À Lambrina e ao Sam, à Eleni e ao Nikos
Aos bons amigos e às boas discussões
Aos bons amigos e às boas discussões
Em Junho passado, Sarah Huckabee Sanders, a secretária de
imprensa da Casa Branca, foi convidada a sair do restaurante Red Hen. O pedido
foi da dona do restaurante.
Em meados de Agosto, a notícia que Marine Le Pen,
ex-candidata à presidência de França e líder do partido político Rassemblement Nacional,
tinha sido convidada para participar no Web Summit em Lisboa provocou vários protestos
públicos. O convite acabou por ser retirado.
Ambos os incidentes levantaram questões relativas à
liberdade de expressão; se é possível combater visões políticas extremistas e
abordar as raízes da subida da extrema-direita proibindo ou ignorando certos
pontos de vista; e se, ao excluirmos algumas pessoas, não nos tornamos como elas.
Gostaria de começar pela questão da liberdade de expressão.
Há uns anos, aprendi com Shirin Ebadi (advogada iraniana de direitos humanos
e ganhadora do Prêmio Nobel da Paz) que existem limites à liberdade de expressão, reconhecidos por muitos
sistemas legais, particularmente quando esta entra em conflito com outros
direitos e liberdades. Ebadi discutia as caricaturas publicadas por um jornal
dinamarquês e que retratavam o profeta Maomé com uma bomba no lugar do turbante;
referiu-se especificamente à propaganda racista, ao ódio e ao incentivo à
guerra (atribuindo, nesse caso, responsabilidades por violações de direitos
humanos a ambos os lados).
Em 1859, o filósofo britânico John Stuart Mill, no seu
ensaio On Liberty, sugeriu que "o único propósito pelo qual o poder pode ser legitimamente
exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade,
é evitar danos a outros.” Com base neste “princípio de dano”, o artigo 10º da
Convenção Europeia dos Direitos Humanos esclarece que tipo de ‘dano’ poderia ser esse:
• interesses de segurança nacional
• integridade territorial ou segurança pública
• prevenção de desordem ou crime
• protecção da saúde ou moral
• protecção da reputação ou dos direitos dos outros
• impedir a divulgação de informações recebidas em sigilo
• manter a autoridade e imparcialidade do sistema judicial
São estes conceitos óbvios, que facilitam a avaliação e as
decisões? Não, aliás, estão cheios de nuances. O importante, no entanto, a meu
ver, é lembrar que a liberdade de expressão tem regras e limites, algo que,
para minha surpresa, raramente é referido quando esta questão está a ser discutida
publicamente.
O segundo ponto que gostaria de mencionar é que liberdade de
expressão não significa fornecer o palco e o microfone. Uma pessoa pode
acreditar e defender a liberdade de expressão, bem como estar aberta às
conversas difíceis, mas deve também estar ciente de que convidar alguém para o
palco e entregar-lhe um microfone pode ser uma maneira de legitimar ideias
falsas e até perigosas. Como foi escrito num artigo para Daily Kos:
"Qualquer um tem o direito de subir a um caixote na sua praça e cuspir
qualquer tolice que deseje, mas isso não é o mesmo que ter o direito a um
microfone e um pódio numa faculdade ou universidade [e podemos aqui adicionar a
sala de imprensa da Casa Branca ou o Web Summit]. Ao convidar alguém para esse
local, uma instituição está, essencialmente, a dizer que acredita que essa pessoa
tenha ideias que merecem uma discussão séria. Isso por si só dá um ar de
credibilidade e legitimidade a um orador e às suas ideias.”
Um terceiro ponto que gostaria de fazer é o da
reciprocidade. O jornalista Adam Gopnik escreveu sobre isso brilhantemente numa peça para o New Yorker sobre o caso Sanders/Red Hen: “Nada é mais
fundamental para as relações humanas do que decidir quem tem um lugar à mesa -
e nada é mais essencial à nossa ideia de humanismo do que expandir essa mesa,
simbolicamente e literalmente, adicionando cadeiras extra e lugares e
configurações como podemos. (...) A administração Trump é - de uma forma que é
específica das tiranias incipientes - um ataque à civilidade. Na medida em que
Trump tem alguma ideologia, é um ódio à civilidade - uma crença de que a decência
normal, dolorosamente desenvolvida ao longo dos séculos, é sinal de fraqueza
que oculta a ordem natural de dominação e submissão. É por isso que Trump
admira ditadores. Os seus valores são os dele; essa é a festa dele. E, para
acabar com o discurso normal da democracia, a administração Trump deve tornar
as mentiras respeitáveis - mentir não tacticamente, mas o tempo todo, sobre
tudo, de uma forma que não apenas degrada, mas destrói precisamente a mesa
comum do debate democrático. Esse é o papel escolhido por Sarah Huckabee
Sanders na vida - promover essas mentiras, tratar delas como se fossem verdade
e torná-las aceitáveis. (...) o princípio da reciprocidade é fundamental e gere
a prática da civilidade: o teu lugar à minha mesa implica o meu lugar na tua.
(…) Essa pessoa pediu-nos antecipadamente para ser excluída da nossa refeição
comum. Uma pessoa não pode cuspir nos pratos e depois pedir o seu jantar. A
melhor maneira de receber civilidade à noite é não a atacar o dia todo. É a simples
sabedoria da mesa.”
