Sunday 30 October 2016

MAAT, gerador de expectativas

Imagem retirada do website do MAAT.
Continuo admirada com a forma como o recém-inaugurado edifício do MAAT – Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia, da autoria de Amanda Levete, se integra na paisagem. Quando me aproximo daquela zona ou quando atravesso a ponte, espero sempre ver um edifício enorme que se sobreponha ou que esconda a Central Tejo. Mas não...... A Central Tejo continua majestosa, sendo que o novo edifício surge ao seu lado como uma nota suave e fluída.
O meu primeiro contacto com o novo museu foi em Junho. Na verdade, tratou-se da reabertura do “velho” museu (Museu da Electricidade na Central Tejo), depois das obras de renovação, e foi lançada a marca MAAT. Acompanhei depois a campanha para a inauguração do novo edifício e li algumas entrevistas do director do museu, Pedro Gadanho, tendo, assim, formado uma primeira opinião / expectativa. As várias críticas que surgiram com a inauguração do edifício e algumas conversas com colegas trouxeram-me mais “food for thought”. A minha primeira visita ao novo edifício também.

A reflexão de Pedro-Manuel Cardoso, “MAAT: um projeto Arquitectónico ausente de projeto Patrimonial”, apresentada em três partes na lista Museum (primeira, segunda, terceira parte) trouxe-me, como é quase sempre o caso com este colega, novos pontos de vista ou, melhor, obrigou-me a considerar aqueles pontos de vista que não surgem primeiro, habitualmente, na minha própria reflexão. Muito sucintamente, PMC questiona o design do edifício e o conteúdo anunciado do novo museu e considera que nem um nem o outro permitem criar uma diferenciação em relação ao que se vê em muitas outras cidades. Além disso, pensa que não acrescentam nada à compreensão de Portugal e que o projecto como um todo “prima pela ausência de um projeto patrimonial relevante para a Cultura especificamente Portuguesa. Construído num dos melhores locais para a divulgação da Cultura Portuguesa ‘ao mundo que nos visita’, neste caso, por causa da beleza paisagística do estuário do Tejo.”
As preocupações parecem-me legítimas, mas não as partilho. O novo edifício do MAAT é uma obra do século XXI, tal como a Central Tejo é um edifício industrial do século XX (e deste ponto de vista, igual ou parecida a muitas outras centrais eléctricas na Europa). São ambos edifícios do seu tempo e Lisboa é uma cidade viva e vivida. Como já tive a oportunidade de dizer, considero a forma como o novo edifício está integrado na paisagem muito bonita e é, sem dúvida, o edifício do qual mais gosto entre os recentemente erguidos na zona do rio (Fundação Champalimaud, Hotel Altis, Museu dos Coches). Quanto à relevância que o projecto deveria ter para uma Cultura especificamente Portuguesa, esta parece-me ser uma expectativa algo redutora. As entrevistas de Pedro Gadanho dão a entender que a programação do espaço ambiciona mostrar Portugal aos Portugueses e Portugal ao Mundo, mas também o Mundo a Portugal. Fico contente por poder ver, conforme anunciado, certas exposições na cidade onde vivo, porque estas virão ter connosco, em vez de nós (os que podemos) irmos ter com elas. Fico ainda contente por poder conhecer artistas portugueses consagrados, novos ou emergentes da colecção da Fundação EDP, um comprimisso apresentado de forma clara e firme.
A entrevista de Pedro Gadanho à revista Contemporânea (Agosto-Setembro 2016) revela o papel que este novo museu ambiciona vir a ter. “Imagino um museu menos responsabilizado com o próprio campo da arte, no sentido mais estrito - da arte pela arte, e mais um museu que a coloca como motor de um debate público”, afirmou o director do museu. “(...) oferecer, não só uma contemplação estética, mas ter também um papel ativo na produção de reflexão crítica”. Pedro Gadanho disse ainda que a programação irá apoiar os artistas portugueses, utilizando os artistas internacionais como catalisadores, no sentido de criar uma plataforma de encontro entre ambas as realidades. E o público, nacional ou estrangeiro, irá sempre encontrar duas ou três exposições de artistas nacionais. O MAAT irá ainda criar exposições em parceria com entidades estrangeiras, que possam itinerar, e ainda em exposições que possam existir simultaneamente em quatro lugares, realizadas com acesso a recursos locais, um modelo que poderá ajudar a contornar o problema económico das exposições que circulam e investir em arte em vez de em transportes. O plano parece-me bom. E parece-me que vai ao encontro das preocupações ambientais da “tutela” do museu, Fundação EDP.
