A seguir ao meu post sobre o artigo de Mark Ravenhill, li ou voltei a ler uma série de textos e relatórios sobre o valor da cultura e o financiamento da mesma, que passo a apresentar sucintamente.
Em 2004 a Secretária de Estado da Cultura do governo de Tony Blair, Tessa Jowell, publicou um texto intitulado Government and the Value of Culture. E dizia: “Muito frequentemente os políticos são obrigados a debater a cultura apenas em termos do seu benefício instrumental para outras agendas – educação, redução da criminalidade, melhorias no bem estar -, explicando ou, em certos casos, quase pedindo desculpa pelo investimento na cultura apenas em termos de outras coisas. No discurso político e público neste país temos evitado a abordagem mais difícil de investigar, questionar e celebrar aquilo que a cultura faz por si e de si. Há uma outra história para contar sobre a cultura e compete aos políticos que estão na minha posição mostrar o caminho para mudar o ambiente e mudar os termos do debate”.
Nesse mesmo ano, o think-tank Demos publicou Capturing Cultural Value, de John Holden. No seu relatório, Holden identifica um sentimento de desconforto no sector cultural devido à necessidade ou obrigação de provar o seu valor e de justificar o dinheiro que gasta com base em objectivos traçados por outros sectores. Analisa as dificuldades para a avaliação dos valores intrínsecos da cultura e propõe uma solução que passa pela criação de uma nova linguagem, “capaz de reflectir, reconhecer e captar toda a gama de valores expressos através da cultura”. Recorre, assim, a outras áreas e apresenta-nos conceitos expressos através da linguagem da economia (valores comerciais e outros), da antropologia (valores históricos, sociais, simbólicos, estéticos e espirituais), do ambientalismo (sustentabilidade, biodiversidade, equidade intergeracional, equidade na distribuição de benefícios), e também através da linguagem da avaliação de bens intangíveis (marcas, conhecimento) e do valor público (um conceito emergente naquela altura no Reino Unido, relacionado com o valor atribuído pelos cidadãos às entidades públicas avaliado com base no que estão dispostos a investir nas mesmas – por exemplo, em termos de tempo ou dinheiro). Holden defende, assim, a necessidade de se encontrar formas de calcular o valor da cultura que sejam capazes de reflectir também elementos que a caracterizam e que são afectivos, subjectivos, intangíveis.
Dois anos mais tarde, em 2006, é publicado Culture Vultures, editado por Munira Mirza. Mais um livro que questiona a instrumentalização da cultura e as regras de avaliação e financiamento da mesma. Textos de seis autores diferentes que defendem o valores intangíveis e intrínsecos da cultura, que se manifestam contra a colocação da cultura ao serviço de outras agendas e que questionam os dados recolhidos para provar o seu impacto social, que receiam que os critérios estabelecidos para a atribuição de financiamento tornem a arte medíocre, à medida que os artistas procurarão corresponder a requisitos impostos por outros para garantirem melhor aceitação das suas propostas e financiamento.
Em 2007 foi publicado o relatório Public Value and the Arts in England, que explora, então, esse novo conceito do 'valor público'. Trata-se dos resultados de um inquérito realizado pelo Arts Council England junto de artistas, gestores culturais, entidades financiadoras e membros do público. Achei interessante o facto de estarem aqui apresentados os pontos sobre os quais todos estes diferentes actores convergem e aqueles que criam tensão entre as partes. Questões como o que são as artes, porque é que são importantes, o que é que se entende por qualidade, a importância de assumir riscos, o acesso e a inclusão, o princípio do financiamento público, são pontos que reúnem algum consenso, ao contrário do que eu esperaria em certos casos. Quanto aos pontos de tensão, aqui não houve grandes surpresas: o direito de se exprimir versus a necessidade de envolver os públicos; os benefícios para o público versus o desenvolvimento artístico; a necessidade da prestação de contas versus a burocracia a ela associada; a avaliação por peritos versus a uma consulta inclusiva, ou seja, que integra as opiniões do público. Qual a conclusão? As pessoas envolvidas no inquérito procuraram estabelecer uma posição comum no que respeita às prioridades e aos princípios do financiamento público: “Concluíram que o objectivo final do financiamento público para as artes deveria ser a criação de ‘valor público’ em termos de (…) reforço da capacidade e da experiência de viver em vários contextos. (…) …este valor será criado naturalmente se o maior número possível de pessoas tiver a possibilidade de experienciar artes que excitam, iluminam, tocam, estimulam e desafiam. Por isso, gostariam que o sistema de financiamento público apoiasse a qualidade da experiência artística”.
Por último, li uma série de pequenos textos que o Arts Council da Irlanda solicitou a alguns comentadores, no seguimento de um estudo chamado The Public and the Arts (2006). São eles: The Case for Elitism; The Siren Alps; The Feel-good Gulag; We´ve Built It; Why Won´t They Come?; e The Pursuit of Glorious Failure. Pontos de vista interessantes, alguns expressos com muito sentido de humor, outros algo exagerados.
Todos estes textos ajudaram-me a arrumar algumas ideias e levantaram-me questões:
- Será que a cultura precisa ainda hoje de provar o seu valor? A quem? E em que termos?
- É legítimo pedir algo em troca a um artista cuja obra é financiada com dinheiros públicos? E a uma companhia ou outra instituição cultural?
- Se sim, quem define o que se pode/deve pedir em troca e como?
