Monday, 5 March 2012

La crise oblige? (iii) Desafios na gestão

Foto © ORF (tirada de http://www.kleinezeitung.at/)
Que grande lição de gestão foi a carta aberta do director musical do Liceu de Barcelona, Michael Boder, em resposta ao anúncio feito pela administração daquele teatro que, devido a dificuldades financeiras, o mesmo ia encerrar por dois períodos de um mês, entre Março e Julho (ler notícia aqui). E não foi apenas uma lição de gestão. Boder demonstrou ainda um grande sentido de missão e de responsabilidade, qualidades essenciais para quem dirige uma instituição e decide o seu rumo.

“Porque é que existimos?”, perguntava o director musical ao gestor geral do Liceu, facultando-lhe imediatamente as respostas: existimos para tocar, tocar mais e não menos; porque, em momentos como este, a música traz uma mensagem muito importante; porque a música mexe connosco; porque em tempos de crise uma instituição cultural pode e deve transmitir uma mensagem social; porque estamos ao serviço da coesão social; porque a cultura traz conforto e dá ideias (ler a carta aberta aqui).

Mas Boder levantava ainda outras questões na sua carta aberta, relativas à necessidade de reavaliar a dimensão dos serviços administrativos, o acordo colectivo e o número de horas de trabalho da orquestra e do coro, que considera insuficiente. Não hesitou em colocar em cima da mesa os custos fixos da instituição em prol da continuidade da programação. Porque sabe, tal como a administração do Liceu devia saber, que sem programação a instituição desaparece do 'mapa', ou seja, sai da cabeça e dos corações das pessoas; perde a sua credibilidade e o prestígio que levou anos a construir; está condenada ao marasmo interno e à desmotivação; e prejudica irremediavelmente a sua imagem, ao transmitir à sociedade, em especial numa altura de crise e de grandes sacrifícios, que a prioridade são os salários e regalias dos funcionários, mesmo que estes tenham sido ‘condenados’ à inércia, e não a oferta cultural, que é a razão principal porque existem (a administração revogou, entretanto, a sua decisão de encerrar o teatro – ler notícia aqui).

Nos últimos dois anos, a situação financeira de muitas orquestras tem sido notícia. Um dos casos mais mediáticos foi o da Orquestra de Filadélfia, uma orquestra de grande renome a nível mundial, que declarou falência há aproximadamente um ano. No entanto, gostaria de me concentrar aqui em particular no caso da Orquestra Sinfónica de Detroit. Detroit é uma cidade que se tornou próspera graças à indústria automóvel, indústria esta que apoiou, entre outras coisas, muitas entidades culturais, incluindo a orquestra. Nos últimos anos, uma série de factores económicos e sociais mudaram radicalmente o ambiente em que a orquestra opera: o declínio da indústria automóvel, o colapso da bolsa, a diminuição da população (quase 50% numa década) e ainda, o envelhecimento do público da orquestra, a diminuição na venda de bilhetes, a dívida contraída para a extensão do auditório. A administração avançou com um anúncio de cortes, incluindo um corte de 23% no salário dos músicos (aceite ao fim de uma greve de meses, que silenciou a orquestra durante a maior parte de uma temporada). No entanto, os cortes não conseguem ser só por si garantia de sustentabilidade. As mudanças socio-demográficas são um desafio muito maior para esta orquestra (e para as instituições culturais em geral) e a sua sustentabilidade depende muito da forma como vai reagir e adaptar-se. Actuando agora numa cidade em 80% afro-americana (na orquestra tocam apenas 4 músicos negros), onde o rendimento médio das famílias tem diminuído drasticamente, em cujas escolas não tem havido educação musical há muitos anos, torna-se urgente procurar envolver públicos novos, diversificados, representativos da população que vive agora em Detroit e em cidades limítrofes. Uma das iniciativas da orquestra é tocar em centros comunitários, igrejas e sinagogas, pontos de encontro com os seus novos públicos-alvo (ver toda a notícia aqui).

