Conheci Farai
Mpfunya há um ano no Kennedy Center e tive o prazer de partilhar com ele a sala
de seminários, e algumas pausas para almoço, em dois verões consecutivos. O que
mais gostei nas nossas conversas e ao ouvir os comentários de Farai nas aulas,
foi o seu conhecimento sólido do sector cultural no Zimbabwe e no estrangeiro,
assim como as suas opiniões ponderadas e equilibradas. Farai fala quando tem
mesmo algo a dizer e sinto-me com sorte por o ter conhecido. mv
Cinema Mai Musodzi, Mbare (Foto: Farai Mpfunya) |
Mbare, subúrbio
de Harare, Zimbabwe.
A maioria dos
meninos e das meninas que cresceram neste bairro nos anos 70 estava a cinco
minutos de um cinema, de uma biblioteca, de um centro desportivo, de uma igreja
e de uma escola. Um ambiente educacional e cultural rico para os pequenos,
diriam. Ainda por cima, tratava-se de uma das mais diversas comunidades
multi-étnicas. Muitas pessoas de todo o país e além fronteiras queriam viver na
próspera capital de um pequeno país rico. Enquanto os residentes locais tinham
trazido essas incrivelmente ricas culturas e a sua arte, a infraestrutura da
cidade impôs uma cultura urbana e encorajou certo tipo de artes.
Qual Cultura e
de quem?
Antes da
independência do Zimbabwe do domínio britânico em 1980, Mbare era uma área onde
viviam os pretos. Os brancos não viviam aqui, excepto, ocasionalmente, o pároco
católico. Os polícias e superintendentes brancos das autoridades locais vinham
apenas de manhã e iam-se embora à noite. Viviam nos subúrbios brancos ou em
bairros resguardados pelas áreas industriais e comerciais.
Um par de ruas
principais ligavam o bairro ao resto do mundo e essas ruas podiam ficar
vedadas pela polícia quando os pais do meninos começavam a fazer barulho a
propósito dos direitos humanos e das condições de vida na zona. A julgar pela
forma como a polícia se comportava, os episódios esporádicos em que perseguiam
os pretos com cães, motocicletas e veículos anti-motim, por vezes, para as
crianças, parecia ser uma brincadeira de crescidos. Fazia tudo parte da
paisagem cultural urbana. Uma pequena comunidade branca de origem europeia
tinha governado o Zimbabwe desde 1896 e ‘construído’ uma nova ‘nação’, chamada
Rodésia, cultura incluída.
Qual cultura e
de quem?
Nos anos 70, os
meninos divertiam-se em Mbare nos cinemas. Viam o James Bond no Gold Finger e o James Coburn em A Man Called Flint e a seguir brincavam
aos espiões. Viam cowboys e índios e depois do filme perseguiam índios no
bairro. Viam o Bruce Lee em Enter The
Dragon e imaginavam-se peritos em artes marciais.
Biblioteca Municipal de Mbare (Foto: Farai Mpfunya) |
Na biblioteca
local, alguns liam Shakespeare. Na escola falavam-lhes das viagens de descoberta
de novos mundos e culturas de Cristóvão Colombo e de David Livingstone. Em
casa, era-lhes dito que Livingstone descobriu e deu o nome às poderosas
cataratas Victoria em honra da sua própria rainha. Essas mesmas cataratas
faziam parte do seu património e eram conhecidas como Mosi-oa-Tunya (Tokaleya
Tonga: o Fumo que troveja). Os professores pretos ensinavam nova história e
cultura, enquanto os pais e os avós ensinavam a história e cultura antiga.
Nos anos 70, os
meninos de Mbare divertiam-se nas piscinas públicas, cujo nome era de um dos
primeiros colonos europeus que tinham expulsado os seus antepassados da sua
terra. Na piscina clorada, sonhavam e treinavam para se tornarem Mark Spitz,
vencedor em 1972 de sete medalhas de ouro e americano..., sem esquecer os fatos
de banho Speedo. Jogavam futebol e davam-se uns aos outros novos nomes, como
Pele e Sócrates, como os gigantes do futebol brasileiro. Abraçavam a cultura
global antes do ‘global’ se tornar moda.
