural, questionou se os estrangeiros saberão lidar com os profissionais locais, se entenderão a mentalidade.

Em Janeiro, quando o concurso foi anunciado, The New York Times mencionou que um "Forte background em história de arte, experiência em gestão e um interesse em melhorar a experiência do visitante [eram] requisitos obrigatórios" e que as mudanças eram destinadas a "dar aos directores mais influência sobre os orçamentos e facilitar o caminho para eles poderem angariar fundos privados para ajudar a compensar os drásticos cortes no financiamento estatal ". O jornal também mencionou que os directores de museus na Itália são "tipicamente especialistas em história da arte, arqueologia ou arquitectura, mas a maioria tem pouca formação profissional em gestão das artes". Adicionalmente, The Art Newspaper dizia que os museus estatais da Itália são “famosos pela força das suas colecções, mas atolados pela burocracia antiquada e financiamento insuficiente. Assim, o ministério decidiu procurar gestores-directores com experiência nos sistemas mais eficientes e sintonizados, do ponto de vista financeiro, dos museus no Reino Unido e nos Estados Unidos." Além disso, de acordo com o Guardian, "Os novos patrões também vão precisar de trazer um toque criativo ao financiamento, abrindo caminho para modelos de financiamento alternativos, tais como doações filantrópicas em face a orçamentos governamentais apertados. (...) Os directores terão de melhorar uma ampla gama de serviços dos museus, como livrarias e cafés, bem como tomar conta de algumas das obras de arte mais valiosas do mundo ".

Os 20 postos atraíram 1200 candidatos italianos e 80 estrangeiros. No final, foram entregues a 13 italianos (4 dos quais regressam agora à Itália do estrangeiro) e 7 estrangeiros. A maioria tem experiência profissional a nível internacional e metade são mulheres. No entanto, estes não são os factos que me despertam maior interesse.

Depois de toda a discussão sobre as tarefas de gestão, um maior controle sobre os orçamentos, modelos de financiamento alternativos, a necessidade de melhorar os serviços e de desenvolver museus mais acolhedores para os visitantes - questões que aparecem em muitos concursos para directores de museus ou de outras organizações culturais - o que principalmente chamou a minha atenção foi a identificação profissional dos novos directores (que é, provavelmente, a maneira como eles se identificam a si próprios): 14 historiadores de arte, 4 arqueólogos, 1 gestor cultural e 1 especialista em museus. E mais uma vez... não consigo ver a ligação.

Quase meio século após a criação do Departamento de Museologia da Universidade de Leicester (1966), não posso deixar de me perguntar porque é que este sector insiste em ignorar que a Gestão Cultural (e, neste caso específico, a Museologia) é uma especialização necessária para aqueles que assumem a direcção de organizações culturais, especialmente as mais pequenas, aquelas onde não existem extensas equipas de peritos nas várias áreas. A Gestão Cultural tem-se desenvolvido num campo científico específico, diferente da história da arte, da arqueologia, da arquitectura, da história militar, da engenharia, da física, da astronomia, etc., etc., etc. - considerando os diferentes tipos de museus. E é um campo científico que tem crescido dentro do sector, com um profundo conhecimento e sensibilidade em relação às suas especificidades.

Um gestor cultural não é alguém que trabalhava antes num supermercado ou que vendia carros há alguns dias ... Este é provavelmente um dos maiores mal-entendidos, em primeiro lugar entre os próprios profissionais da cultura. Assim, sempre que surge a questão da gestão (incluindo esta vez, no caso dos museus italianos), é expressa grande preocupação que os marketeers irão tirar o lugar aos curadores e que a pesquisa e a conservação serão negligenciadas a favor de exposições e espectáculos blockbuster para agradar à multidão; entretenimento vs profundas experiências intelectuais; populismo vs elitismo; o fácil e o difícil; os muitos e os poucos...

Não é hora de ficarmos todos mais informados e actualizados? A decisão do Ministério da Cultura italiano não foi uma bofetada na cara dos arqueólogos e historiadores de arte italianos (porquê havia de ser, eles não são bons ou mesmo excelentes arqueólogos e historiadores de arte?). Foi uma bofetada, no entanto; aquela que estamos habituados a testemunhar no nosso sector. Tarefas de gestão (planeamento estratégico, comunicação, marketing, fundraising - tudo coisas que eu, pelo menos, não aprendi no meu curso de arqueologia) são normalmente decididas por entidades e entregues a profissionais que não têm preparação técnica para tais assuntos. Assim, muitas vezes, o que vemos é a experimentação sobre o que já foi testado, a aprendizagem lenta e fora do contexto do que já é conhecido, erros que já foram cometidos. Basicamente, a começar sempre do zero. No caso específico dos museus, a preferência por especialistas na matéria / colecção a quem faltava especialização em museologia influenciou profundamente o desenvolvimento destas instituições e o seu relacionamento com as pessoas, tendo sido dada prioridade às funções orientadas para os objectos (coleccionar, preservar e pesquisar), deixando de lado aquelas orientadas para as pessoas (expor e interpretar), de modo que quase todos os esforços para tornar os museus mais acolhedores para os visitantes (fisicamente e intelectualmente) são geralmente associados ao populismo, o entretenimento, a infantilização. Não é uma questão de escolha, no entanto. Elaine Heumann Gurian disse-o claramente e sucintamente para todos nós: bons museus não são "ou ... ou ..." são "e". Precisam de ser dirigidos por profissionais que entendem a importância e as especificidades de todas as suas funções e a forma como estas se relacionam entre si, a fim de melhor servir os seus diversos - mais e especialmente menos conhecedores - públicos.

Assim, o sector cultural precisa e deve ser (bem) gerido, como qualquer outro sector. Não só porque gera e recebe dinheiro, público e privado. A Gestão Cultural não tem a ver apenas com dinheiros. Mesmo se vivêssemos num mundo onde não houvesse a questão do dinheiro, as organizações culturais ainda precisariam de uma boa gestão. Porque têm uma missão a cumprir, que orienta todas as decisões, que não muda sempre que há uma mudança de governo, que coloca a instituição ao serviço da sociedade, que promove e defende o acesso. A Gestão Cultural tem, antes de tudo, a ver com o cumprimento de uma missão, a missão institucional.

Alberto Garlandini, do ICOM Itália, foi também citado pelo jornal grego I Kathimerini. Mencionou que novos problemas não podem ser resolvidos com soluções antigas. Disse que há uma necessidade para mentes abertas, com um sentido de cosmopolitismo e uma capacidade de planear pensando internacionalmente. Tudo isso é mais do que necessário, é claro. Mas os gestores culturais profissionais, com conhecimentos e experiência sólidos e actualizados, são igualmente necessários quando é de gestão que se trata. Aqui vejo uma ligação que poderia ajudar o sector a evitar algumas auto-bofetadas.


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