Os problemas que as instituições culturais enfrentam hoje em vários pontos do mundo não são apenas financeiros. São de natureza variada e estão interligados. Dizem respeito à gestão, à programação, ao serviço educativo, à comunicação. O mundo em que estamos a actuar é diferente, está em constante mudança e desenvolvimento.

Procurando, desta vez, abordar algumas questões que dizem respeito à gestão, voltaria a citar Michael Kaiser, que diz que, em primeiro lugar, temos um problema de receita (e não de custos, apesar de se começar sempre por aí). E a palavra ‘receita’ refere-se concretamente a: o financiamento estatal ou municipal; o dinheiro proveniente de mecenato e patrocínio (empresas, fundações, contributos – grandes e pequenos - de indivíduos); a receita de alugueres e outros serviços; a receita de bilheteira (quando se aplica). Em Portugal e noutros países, após décadas de dependência (quase absoluta) do muito ou pouco que o Estado estava disposto ou capaz de dar, é urgente começarmos a diversificar as fontes de receita. E apesar da opção óbvia serem as empresas e as fundações, não podemos iludir-nos. Esta não é uma relação que dura para sempre. Essas entidades investem dinheiro porque querem ver o seu nome associado a um determinado projecto; porque isso faz sentido no âmbito do seu plano estratégico. No entanto, os planos estratégicos mudam, são orientados por objectivos concretos e prioridades, que não permanecem inalteráveis. Assim, a terceira fonte de receita torna-se decisiva para um futuro sustentável: as pessoas, os indivíduos, que connosco se relacionam e que nos querem apoiar através de doações, comprando bilhetes ou assinaturas, tornando-se membros (ou pequenos mecenas, tendo a Casa Conveniente e a Cornucópia dado os primeiros passos em Portugal no sentido de criar este género de relação com os seus públicos). Esta relação, se for valorizada e acarinhada, pode, sim, durar para sempre. Até depois da morte… Uma das histórias mais comoventes que ouvi recentemente é a de um senhor que deixou todo o dinheiro que tinha a uma orquestra - tendo descontado apenas o necessário para o seu funeral -, porque durante anos não podia sair de casa devido a problemas de saúde e um dos seus grandes (e poucos) prazeres na vida era ouvir na rádio as transmissões ao vivo da orquestra (por razões legais, devido à vontade expressa do doador, não se pode apresentar dados concretos sobre esta doação).

No entanto, temos problemas de custos também. Quando somos obrigados a fazê-lo (por exemplo, devido a uma crise), somos sempre capazes de identificar aquelas situações onde os nossos recursos financeiros não são geridos da forma mais eficiente e procuramos optimizá-los. Isto passa também por uma gestão eficiente dos recursos humanos. Em geral, não estamos preparados para, ou dispostos a, considerar o desperdício que ocorre não só quando as equipas são inflacionadas, mas, sobretudo, quando os recursos humanos existentes não são devidamente aproveitados. Michael Boder não hesitou em admitir que o número de horas de trabalho da orquestra e do coro era insuficiente. No caso de muitas orquestras a nível mundial (ver links no fim deste post), os músicos e restantes funcionários envolveram-se no processo de ‘reposicionamento’, não consideraram os seus ordenados e regalias ‘sagrados’, não os colocaram à frente da necessidade de continuar a actuar, para não perderem o seu lugar na vida dos seus públicos. Ao mesmo tempo, penso que os funcionários estarão mais dispostos a entrar neste género de negociação e a aceitar sacrifícios se sentirem que existe uma vontade honesta e genuína, uma determinação por parte das administrações a encontrar soluções que permitirão às organizações não só sobreviver por apenas uns tempos, mas criar condições para um futuro saudável e sustentável para todos.

Tempos como estes, casos como estes, exigem ainda mais que a gestão das instituições culturais seja feita por pessoas, gestores, devidamente preparados (do ponto de vista académico e/ou de experiência e formação profissional), profissionais que possam conduzir o barco com competência, conhecimento, rigor e com a devida sensibilidade pelas especificidades deste sector. Porque é possível ter instituições culturais financeiramente saudáveis, elas existem (ler artigo de Michael Kaiser aqui). Talvez quando conseguirmos ultrapassar o discurso da ‘mercantilização da cultura’ (no qual normalmente um gestor cultural é equiparado ao gestor de um supermercado e o seu trabalho especializado é visto como uma série de entraves ao acesso à cultura), possamos ter mais abertura para procurar perceber como e porque é que outros conseguem.

