Por ocasião da sua reabertura ao público, depois de obras de requalificação, o Teatro Nacional S. João (TNSJ) organizou um promissor colóquio internacional com o tema “Teatros Nacionais: missões, tensões, transformações”. Nas suas próprias palavras, este seria um “gesto de reflexão e de autoquestionamento (…), em que se fará o diagnóstico inter pares de uma instituição já um tanto vetusta, mas não menos viva.”
Com o seu discurso de abertura, Pedro Sobrado, Presidente do Conselho de Administração, reforçou as nossas expectativas através de um extenso questionamento:
Pode o repertório ser mais do que um chavão, ou um catálogo acanhado das mesmas peças dos mesmíssimos autores?
Qual o lugar ainda da proclamada “excelência” nos Teatros Nacionais, um bordão a que, por vezes, nos agarramos como náufragos quando a embarcação se despedaçou?
Como conciliar o princípio da exigência e o imperativo da acessibilidade?
E como garantir que a acessibilidade intelectual não resvala para a condescendência, um vírus fatal para a arte?
É possível que o palco continue a ser um lugar para tomadas de posição políticas sem o reconvertermos numa escola de moral e civilidade, segundo a velha e relha fórmula romântica de Teatro Nacional?
Como conciliar a aposta na experimentação e no risco artístico e os princípios de eficácia e eficiência a que uma organização pública está necessariamente obrigada?
Como compatibilizar a flexibilidade que a criação artística requer com procedimentos legais e administrativos rígidos, próprios de um organismo de Estado?
Haverá forma de garantir que os custos fixos de estrutura que envolvem a política interna de remunerações não retiram fôlego à criação artística?
Como conferir condições financeiras, técnicas e logísticas excepcionais a companhias e outras estruturas sem que tal implique viabilizar um número menor de projectos de co-produção?
É possível estabelecer uma verdadeira política da língua num Teatro Nacional?
Como manter o charme transgressivo ou a insubmissão congenial do Teatro, garantindo a credibilidade institucional junto de mecenas e investidores?
Qual o papel de um Teatro Nacional na validação internacional da cultura de um país e dos seus artistas?
Como captar e formar um público para o teatro, respondendo a interesses culturalmente tão diversos?
Quantas frentes de trabalho pode um Teatro Nacional abrir – projecto educativo e ligação à comunidade, programa editorial e documental, gestão e divulgação de património classificado, programação digital, ligação às universidades e centros de investigação, parceria estruturada com as escolas artísticas, programa de acessibilidade –, quantas frentes de trabalho pode um Teatro Nacional abrir sem deixar de ser, antes de mais e depois de tudo, um palco, isto é, um lugar que aprofunda e exorbita o seu próprio talento?
(texto gentilmente cedido pelo autor)
Pensando no colóquio no seu todo, infelizmente, não veio
“favorecer e ampliar” este questionamento, como se esperava. As principais
razões são, no meu ver, duas:
Em primeiro lugar, a grande maioria dos convidados
falou-nos, essencialmente, do que o seu teatro faz, independentemente do tema
do painel ser missões, tensões ou transformações. Ou seja, não houve
propriamente um questionamento, uma reflexão crítica, que permitiria olhar para
a o “o quê” em função do tema-chapéu da sessão. Este é um problema bastante
comum no nosso meio, ou seja, a incapacidade de irmos além de “o quê” e pensar
no “porquê”.
Depois, em dois dos três painéis, as pessoas que fizeram a
moderação foram jornalistas. Tendo reconhecidamente, pela profissão que
exercem, capacidades para moderar um debate que se quer eficaz e dinâmico, não
têm necessariamente os conhecimentos específicos necessários para insistir e
tentar aprofundar referências que ficam pela superfície ou confrontá-las com o
actual contexto da discussão destes temas no próprio sector, a nível nacional e
internacional. De referir ainda que o segundo painel não teve moderação, tendo
sido permitido ao segundo orador falar cerca de uma hora sobre vários temas (que
não consigo dizer quais foram) e ao terceiro, falar meia hora sobre a
indiferença e ingratidão dos jovens no seu país – o meu desespero e desconforto
levaram-me a sair antes do painel se concluir, quando estávamos próximo já das
três horas de duração…
Foto: Maria Vlachou |
Dito isto, houve duas comunicações que se destacaram e que
determinaram a minha opinião global positiva sobre o colóquio:
Mark O´Brien, co-director e director executivo do Abbey Theatre
(Irlanda), participou no primeiro painel, que discutiu as missões dos teatros
nacionais. Estiveram com ele mais dois directores, Cláudio Longhi (Piccolo Teatro di Milano) e
Sebastián Blutrach (Teatro
Nacional Cervantes, onde exerce funções de assessor artístico e
de produção, sendo ainda director do Teatro Picadero), e
ainda Ricardo Pais, antigo director do TNSJ (e, no meu ver, um pequeno erro de
casting neste painel).