O que me leva a uma outra crítica feita à criação do museu. No seu artigo de opinião A EDP, o MAAT e a irresponsabilidade social, José Vitor Malheiros questiona o conceito da “responsabilidade social” das empresas, considera que se trata de investimento feito apenas para fins de propaganda, “serve com frequência para tentar esverdear a imagem de empresas poluidoras ou branquear práticas fiscais imorais”, para além de esconder “um pensamento segundo o qual a assistência aos pobres, a protecção do ambiente ou o financiamento da cultura podem ser assumidos com vantagem pelo sector privado e, portanto, o Estado pode desvincular-se deles”. Partiho as preocupações de JVM e, tal como aconteceu no Reino Unido em relação ao apoio da BP a certas instituições culturais, penso que deveremos todos manter um olhar crítico sobre este tipo de investimento. Mas, ao contrário de Malheiros, não penso que não deva sequer existir ou que, existindo, permite ao Estado desvincular-se das suas responsabilidades. Uma coisa não impede a outra e, sem dúvida, não impede os cidadãos de continuarem a ser exigentes com o Estado. Samuel Rego, em resposta ao JVM lembra-nos o apoio sustentado da Fundação EDP à Companhia Nacional de Bailado e à criação artística em geral. Tal como ele, não vejo mal nenhum neste investimento, deixa-me contente, não sinto que a Fundação EDP me esteja a tratar a mim como “pobrezinha” e, acima de tudo, não neutralisa a minha avaliação crítica da actuação da EDP como empresa ou do Estado no sector cultural. Vale a pena lembrar aqui uma outra referência de Pedro Gadanho na entrevista à revista Contemporânea: “EDP Renováveis é a terceira maior companhia de energias renováveis do mundo. É um facto muito importante mas do qual se fala pouco. Nesse sentido, gosto de alinhar estas temáticas com os temas do museu e ir buscar o trabalho de artistas também preocupados com essas questões.” Mais uma vez, parece-me ser um bom plano, uma boa e necessária ligação entre o posicionamento da empresa, da Fundação e do Museu.
Tudo isto será posto à prova, claro, a partir do momento que o museu iniciar a sua actividade em pleno. Há, no entanto, alguns pontos em relação ao que foi feito ou dito até agora sobre os quais gostaria de comentar:
Em primeiro lugar, não entendo e discordo com a “moda” da inauguração de museus não acabados. Inaugurações que obedecem a agendas políticas e que menosprezam os cidadãos (deste ponto de vista, achei um pouco infeliz a opção de Samuel Rego de nos lembrar no seu artigo de opinião a inauguração do – ainda inacabado – Museu Nacional dos Coches, que cobra bilhete para apresentar uma “exposição de coches” num armazém). No caso do MAAT, acho que se tratou, sobretudo, de um erro de julgamento e de uma consequente falha na comunicação. Parece-me muito bem abrir o novo edifício do museu para as pessoas se familiarizarem com ele, mas não com a pompa e circunstância com que se inaugura um museu acabado e, sobretudo, deixando muito claro na campanha de divulgação que se trata da abertura do edifício apenas. A instalação “Pynchon Park” na zona central não é suficiente, obviamente, para resolver a frustração de quem esteve na fila durante bastante tempo e que no final interroga: “É só isso?”.
Uma outra questão, que inicialmente me pareceu bem resolvida, é a da nova marca. Em Junho, com a reabertura da Central Tejo, a marca MAAT foi apresentada de forma muito firme. Para mim, o complexo passou a ser o MAAT e tudo o que vi a partir daí veio reforçar esta imagem, a nova identidade. Numa recente visita, no entanto, apercebi-me que a questão da identidade está longe de estar resolvida internamente, o que, nesta altura, é um pouco grave. Estava na Bilheteira do museu na Central Tejo, claramente sinalizada como “MAAT”, quando ouvi a funcionária a explicar a dois visitantes que “Este é o Museu da Electricidade” e que o MAAT (novo edifício) fica ao lado. Há trabalho ainda por fazer e é um trabalho fundamental. As equipas devem (e merecem) estar informadas, conscientes, seguras naquilo que fazem. Considerando o investimento feito na Comunicação (no que diz respeito à promoção), é pena não ter sido dada a atenção necessária no que diz respeito à comunicação interna. Muitas vezes, menos investimento em spots publicitários e cartazes e mais na preparação adequada da equipa de Comuncicação traz resultados melhores na Comunicação da instituição como um todo e a todos os níveis e pontos de contacto com o exterior.