Dizemos que os tempos não são fáceis. Alguma vez o foram? Os tempos agora são ‘simplesmente’ mais difíceis. Deixarmos o nosso lugar de conforto, ultrapassarmos o discurso estéril dos manifestos que só reclamam mas nada propõem, olharmos para a realidade à nossa volta e fazer-lhe frente (de forma responsável, realista, conhecedora, profissional) é uma necessidade permanente. Mais urgente, talvez, em alguns momentos do que noutros. Mas permanente. Como disse Russell Willis Taylor, CEO de National Arts Strategies, num discurso que vale a pena ouvir até ao fim, “Não há crises, apenas decisões difíceis”.



Ainda neste blog
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4 comments:

Gaelle Istanbul said...

Parabéns mais uma vez, pela análise! É honesta, muito bem estruturada e apresenta soluções. Também me parece que o caminho das instituições deva ser esse: acompanhar as mudanças, re-orientar as linhas programáticas, sem que isso implique forçosamente um perda de qualidade, sendo que acontece nos casos mais bem sucedidos exactamente o contrário - e reafirmar uma linha de conduta, que também passa por uma maior preocupação ética. Algumas instituições culturais relegam, para segundo plano, a vontade de estabelecer uma relação de confiança e honestidade com o seu público. Este será certamente o momento ideal para se cativar novos públicos, cumprindo a permissa de que falavas que passa por envolver as diversas comunidades, mas também o momento propício para se oxigenar a relação entre a instituição e o seu público mais fiel.

Maria Vlachou said...

Obrigada pelo feedback, Gaëlle. Obrigada pelo apoio também.

Quanto mais penso nisso, mais vejo o como tudo está interligado (gestão, programação, educação, comunicação), o quanto trabalho temos pela frente. E pergunto-me quando é que vamos começar. O que é que é preciso fazer para as coisas começarem a acontecer também aqui, aos poucos. De quem depende? Falta de líderes no nosso sector? Falta de vontade, energia, capacidade? Medo de exposição? O que será?

Gaelle Istanbul said...

Tudo isso um pouco... Se tivesse de rezumir numa só palavra diria talvez... ousar!
Ousar sair da zona de conforto, ousar experimentar, arriscar, ir ao encontro do outro, perder tempo(ganhá-lo!) a analizar, a investigar, etc. Ter-se um espírito combativo e ter-se vontade de fazer mais, fazer melhor. Aí sim, começa a grande aventura... Quando se faz algo com brio, o prazer acompanha.
É um problema transversal nas sociedades actuais. Poucas pessoas fazem aquilo a que se propõem com brio. O verdadeiro prazer e o brio têm vindo a tornar-se demasiado fugazes... Recebi há dias uma frase que me fez pensar e sorrir: 'estou tão orgulhosa do que fiz, nunca pensei!' Era bem verdade, a pessoa em questão tinha fortes motivos para se sentir orgulhosa! (Atenção: a não confundir com vaidade, excesso de confiança,sede de poder e falta de sobriedade.)
Depois, esse bom orgulho, de que não se deve ter vergonha de partilhar pois nasce do espanto, transmite-se, evidentemente. O sentimento de plenitude, de satisfação e a vontade de gerar, de criar, de solidificar transmitem-se em cadeia. Tal como as coisas más, as coisas boas também acontecem como que numa teia rizomática... do empregado de limpeza de uma instituição ao seu Director, para chegar novamente ao empregado de limpeza. Quando tal acontece gera um elo forte e com uma dinâmica inteligente, capaz de superar a tal situação de falência eminente.
É preciso ousadia!
A ousadia também é uma aprendizagem.

Maria Vlachou said...

Tudo isto e... espaço.