(continua…)
Agradeço a CF ter-me falado do Culture Vultures e a MLA ter-me enviado o Capturing Cultural Value.
Em 2004 a Secretária de Estado da Cultura do governo de Tony Blair, Tessa Jowell, publicou um texto intitulado Government and the Value of Culture. E dizia: “Muito frequentemente os políticos são obrigados a debater a cultura apenas em termos do seu benefício instrumental para outras agendas – educação, redução da criminalidade, melhorias no bem estar -, explicando ou, em certos casos, quase pedindo desculpa pelo investimento na cultura apenas em termos de outras coisas. No discurso político e público neste país temos evitado a abordagem mais difícil de investigar, questionar e celebrar aquilo que a cultura faz por si e de si. Há uma outra história para contar sobre a cultura e compete aos políticos que estão na minha posição mostrar o caminho para mudar o ambiente e mudar os termos do debate”.
Nesse mesmo ano, o think-tank Demos publicou Capturing Cultural Value, de John Holden. No seu relatório, Holden identifica um sentimento de desconforto no sector cultural devido à necessidade ou obrigação de provar o seu valor e de justificar o dinheiro que gasta com base em objectivos traçados por outros sectores. Analisa as dificuldades para a avaliação dos valores intrínsecos da cultura e propõe uma solução que passa pela criação de uma nova linguagem, “capaz de reflectir, reconhecer e captar toda a gama de valores expressos através da cultura”. Recorre, assim, a outras áreas e apresenta-nos conceitos expressos através da linguagem da economia (valores comerciais e outros), da antropologia (valores históricos, sociais, simbólicos, estéticos e espirituais), do ambientalismo (sustentabilidade, biodiversidade, equidade intergeracional, equidade na distribuição de benefícios), e também através da linguagem da avaliação de bens intangíveis (marcas, conhecimento) e do valor público (um conceito emergente naquela altura no Reino Unido, relacionado com o valor atribuído pelos cidadãos às entidades públicas avaliado com base no que estão dispostos a investir nas mesmas – por exemplo, em termos de tempo ou dinheiro). Holden defende, assim, a necessidade de se encontrar formas de calcular o valor da cultura que sejam capazes de reflectir também elementos que a caracterizam e que são afectivos, subjectivos, intangíveis.
Dois anos mais tarde, em 2006, é publicado Culture Vultures, editado por Munira Mirza. Mais um livro que questiona a instrumentalização da cultura e as regras de avaliação e financiamento da mesma. Textos de seis autores diferentes que defendem o valores intangíveis e intrínsecos da cultura, que se manifestam contra a colocação da cultura ao serviço de outras agendas e que questionam os dados recolhidos para provar o seu impacto social, que receiam que os critérios estabelecidos para a atribuição de financiamento tornem a arte medíocre, à medida que os artistas procurarão corresponder a requisitos impostos por outros para garantirem melhor aceitação das suas propostas e financiamento.
Em 2007 foi publicado o relatório Public Value and the Arts in England, que explora, então, esse novo conceito do 'valor público'. Trata-se dos resultados de um inquérito realizado pelo Arts Council England junto de artistas, gestores culturais, entidades financiadoras e membros do público. Achei interessante o facto de estarem aqui apresentados os pontos sobre os quais todos estes diferentes actores convergem e aqueles que criam tensão entre as partes. Questões como o que são as artes, porque é que são importantes, o que é que se entende por qualidade, a importância de assumir riscos, o acesso e a inclusão, o princípio do financiamento público, são pontos que reúnem algum consenso, ao contrário do que eu esperaria em certos casos. Quanto aos pontos de tensão, aqui não houve grandes surpresas: o direito de se exprimir versus a necessidade de envolver os públicos; os benefícios para o público versus o desenvolvimento artístico; a necessidade da prestação de contas versus a burocracia a ela associada; a avaliação por peritos versus a uma consulta inclusiva, ou seja, que integra as opiniões do público. Qual a conclusão? As pessoas envolvidas no inquérito procuraram estabelecer uma posição comum no que respeita às prioridades e aos princípios do financiamento público: “Concluíram que o objectivo final do financiamento público para as artes deveria ser a criação de ‘valor público’ em termos de (…) reforço da capacidade e da experiência de viver em vários contextos. (…) …este valor será criado naturalmente se o maior número possível de pessoas tiver a possibilidade de experienciar artes que excitam, iluminam, tocam, estimulam e desafiam. Por isso, gostariam que o sistema de financiamento público apoiasse a qualidade da experiência artística”.
Por último, li uma série de pequenos textos que o Arts Council da Irlanda solicitou a alguns comentadores, no seguimento de um estudo chamado The Public and the Arts (2006). São eles: The Case for Elitism; The Siren Alps; The Feel-good Gulag; We´ve Built It; Why Won´t They Come?; e The Pursuit of Glorious Failure. Pontos de vista interessantes, alguns expressos com muito sentido de humor, outros algo exagerados.
Todos estes textos ajudaram-me a arrumar algumas ideias e levantaram-me questões:
- Será que a cultura precisa ainda hoje de provar o seu valor? A quem? E em que termos?
- É legítimo pedir algo em troca a um artista cuja obra é financiada com dinheiros públicos? E a uma companhia ou outra instituição cultural?
- Se sim, quem define o que se pode/deve pedir em troca e como?
(continua…)
Agradeço a CF ter-me falado do Culture Vultures e a MLA ter-me enviado o Capturing Cultural Value.
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