Saturday 23 March 2019

O grande privilégio da vida pública

Imagem do cartaz da peça "O casaco", apresentada em 2018 pelo Grupo de Teatro da Nova.

O recente episódio de blackface numa escola de Matosinhos e a forma como foi comentado são mais um indicador da falta preocupante de espaços de encontro (não virtuais) para o diálogo. Muitos não perceberam o porquê das críticas de racismo a propósito de uma iniciativa que pretendia celebrar a diversidade cultural (de “países” como África, China e Brasil) e acusaram os próprios críticos de racismo e promoção do ódio. A troca de comentários na página de Facebook Blackface Portugal é reveladora da incompreensão, e mesmo da ignorância, em torno desta matéria. Mas, podemos dizer que ficámos chocados ou surpreendidos? Não será essa uma realidade conhecida que, por muito que nos apeteça dizer “já deviam saber”, não lhe podemos virar as costas? Não podemos mesmo, porque continua a influenciar a educação, o pensamento e as noções que grande parte da nossa sociedade tem sobre esta matéria e várias outras. São estas noções que acabam por condicionar a liberdade de vários cidadãos e de perpetuar todos os tipos de racismo e, em certos casos, também a violência.

Este episódio deixou-me com uma grande dúvida que ainda não foi esclarecida: terá algum organismo do Estado (Ministério da Educação ou da Cultura, comissão responsável pelas políticas de cidadania e igualdade, etc.), associação, entidade cultural ou mesmo algum indivíduo (mãe, pai, activista) solicitado um encontro à referida escola e associação de pais no sentido de promover um diálogo sobre a controvérsia que se criou? As intervenções de Fernanda Câncio e de Ricardo Vita foram muito esclarecedoras e encontram-se, juntamente com outros artigos, no final deste texto. Mas o que se faz em relação a quem não ouve a TSF e não lê o Público? Tinha ficado com a mesma interrogação há mais ou menos um ano, quando os alunos do Grupo de Teatro da Nova foram apanhados de surpresa pelos ataques que receberam na véspera da estreia da peça “O Casaco”, devido ao cartaz do espectáculo. Terão aprendido ou compreendido algo graças à forma como foram atacados com adjectivos?

Colocada esta pergunta, tenho de fazer outra ainda: será que desejamos que haja lugares de encontro para o diálogo? Não estaremos a procurar o conforto da confirmação das nossas opiniões e noções, evitando espaços onde podemos ser confrontados por quem defende opiniões radicalmente contrárias? E quando estas opiniões são fundamentadas, sérias, expressas com paixão ou com sentimento de revolta, não nos apressamos a classificá-las como “agressivas” ou “violentas” e a colocá-las de lado?

Qual é a violência?

Em Fevereiro, a Acesso Cultura e o Teatro Griot organizaram o seminário “A presença negra na cultura em Portugal”. Soube que uma das pessoas presentes (branca) considerou o encontro violento. Achei curioso, uma vez que, apesar de ter havido alguns momentos intensos no debate, não houve algo que pudesse ser classificado como “violento”. Todas as pessoas que quiseram intervir falaram, ninguém foi interrompido ou silenciado, foram trocadas opiniões com civilidade. Outra pessoa que esteve presente (negra) disse-me que não gostou, que há sempre quem pretende desconstruir o discurso e que mais vale haver só uma pessoa a falar e não haver diálogo.

Onde está a violência aqui? Está no facto de não sermos capazes de reconhecer que nem toda a gente sabe o que nós sabemos ou vê o que nós vemos. Está no facto de sermos confrontados com a nossa própria ignorância. Está no desconforto criado pelo confronto de ideias, pelo questionamento frontal da nossa vivência dentro da bolha que criamos para podermos viver em paz - desejando que o mesmo aconteça com outros, mas não querendo ter nada a ver com isto. Mas a paz não se promove a partir das nossas bolhas. Tem mais probabilidades de acontecer quando as rompemos, quando procuramos honestamente conhecer o pensamento de outros, quando não descartamos simplesmente as suas opiniões apelidando-as de "racistas" e "ignorantes"; acontece quando arranjamos tempo para o conhecimento, quando valorizamos a razão e desenvolvemos a capacidade de mostrar empatia. Sim, somos racistas. Sim, somos ignorantes. E agora?