Deixei para o fim um o ponto que mais me faz pensar e que está igualmente ligado à Comunicação: a forma como o novo museu (que pretende ser o “motor de um debate público” e ter “um papel ativo na produção de reflexão crítica”) se vai relacionar com os portugueses, com a comunidade local. O que me preocupa é que quando a questão é colocada ao director do museu, ele responde invariavelmente mencionando o sistema de “membership”. Assim, Pedro Gadanho disse à revista Contemporânea que pretende “conquistar um público local e fidelizá-lo” e que as responsabilidades do museu “têm que ver com o facto de se querer criar um acesso real à arte contemporânea”. Daí o programa que considera pioneiro de membership, pensado para “criar uma fidelização e um sentido de comunidade”. Também quando questionado pela Agenda Cultural, Pedro Gadanho referiu a “responsabilidade de democratizar o acesso à arte, tornar a arte mais compreensível, mais abraçável por um público mais generalizado. A responsabilidade é, também, dar a entender que a arte nos pode trazer algo a todos e que não é só uma linguagem estranha e muito elitista, só para um grupo de conhecedores.” Mas, logo a seguir, quando questionado sobre a forma como pretende atrair o público português, responde novamente “(...) criámos um membership, não para ser uma forma de retorno económico, mas sim uma forma de integrar as pessoas e de fazê-las sentir que o museu é delas. Desta forma, através de um preço simbólico anual, as pessoas poderão trazer alguém consigo, os jovens e as crianças já são gratuitos, por isso toda uma família pode vir com cartão de membership, que permite regressar a este espaço tantas vezes quanto desejarem.”
Será um erro, um erro ja demasiado comum, considerar que a principal barreira ao acesso é o preço do bilhete e que a relevância, o sentido de comunidade, são criados com descontos. É preciso um outro tipo de trabalho, é preciso humildade e coragem (como foi recentemente dito na conferência anual da Acesso Cultura), assim como um desejo honesto e genuino de comunicar com as pessoas, com os não especialistas, para que os profissionais dos museus possam ultrapassar os seus próprios tabús psicológicos e comunicar de forma simples, cativante e relevante com pessoas com diferentes origens e conhecimentos. A forma de fazer a ligação entre o que está a ser proposto pelo artista ou pela exposição e a vida dos habitantes desta cidade e de todos os outros visitantes será uma questão fundamental neste processo. A linguagem (habitualmente “estranha e muito elitista”, como diz Gadando) poderá constituir (e normalmente constitui) a primeira barreira. Mais do que pensar que o Serviço Educativo depois resolverá, porque “explicará” aos que não percebem (outro erro comum e uma visão muito redutora em relação ao papel do serviço educativo numa instituição cultural), haverá necessidade de comunicar a todos os níveis (desde o website, aos materiais promocionais, à informação disponibilizada na própria exposição), de uma forma clara e compreensível, conteúdos relevantes. As primeiras exposições temporárias na Central Tejo não dão indicações que esta seja a intenção do museu. Se a vontade de tornar este museu num motor de um debate público e num agente activo na produção de reflexão crítica, também para quem gosta de televisão e futebol, for genuína, o caminho terá que ser outro.
Fico a aguardar os próximos passos com renovada expectativa.

Ler ainda:
Maria Isabel Roque, MMAT, a montanha e o rato
Ana Carvalho, Museus e Pessoas: Pedro Gadanho. In Boletim ICOM Portugal, série III, n.º 6, Maio 2016

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