Enquanto ouvia os oradores, procurei nos websites das
instituições que representavam as missões das mesmas. Sem grande surpresa,
descobri que os teatros italiano e argentino não têm uma missão definida e
comunicada publicamente. Talvez tenha sido também por isso que os oradores não
foram além de uma descrição de funções e que tenham confundido estas funções
com a missão ou a missão com afirmações do género “um teatro para todos”.
Ricardo Pais veio reforçar esta confusão quando disse que a missão/função do
TNSJ está na lei e que o resto depende da personalidade de quem está a dirigir
o teatro… Valeria a pena pensar: a lei diz o mesmo em relação ao TNSJ e o
Teatro Nacional D. Maria II, mas a sua actividade (o quê) não aparenta a mesma
missão (porquê); não será algo mais do que aquilo que se descreve na lei?
Deveremos, ao mesmo tempo, concluir que o director do Piccolo Teatro vai todos
os dias trabalhar sem propósito porque a lei italiana não define, como ele
gostaria, a missão do teatro que dirige?
Por outro lado, Mark O´Brien disse-nos que a ambição do
Abbey Theatre é trazer para o palco os pensamentos mais profundos da Irlanda;
confrontar o seu próprio paradigma; fazer as pessoas reflectirem sobre a sua relação
com o status quo (“se achas que não existe, provavelmente fazes parte
dele”) e questionarem a normalidade. Com o ano de 2021 a assinalar os 100 anos da partição da Irlanda, Mark disse-nos ainda que o Abbey Theatre não
nasceu para reflectir o Estado, mas para fazer o Estado; criticou as “ditaduras
democráticas” em que alguns teatros se tornaram; questionou quem está no palco
(referiu-se ainda à carta aberta
contra o modelo de produção adoptado pelo teatro,
assinada em 2019 por mais de 300 profissionais do teatro, como a maior carta de
amor); destacou a relevância não apenas do passado, mas do contemporâneo, do
presente e do futuro (“quem escreve o futuro?”); desenhou a imagem de um lugar
onde as pessoas são convidadas para construir algo em conjunto (“proibir o outreach”) e afirmou que deveremos tentar juntar as pessoas com base nos seus
valores em vez das suas convicções. Em tudo o que Mark disse vemos reflectida
aquela que o Abbey Theatre assume
ser a sua missão.
Jackie Wylie é directora artística e executiva do National Theatre of Scotland. Participou
no painel sobre transformações, juntamente com Anna Bergman (directora do Badisches Staatstheater
Karlshrue) e Michael de Cock (director artístico do KVS, Bruxelas). A comunicação da
Jackie destacou-se por várias razões. Primeiro, porque o Teatro Nacional da
Escócia é um teatro sem paredes (“um passo natural no processo”) e apresenta a
sua programação noutros teatros, pubs, nas montanhas, em submarinos; não cria
hierarquias entre diferentes formas de teatro (profissional, comunitário, etc.),
procura possibilitar a ambição de qualquer pessoa e não põe a excelência em
primeiro lugar (“definida pelo privilégio de homens cis brancos”).O Teatro
Nacional da Escócia considera que não existe ume identidade nacional estável e
acompanha as mudanças nos valores assumidos como “escoceses”, destacando neste
momento a tolerância, o cuidar e o bem-estar (especialmente, face ao Brexit, ao
qual a maioria dos Escoceses se opôs). “Não és nacional porque o adjectivo
faz parte do teu nome”, disse Jackie. Trata-se de um projecto em constante
desenvolvimento, diário. Questionou de que forma um teatro nacional reflecte a
nação hoje e, sobretudo, aquilo que será o seu futuro, e não apenas identidades
passadas. “Experimentemos uma versão utópica do que o futuro poderá ser e
assumamos a responsabilidade de levar a nação a ter este debate. Procuremos
as histórias que não são contadas ou que são pouco contadas.” Mais uma vez,
vale a pena confrontar este posicionamento com aquela que o
National Theatre of Scotland assume ser a sua identidade.
O que distinguiu estas duas comunicações foi a clareza do
pensamento e do propósito; uma acção consciente, ancorada na missão e em
valores específicos; uma noção concreta do que constitui “comunidade” e o
serviço que a ela se deve prestar. A gestão da maioria dos espaços culturais
continua a falhar neste aspecto. Sem missão definida, e muitas vezes
confundindo-a com funções ou actividades concretas, falta a orientação e
consistência que este instrumento traz a uma organização. E falta também
“accountability” (prestar contas em função do que dizemos ser a nossa missão e
objectivos). Será que é mesmo por isso que evitamos defini-la…?
Mais leituras:
Mark Fisher, Stage of the nation: what does it mean to be a national theatre?, in The Guardian, 15.1.2019
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