Wednesday 18 May 2022

Vamos correr juntos? Os 40 anos do Teatro Art'Imagem

Foto: Nuno Ribeiro

Nos dias 10 a 12 de Maio participei nas Jornadas 40 Anos de Teatro: Como o teatro se desenvolveu nos últimos 40 anos em Portugal, celebrando o aniversário do Teatro Art’Imagem. No primeiro dia, assistimos ao espectáculo “Ai o Medo Que (Nós) Temos de Existir”, 117ª criação da companhia. Nos dias seguintes, tivemos a oportunidade de reflectir sobre quatro temas: 

Painel 1: Teatro e Intervenção
com Sara Barros Leitão, José Leitão, Rita Alves Miranda e José Soeiro

Painel 2: Teatro: Praxis e Academia
com Fernando Matos Oliveira (Universidade de Coimbra), António Capelo (ACE), Manuela Bronze (ESMAE), Francesca Rayner (Universidade do Minho) e Eugénia Vasques 

Painel 3: Descentralização Teatral
com Helena Santos, Jorge Baião (Centro Dramático de Évora), Rui Madeira (Companhia de Teatro de Braga), Magda Henriques (Comédias do Minho) e Américo Rodrigues (DGArtes)

Painel 4: As minorias e o Teatro
com Flávio Hamilton, Zia Soares, Marta Lança, Francesca Negro, Vanesa Sotelo e Maria João Vaz 

Coube-me a mim a responsabilidade de fazer o encerramento, partilhando as minhas reflexões no seguimento do que foi discutido ao longo dos dois dias. Partilho-as aqui:

Não sou especialista em História do Teatro, por isso, senti que aprendi tanto nestes dois dias. “Teatro jornal”, “teatro fórum” são coisas novas para mim e vou querer saber mais sobre elas.

Gostei da forma como a Sara Barros Leitão abriu estas jornadas. A forma como questionou a própria palavra “teatro”, a génese desta forma artística, o contexto em que certas peças do repertório clássico foram criadas e o contexto em que hoje são apreciadas. Lembrou-me também de quando, no meu primeiro ano na faculdade, na disciplina de introdução ao drama antigo, a nossa professora disse-nos que o teatro foi criado e pôde crescer em Atenas no século 5º antes de Cristo graças à democracia. Foi como que uma revelação para mim naquela altura, duas coisas que eu não teria sabido associar.

A Sara questionou a génese do teatro na Grécia. Penso que houve um teatro, um determinado teatro, que sim, nasceu na Grécia, em Atenas, no século 5º, graças à democracia. Uma democracia que colocou o ser humano no centro, como ser político e ser social. A Assembleia pertencia aos homens, mas no Teatro encontrávamos toda a gente, homens e mulheres. Como diz Edith Hall, o teatro era o complemento natural da Assembleia. Era um espaço aberto, comum, onde se expressava a vida em comum na “pólis”. E onde o Coro, elemento fundamental, representava o colectivo.

Antes disso tínhamos acontecimentos (δρώμενα) que seguiam o calendário, os ciclos da natureza, repetiam-se todos os anos, os mesmos, envolviam mimética e improvisação. No século 5º temos poetas cujos nomes conhecemos, temos encenação e uma reflexão crítica (além da expressão de sentimentos que trouxe a poesia lírica do século 6º). A comédia política de Aristófanes nasce na segunda metade do século 5º, umas décadas depois da tragédia, quando a democracia (e a liberdade de expressão) estava mais consolidada. E não sobrevive no século 4º... Na verdade, a democracia durou (persistiu) durante um século. ‘Aquele’ século que nos deu ‘aquele’ teatro.