Li recentemente um artigo da filósofa e curadora Zofia Cielatkowska sobre o papel simbólico e comunal da praça pública na sociedade contemporânea polaca. Reflectindo sobre as manifestações no espaço público contra o governo nacionalista e cada vez mais autoritário  (manifestações que se tornam, às vezes, em actos desesperados de protesto, como a auto-imolação de Piotr Szczesny em 2017 pela liberdade e contra a xenofobia e o discurso de ódio), Cielatkowska diz: “O acto de protesto de Szczesny aconteceu neste espaço público e foi, com certeza, visível, mas como foi 'visto'? Como foi 'ouvido'? Tendo assistido a um contínuo de manifestações anti-autoritárias regulares em Varsóvia, começando em 2015, sinto que existem duas cidades, dois espaços existentes um dentro do outro. Os caminhos dos manifestantes e os caminhos dos transeuntes, ambos na mesma rua, mas que não se cruzam. Os protestos são visíveis, mas não são vistos, são fortes, mas não são ouvidos.”

No mesmo artigo, Cielatkowska lembra-nos que, na escrita de Hannah Arendt, o espaço público é descrito como uma esfera intrinsecamente ligada às pessoas, um terreno comum para ser visto e ouvido (o grande privilégio da vida pública, para os Gregos antigos). “Gostaria de enfatizar”, escreve, “a importância subtil da escolha de palavras de Arendt: ‘visto’ e ‘ouvido’ - e não, por exemplo, ‘o que é visível’ ou ‘o que é dito’ em público. ‘Visto’ e ‘ouvido’ enfatiza a actividade do indivíduo - o privilégio e o fardo do indivíduo para ser activo, para realmente ver e ouvir, e pensar, pensar criticamente. Contudo, as pessoas podem ser ignorantes, indiferentes, podem absorver os discursos dominantes sem reflexão, ou podem estar activas de maneira prejudicial; vários actos de incitação ao ódio, ao anti-semitismo, à xenofobia e assim por diante tornaram-se norma nos últimos anos.”

Lembro-me que a questão do lugar da fala, da voz e de ser ouvido, tinha sido abordada também por Grada Kilomba, no debate organizado no Teatro Maria Matos em 2017 (ver aqui). Falou na altura sobre a escuta e o silenciamento e questionou “quem pode efectivamente falar, o que acontece quando se fala e de que é que se pode falar”. Mais recentemente, Jean Wyllys (o deputado gay que procurou asilo fora do Brasil) falou em Lisboa do incómodo que alguém provoca quando sai do lugar de subalterno e chega ao lugar da fala; e ainda da inveja que o ex-subalterno provoca pela sua formação intelectual. Que grandes confrontos estes. E que grande violência, para alguns, estas pessoas que exigem ter voz, exigem ser ouvidas.

Cielatkowska lembra-nos ainda no seu artigo que Hannah Arendt acreditava que a realidade só é clara para nós e torna-se visível através da partilha de pensamentos com pessoas que têm diferentes perspectivas. Sem um terreno comum, que possa assumir a forma de uma praça pública, o que domina a conversação política são sentimentos, desejos e medos. Numa democracia madura, as pessoas com visões drasticamente opostas ainda devem poder encontrar-se e conversar.

Será a nossa democracia madura? Se a sua qualidade depende dos cidadãos, do nosso pensamento crítico, do nosso envolvimento informado, sabemos que não o é. E não irá melhorar se preferirmos continuar nas nossas bolhas a ouvir a nossa própria voz, determinados em silenciar outros – porque é isso mesmo que fazemos quando não nos mostramos dispostos a ouvir. Incomoda-nos a ignorância de alguns? Incomoda-nos, igualmente, o facto de outros saberem mais do que nós? Parafraseando Wayne Modest (sub-director do Tropenmuseum que fez uma brilhante comunicação ontem no seminário da Acesso Cultura “Descolonizar os museus”), se queremos comprometer-nos com certas causas, temos de nos comprometer com o desconforto. Temos de estar dispostos a encontrar-nos e a conversar, não em espaços virtuais onde não nos olhamos nos olhos, mas em pequenas ou grandes praças públicas. Temos de poder explicar o nosso ponto de vista e até voltar a dizer o que já se devia saber. E temos de estar dispostos a ouvir também. Não vamos poder melhorar a nossa democracia sem diálogo verdadeiro, desafiante, desconcertante, desconfortável. A democracia não beneficia da ignorância, assim como não beneficia da arrogância.



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