Monday 3 October 2016

Justin Bieber e o combate ao extremismo islâmico

O Presidente iraniano, Hassan Rouhani, e o Primeiro-Ministro italiano, Matteo Renzi (Foto: Alessandro Bianchi / Reuters, imagem retirada do jornal The Atlantic)
Um recente artigo do NPR, intitulado Italy's 'Cultural Allowance' For Teens Aims To Educate, Counter Extremism (O subsídio de cultura para os adolescentes na Itália pretende educar, combater o extremismo) demonstra a confusão que existe, a vários níveis e meios, em relação ao acesso à cultura e à cultura como panaceia para vários males deste mundo.

O título não é um exagero do jornal. Foi o próprio Primeiro-Ministro italiano que, ao anunciar este subsídio de cultura (€500 para cada jovem com 18 anos gastar em produtos culturais), pouco depois dos ataques terroristas em Paris, em Novembro 2015, afirmou: “Destroem estátuas, nós protegemo-las. Queimam livros, somos o país das bibliotecas. Concebem o terror, respondemos com cultura."

Destroem estátuas, nós protegemo-las”... Dito pelo Primeiro-Ministro do país que no início deste ano recebeu o Presidente de uma República Islâmica e que - para acomododar as sensibilidades do distinto convidado, mas sem se saber muito bem por decisão de quem - cobriu as estátuas nuas nos museus (aqui e aqui). O convidado é o Presidente de um país que autoriza execuções públicas, manda os dissidentes e defensores dos direitos humanos para prisões horríveis e confisca os passaportes de intelectuais e activistas. O que é que isto diz da nossa Cultura?

A medida anunciada pelo governo italiano foi por muitos aplaudida. As palavras e aspirações do Primeiro-Ministro causaram, como é natural, muito boa impressão e foram consideradas um sinal de aposta na Cultura, num momento em que vários outros governos desinvestem. Penso que a iniciativa, tal como outras da mesma natureza antes dela, levanta várias questões:

Em primeiro lugar, o que é que a Cultura representa para os políticos? Qual é a visão que eles têm sobre ela a nível da sua própria vida e prática diária (como responsáveis políticos, mas também como pais, profissionais de diferentes áreas, cidadãos comuns) e a nível do papel que esta pode ter na sociedade? Será a Cultura uma forma de estar na vida consciente, praticada ou uma espécie de pílula contra os males do mundo (do género “Jovem vai ao concerto de Justin Bieber = Jovem dissuadido de seguir o Islão radical”)?

Em segundo lugar - partindo do princípio que se reconhece o potencial contributo da Cultura na construção de uma sociedade mais humana, justa, crítica, tolerante, democrática -, qual seria o objectivo de um investimento na promoção da participação cultural? Lê-se na legenda da fotografia que ilustra o artigo do NPR que o objectivo do subsídio italiano é “ajudar um número crescente de jovens imigrantes a assimilar”. E ainda, o alerta de Barak Mendelsohn, senior fellow no Foreign Policy Research Institute em Filadélfia e perito no combate ao extremismo: “É possível que a Lady Gaga seja exactamente o que vai tornar alguém furioso. Isso não significa que eles aderem aos vossos valores.” Qual é o objectivo, então, da participação cultural e dos ‘encontros’ que esta pode proporcionar? A assimilação do “outro”, o desaparecimento das diferenças, a prevalência de uma mono-cultura? Ou a celebração da diversidade cultural, dos princípios que nos unem e também da “contaminação” mútua?

Em terceiro lugar, este tipo de investimento na cultura – no formato de “subsídio” (como foi, por exemplo, o Vale Cultura no Brasil ou poderá vir a ser o Cartão +Cultura, anunciado pelo governo português), um investimento isolado, sem contexto, põe ênfase no dinheiro como principal barreira à participação cultural ou como principal estímulo para a sua procura. E insiste em ignorar uma série de outros factores – sociais, intelectuais, psicológicos – que mantém a maioria das pessoas afastadas ou indiferentes. Até quando estaremos a concentrar os nossos esforços na falsa questão do dinheiro em vez de na tarefa, mais complexa e continuada, de reflectir e trabalhar sobre aquelas que constituem barreiras essenciais para quem tem e para quem não tem dinheiro? Com todas as consequências que esta exclusão traz para as nossas sociedades (pelo menos, para quem acredita no contributo da Cultura na construção dessas sociedades) e para a qualidade das nossas democracias.

O programa "Ahlan" na Vancouver Art Gallery (imagem gentilmente cedida pelo Institute of Canadian Citizenship / Kenin Hill)

Pouco a pouco, fico agora a conhecer melhor o trabalho do Institute for Canadian Citizenship (ICC). A notícia que as cerimónias de cidadania (citizenship ceremonies, em que é atribuída a cidadania a novos canadianos) têm lugar em museus tinha chamado a minha atenção há uns anos. O simbolismo desta escolha de lugar significou muito para mim. Notícias mais recentes sobre o programa “Ahlan”, para a inclusão dos refugiados, e sobre o Cultural Access Pass fizeram-me procurar mais informações.

“A diversidade é uma realidade. A inclusão é uma escolha”, lê-se na homepage do ICC. E a sua missão: “Inspirar os Canadianos a serem inclusivos, abraçar novas ideias, praticar uma cidadania activa e sentirem-se donos da nossa cultura e espaços colectivos”. A Cultura é um factor presente, activo, na forma como o ICC procura prosseguir a sua missão. Não é apenas uma teoria nem, muito menos, é dada como pílula. E até é muito tentador querer acreditar que a eleição de Justin Trudeau como Primeiro-Ministro possa ser também o resultado desta Cultura; um resultado da prática desta Cultura (se bem que falta ainda ver como vai receber um dia o Presidente do Irão). De qualquer forma, parece-me ser um caso que valerá a pena estudar melhor porque coloca questões muito mais profundas e fundamentais do que a distribuição - desapoiada, descontextualizada - de subsídios ou de entradas gratuitas.
 

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