Um tema político não é teatro político, disseram ontem. E um teatro político não acontece necessariamente em democracia. Pensei no Belarus Free Theatre, cujos membros fundadores e outros, depois de anos de perseguição, vivem e trabalham hoje fora do seu país. Uma das fundadoras, Natalia Kaliada, fez um discurso em 2015, no Reino Unido durante a State of the Arts Conference No Boundaries. Naquele discurso, Kaliada lembrava que a companhia foi fundada numa ditadura; não existia para as autoridades, mas existia para as pessoas e para o mundo. Mostrava-se surpreendida com a auto-censura praticada pelos artistas britânicos para garantirem financiamento. Alertava para o conformismo criativo que floresce em países democráticos. E questionava: “Porque é que há tanto medo de trabalhos provocadores?”.

Foto: Nuno Ribeiro

Também se falou de teatro urgente. Lembrei-me da peça “Building the wall”, que Robert Schenkkan (prémio Pulitzer) escreveu em três dias no tempo da campanha de Donald Trump (em vez de levar meses, como habitualmente). A peça foi depois programada com igual urgência por uma série de teatros americanos. Lembrei-me também de Rufus Norris, director artístico do National Theatre em Londres, que, depois do referendo do Brexit, disse: “Não acredito que 17,5 milhões de pessoas sejam racistas ou idiotas. (…) Penso que temos de ouvir.” Assim, em Julho-Agosto 2016, um mês depois do referendo, mandava vários dramaturgos para diferentes territórios do país para ouvirem. Nove meses depois, as primeiras peças, peças urgentes, eram apresentadas no palco do Teatro Nacional.

Há outras urgências nas quais o teatro se vê envolvido, aquelas que a guerra traz. Uma das primeiras demissões no sector cultural russo, no próprio dia em que a invasão da Ucrânia começou ou no dia seguinte, foi a da Elena Kovalskaya, directora artística do Meyerhold Theatre em Moscovo, que disse: “Não posso continuar a receber o meu salário de um assassino”. Sou a favor do boicote cultural no que diz respeito à não manutenção de relações profissionais com instituições culturais estatais russas. Por respeito por esta e por outras demissões. Por respeito pela cultura da consciência e da responsabilidade individual.

“O teatro tem a obrigação de ser interventivo?”, perguntou-se ontem. Penso que, em primeiro lugar, devemos poder responder à pergunta “Qual a missão do nosso teatro?”. Reclamo muitas vezes porque as instituições culturais não sabem distinguir a sua missão (a razão porque existem, a razão porque fazem o que fazem) do que fazem. Num encontro organizado pelo Teatro Nacional de S. João em Outubro passado, a maioria dos directores artísticos convidados respondeu à pergunta informando-nos sobre o que os seus teatros fazem (que é mais ou menos o mesmo…). Temos de conhecer o nosso propósito, quem somos, quais os nossos valores. Depois poderemos responder à pergunta “Temos obrigação de ser interventivos?” com consciência, com coerência e sem recorrermos a acções oportunistas.


Foto: Nuno Ribeiro

Abordámos também os cursos de teatro. “Como lidar com uma aluna cega? Não sei… O que é que vai acontecer se eu lhes disser ´Corram!’? Ficarão os restantes alunos condicionados, a pensar na sua colega?”. Desconhecemos tantas coisas e isto resulta em medo e desconforto. E se antes de dizer “Corram!” se fizesse o reconhecimento da sala? E o que há de mal se outros alunos estiverem conscientes ou preocupados com a presença e participação da sua colega cega? Não é isso que deveríamos fazer lá fora também, na rua, na sociedade? Estarmos conscientes da presença dos outros? Trabalharmos juntos a presença de cada um no espaço comum? 

Hoje, levantou-se a questão de “quem manda”, reclamou-se, mais uma vez, pelo papel dos programadores. Mas sejamos claros: Quem programa de acordo com o seu gosto pessoal, como foi aqui dito, não é um bom programador. Quem duplica programações não é um bom programador. Quem é um (bom) programador? Quem programa em determinado território consciente das pessoas que o habitam, questionando: O que é útil, o que é relevante, o que é urgente para estas pessoas? Noutras palavras, como vamos correr juntos?