Qual Cultura e
de quem?
O Zimbabwe teve
eleições harmonizadas em Julho 2013, como acontece, mais ou menos, de
cinco em cinco anos. Essas eleições foram declaradas pacíficas por todo o
mundo. Muitos zimbabueanos tinham rezado para que prevalecesse a paz, em parte
porque, da última vez, as eleições tinham-se tornado violentas em algumas zonas
e o desenvolvimento tinha parado. Os zimbabueanos têm também uma genuína
cultura de paz. Enquanto o partido no poder, ZANU (FP), estava obviamente
eufórico com os resultados das eleições, porque ganharam com grande maioria,
alguns ficaram surpreendidos e outros zangados. Mesmo assim, no dia a seguir, a
vida no Zimbabwe continuava pacífica como antes das eleições. A vontade dos
diversos povos do Zimbabwe tinha sido expressa. Fim da história, certo?
Não para o meu
país. Os resultados tinham sido dissecados pela sua justiça e credibilidade.
Internamente, o maior partido da oposição contestou tanto a justiça como a
credibilidade do processo e dos resultados. Entidades políticas africanas
regionais e continentais que tinham enviado observadores para o terreno, foram
rápidas em endossar os resultados como uma representação credível da vontade do
povo, enquanto alguns poderosos países ocidentais, aos quais não tinha sido
permitido enviarem observadores oficiais para o terreno, foram rápidos a
pronunciarem-se sobre a credibilidade dos resultados como uma verdadeira
representação da vontade do povo… do Zimbabwe.
A cultura do
voto no Zimbabwe não os tinha impressionado.
Escola de Artes Visuais da National Gallery, Departamento de Mbare (Foto: Farai Mpfunya) |
O actual
Presidente do Zimbabwe, um herói da guerra da independência contra o poder
colonial, tem tido uma década de confrontos diplomáticos com países do
ocidente. Impuseram-lhe sanções, a ele e a uma centena dos seus camaradas, também
heróis da guerra de independência contra o poder colonial. Enquanto tudo isto
acontecia, os meninos em Mbare tinham novos jogos em espaços não tão bem
cuidados. Culpam as sanções. Enquanto uma nova cultura de pobreza penetra o
território, reina uma profunda resiliência.
Não se deixando abalar pelos seus críticos, o Presidente
declarou vitória nas eleições harmonizadas, tomou posse e avançou para a
formação de um novo executivo. Os ministérios foram reduzidos, foi anunciado um
novo Ministério do Desporto, das Artes e da Cultura. Muitos no sector cultural
e artístico que tinham feito “lobby” durante anos para um ministério separado,
ficaram surpreendidos. Tiveram mais do que esperavam, apesar de não saberem
muito bem o que fazer com os seus irmãos do Desporto.
Os meninos e as
meninas de Mbare estão ansiosos para que os seus equipamentos degradados, no
seguimento de anos de sanções direccionadas, sejam renovados, para que o
seu bairro seja regenerado. Nova energia irá com certeza aparecer nas suas
culturas…. Facebook…. Twitter….
Qual Cultura e
de quem?
Farai Mpfunya é fundador e director executivo do Culture Fund of
Zimbabwe Trust, a maior entidade financiadora do sector artístico e cultural do
Zimbabwe a nível local. Fez parte do Cultural Policy Task Group do Arterial
Network que desenvolveu um enquadramento para a criação de políticas culturais
pelos governos africanos. Educado no Zimbabwe, na França e na Inglaterra,
iniciou a sua carreira profissional na função pública e depois no sector
empresarial. Estudou engenharia electrónica e depois gestão de empresas (MBA),
antes de se virar para a cinematografia e a gestão cultural. Farai é Chevening Scholar, fellow do Salzburg Global Seminar
(Session 490) e do DeVos Institute of Arts Management no Kennedy Center.
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