Concerto dos Pink Floyd em S. Petersburgo, Rússia, 30 de Agosto de 2018 (imagem retirada do Facebook) |
O meu ponto final é sobre essa “mesa comum do debate
democrático”, como diz Gopnik. Como podemos explicar a nossa insistente teimosia
em sermos ingénuos e defender o direito “democrático” à liberdade de expressão
para os que promovem o ódio, para os racistas e para aqueles que usam as regras
democráticas para enfraquecer a democracia uma vez no poder? Porquê estamos
dispostos a tolerar o intolerante? Não aprendemos nada com a história?
Em Porque é que não aprendemos com a História?, B.H. Liddell Hart desenha de uma forma clara o padrão da ditadura:
“Aprendemos com a história que os tiranos que se fizeram por
si próprios seguem um padrão.
Para ganhar poder:
• Exploram, consciente ou inconscientemente, um estado de
insatisfação popular com o regime existente ou de hostilidade entre diferentes
sectores da população.
• Atacam violentamente o regime existente e combinam o seu apelo
ao descontentamento com promessas ilimitadas (as quais, se bem-sucedidos,
cumprem apenas de forma limitada).
• Alegam que querem poder absoluto por pouco tempo (mas
"descobrem" subsequentemente que a hora de desistir nunca chega).
• Excitam a simpatia popular ao apresentarem a imagem de uma
conspiração contra eles e usam isso como uma alavanca para ganhar um apoio mais
firme numa fase crucial.
Ao ganharem o poder:
• Começam logo a livrar-se dos seus principais assistentes,
“descobrindo” que aqueles que provocaram a nova ordem de repente se tornaram
traidores.
• Reprimem as críticas com um pretexto ou outro e punem
qualquer pessoa que mencione factos que, por mais verdade que sejam, são
desfavoráveis à sua política.
• Têm a religião do seu lado, se possível, ou, se os seus
líderes não estiverem em conformidade, promovem um novo tipo de religião
subserviente aos seus fins.
• Gastam de forma abundante dinheiro público em obras
materiais impressionantes, em compensação pela liberdade de espírito e
pensamento que roubaram ao público.
• Manipulam a moeda para fazer a posição económica do estado
parecer melhor do que é na realidade.
• Acabam por fazer guerra com um outro estado como um meio para
desviar a atenção das condições internas e permitir que o descontentamento
exploda para fora.
• Usam o grito do patriotismo como um meio para tornar
firmes as correntes da sua autoridade pessoal sobre o povo.
• Expandem a super-estrutura do estado, enquanto minam as suas
fundações – alimentando sicofantas à custa de colaboradores que se respeitam,
apelando ao gosto popular por valores grandiosos e sensacionais em vez de
verdadeiros, e promovendo uma visão romântica em vez de realista, garantindo
assim o colapso final, sob os seus sucessores, se não forem eles próprios, do
que eles criaram”.
Imagem retirada do Facebook |
Trump, Putin, Erdogan, Orbán, Kaczýnski, Le Pen, Farage, Bolsonaro... A lista pode ser longa... Podemos fingir ser ingénuos em 2018? Stephanie Wilkinson, proprietária do restaurante Red Hen, disse que “este parece ser o momento na nossa democracia em que as pessoas têm que tomar medidas e decisões desconfortáveis para sustentar a sua moral”. A académica e jornalista britânica-indiana Ash Sarkar escreveu recentemente no The Guardian que esta “não é apenas uma guerra cultural” e pediu um movimento anti-fascista radical “agora mesmo”. Disse: “Precisamos de uma rede anti-racista realmente radical que seja capaz de mobilizar a oposição maciça quando a extrema direita marcha, além de poder inserir-se nas comunidades para frustrar a capacidade da extrema direita de se apresentar como o defensor da oprimida classe operária. (...) É importante perceber que a oposição ao racismo não envolve apenas a apresentação de um conjunto alternativo de valores; trata-se de ver como a extrema-direita joga com as dificuldades das pessoas para alimentar um sentimento de inimizade entre os brancos e os que são racializados como migrantes. (…) Ao abordarem as condições económicas imediatas dos bairros ao seu redor, os activistas anti-racistas podem juntar comunidades aparentemente em conflito e fechar as rachas onde a extrema direita é capaz de se organizar”.
Ainda assim, para mim é também sobre Cultura. Preparando-me para
o Warsaw Forum - onde vamos discutir "Envolvimento dos públicos, políticas
culturais e democracia" – os meus pensamentos são exactamente sobre o
nosso papel como profissionais da cultura em fazer espaço à mesa para aqueles
que se sentem excluídos, ameaçados, sem esperança e esquecidos; em ajudar as
pessoas a se sentirem fortalecidas e capazes de imaginar; em fazê-las perceber
o que elas podem fazer, individual e colectivamente, mesmo numa escala pequena,
a fim de construir melhores comunidades, uma melhor democracia. Livres do medo.
Não podemos fingir ser ingénuos em 2018.
Ainda neste blog:
Mais leituras:
João Miguel Tavares, Marine le Pen na Web Summit - será quepode?
Rui Tavares, Le Pen non grata em Portugal? É a soberanianacional
Fernanda Câncio, Sim, eu censuro Le Pen. Dão licença?
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