Reagimos com risos irónicos à afirmação que os teatros e cineteatros em Portugal são programados por profissionais desta área (porque assim o declararam nas suas candidaturas à Rede). Não quero insinuar que houve pessoas que mentiram quando assinaram essas candidaturas. Antes, questiono: Quantas dessas pessoas saberão o que é, realmente, ser director artístico ou o que é programar?

Ainda em relação a este ponto, não me parece que o aluguer de um teatro em Lisboa (o Teatro Armando Cortês) para a apresentação do trabalho de companhias de outras cidades seja a resposta à necessidade e ao desejo do ver este trabalho circular pelo país e ser visto na capital. Vejamos: quem irá ver uma peça porque a companhia é de Braga ou de Évora? A “gente do teatro”, sejamos honestos. O facto de ser uma companhia vinda de uma outra cidade não é motivo suficiente para muitas outras pessoas quererem assistir. As peças dessas companhias devem ser programadas pelos teatros de Lisboa porque fazem sentido, porque são relevantes para a missão que esses teatros assumem perante o seu público.

Vejamos a missão das Comédias do Minho, por exemplo: “Dotar o vale do Minho de um projeto cultural próprio, adaptado à sua realidade socioeconómica e, portanto, com um enfoque especial no envolvimento das populações, a partir da construção de propostas de efetivo valor participativo e simbólico, para as comunidades a que se dirigem.” O festival Bons Sons foi criado, em primeiro lugar, para servir as necessidades da população da aldeia de Cem Soldos. Lembrei-me de um artigo de Joana Villaverde, de Agosto 2020, que se intitulava “As vidas do interior importam!” e onde Joana dizia que não há “interior” em Portugal, há pessoas “interiorizadas”.

Foto: Nuno Ribeiro

Referiu-se também esta manhã aos estudos de público (o da Gulbenkian, o de Braga 2027), aos seus resultados desanimadores, à necessidade de democratizar a cultura. A ideia da democratização da cultura soa hoje paternalista. A nova estratégia do Arts Council England para a década 2020-2030, Let’s Create, defende a necessidade de dar a oportunidade a qualquer cidadão, independentemente de onde vive, de ser criativo e de participar. Perceberam, através de um estudo de públicos, que as pessoas se sentem desconfortáveis com a chamada “alta cultura”, mas que, ao mesmo tempo, têm vidas culturais activas. Deborah Cullinan, ex-directora do Yerba Buena Center for the Arts, escrevia em 2017, também depois da eleição de Trump: “A base da nossa democracia é a criatividade individual e a imaginação colectiva”. Os ingleses levaram décadas para perceber que isto não aconteceria se continuassem a financiar principalmente as grandes instituições culturais mainstream da capital.

Neste último painel, sobre “minorias” e teatro, pensei que deveríamos falar de pessoas “minorizadas”, como falámos de pessoas racializadas. Falámos de representatividade: Que histórias? Escritas por quem? Encenadas por quem? Interpretadas por quem?

Falou-se do filme “Danish Girl”, interpretado por um actor cisgénero. “Pelo menos esses papéis deveriam ser interpretados por actores trans”. Eu não diria “pelo menos esses papéis”, diria quaisquer papéis que uma pessoa queira representar. No entanto, que oportunidades existem para que artistas trans possam dar a conhecer o seu trabalho? Ser chamadas para um casting? O National Theatre em Londres fez um casting apenas com o objectivo de conhecer actores trans. Dizer que “Somos todos pessoas” é verdade e ao mesmo tempo soa um pouco a “Eu não vejo cor”… Se não vejo cor, não vejo também a ausência da cor. E, assim, posso questionar se “a voz tem cor”, quando o actor Marco Mendonça critica o casting para a dobragem do filme da Disney “Soul”. Somos todos pessoas, sim, mas não estamos todos nos lugares onde queremos (e temos o direito de) estar. Quantos artistas negros, trans, com deficiência conhecemos pelo nome?

Lembrei-me também que na peça “Sempre que acordo”, de Lara Mesquita, que ganhou em 2021 o Prémio de Dramaturgia Feminina da Cepa Torta, lemos que, numa entrevista para o financiamento de um projecto de teatro, um programador, membro do júri, pergunta à dramaturga negra: “A sua peça vai na mesma direcção que uma outra peça que vimos recentemente?” (presume-se que se refere à “Aurora Negra”). Alguma vez esta questão foi colocada a um dramaturgo branco? Bastou vermos uma peça escrita por dramaturgas negras para não ser necessário vermos mais nenhuma? Questionar se irão todas na “mesma direcção”?

Gostaria também de me referir a um debate que participei com Maral Bolouri, artista não-binárie do Irão, que agora vive em Paris. Maral falou-nos sobre a constante “performance da opressão”, que é suposto apresentar um certo tipo de opressão, caso contrário as pessoas podem ser silenciadas. Por exemplo, entre os refugiados LGBT, apenas os homens gay têm algo a dizer; ou mulheres que vêm de uma família opressiva. Estas são as únicas histórias de interesse. Existe uma exigência para que os artistas se reproduzam de uma certa forma, reforçando  ideias feitas, sem liberdade para trabalhar os temas que desejarem da maneira que acharem melhor.

José Leitão disse ontem que as revoluções em Portugal acontecem (paradoxalmente) nos teatros nacionais. Fiquei a pensar nisso, em alguns “momentos-revolução” que considero que aconteceram no Teatro Nacional D. Maria II, que é o que conheço melhor:

 

2016: Apresentação da peça “Uma menina perdida no seu século à procura do pai” pelo Teatro Crinabel, no ano em que celebrava 30 anos. No final de uma das récitas, um casal pede o livro de reclamações. “Aquelas” pessoas não deveriam estar naquele palco…

 

2020: Estreia da “Aurora Negra” na Sala-Estúdio. (2022: uma cara negra nas lonas da fachada do teatro).

 

2021: Teresa Coutinho prepara o ciclo Caryl Churchill. No anúncio do casting diz-se que estão à procura de actrizes, cis ou trans. Na mesma altura, “Top Girls”, de Cristina Carvalhal, é apresentado na Sala Garrett.

 

2021: “Calígula morreu. Eu não”. No anúncio do casting diz-se que estão à procura de actores, com ou sem deficiência. Em Lisboa, aparecem cerca de 40 pessoas com deficiência.

2022: “Mãos a dentro”, curso de formação de artistas S/surdos.


“O que mudou? E amanhã, depois desta conversa, o que vai mudar?”. Zia Soares questionou, com razão, a sua presença no painel. Tem havido tantas conversas como esta. Têm-se repetido as mesmas coisas, outra e outra vez. E depois?

Estas não são “modas”. E cada um de nós tem de fazer o seu percurso. Tem de procurar conhecer o que não conhece, tem de se auto-educar. Há pessoas cansadas, exaustas, que durante muito tempo procuraram “educar-nos” sobre uma série de temas. Não querem ter mais esse papel, não querem ser elas a ter de explicar. Por um lado, parece que concordámos que não se disse nada de novo neste último painel. Para mim, não, não se disse nada de novo. Mas, se recuar cinco ou seis anos, muito do que se disse aqui hoje era-me desconhecido. Por isso, acredito que, pelo menos algumas coisas, possam ter sido uma novidade para algumas pessoas aqui.  

Penso em tudo o que não sabia há poucos anos e no tempo e dinheiro que tenho investido para me auto-educar sobre uma série de assuntos. Podemos esperar que cada cidadão queira e possa fazer o mesmo? E qual o nosso papel como profissionais da cultura neste sentido? Haverá sempre necessidade de explicar, de nos repetirmos. E quando um se cansa, outro toma o seu lugar. Isto diz respeito a todos nós, esta é uma responsabilidade comum. Vamos correr juntos?

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