Sunday, 2 September 2018

Quem é bem-vindo à sua casa e à sua mesa?


À Lambrina e ao Sam, à Eleni e ao Nikos
Aos bons amigos e às boas discussões



Em Junho passado, Sarah Huckabee Sanders, a secretária de imprensa da Casa Branca, foi convidada a sair do restaurante Red Hen. O pedido foi da dona do restaurante.

Em meados de Agosto, a notícia que Marine Le Pen, ex-candidata à presidência de França e líder do partido político Rassemblement Nacional, tinha sido convidada para participar no Web Summit em Lisboa provocou vários protestos públicos. O convite acabou por ser retirado.

Ambos os incidentes levantaram questões relativas à liberdade de expressão; se é possível combater visões políticas extremistas e abordar as raízes da subida da extrema-direita proibindo ou ignorando certos pontos de vista; e se, ao excluirmos algumas pessoas, não nos tornamos como elas.

Gostaria de começar pela questão da liberdade de expressão. Há uns anos, aprendi com Shirin Ebadi (advogada iraniana de direitos humanos e ganhadora do Prêmio Nobel da Paz) que existem limites à liberdade de expressão, reconhecidos por muitos sistemas legais, particularmente quando esta entra em conflito com outros direitos e liberdades. Ebadi discutia as caricaturas publicadas por um jornal dinamarquês e que retratavam o profeta Maomé com uma bomba no lugar do turbante; referiu-se especificamente à propaganda racista, ao ódio e ao incentivo à guerra (atribuindo, nesse caso, responsabilidades por violações de direitos humanos a ambos os lados).

Em 1859, o filósofo britânico John Stuart Mill, no seu ensaio On Liberty, sugeriu que "o único propósito pelo qual o poder pode ser legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é evitar danos a outros.” Com base neste “princípio de dano”, o artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos esclarece que tipo de ‘dano’ poderia ser esse:

• interesses de segurança nacional
• integridade territorial ou segurança pública
• prevenção de desordem ou crime
• protecção da saúde ou moral
• protecção da reputação ou dos direitos dos outros
• impedir a divulgação de informações recebidas em sigilo
• manter a autoridade e imparcialidade do sistema judicial

São estes conceitos óbvios, que facilitam a avaliação e as decisões? Não, aliás, estão cheios de nuances. O importante, no entanto, a meu ver, é lembrar que a liberdade de expressão tem regras e limites, algo que, para minha surpresa, raramente é referido quando esta questão está a ser discutida publicamente.

O segundo ponto que gostaria de mencionar é que liberdade de expressão não significa fornecer o palco e o microfone. Uma pessoa pode acreditar e defender a liberdade de expressão, bem como estar aberta às conversas difíceis, mas deve também estar ciente de que convidar alguém para o palco e entregar-lhe um microfone pode ser uma maneira de legitimar ideias falsas e até perigosas. Como foi escrito num artigo para Daily Kos: "Qualquer um tem o direito de subir a um caixote na sua praça e cuspir qualquer tolice que deseje, mas isso não é o mesmo que ter o direito a um microfone e um pódio numa faculdade ou universidade [e podemos aqui adicionar a sala de imprensa da Casa Branca ou o Web Summit]. Ao convidar alguém para esse local, uma instituição está, essencialmente, a dizer que acredita que essa pessoa tenha ideias que merecem uma discussão séria. Isso por si só dá um ar de credibilidade e legitimidade a um orador e às suas ideias.”

Um terceiro ponto que gostaria de fazer é o da reciprocidade. O jornalista Adam Gopnik escreveu sobre isso brilhantemente numa peça para o New Yorker sobre o caso Sanders/Red Hen: “Nada é mais fundamental para as relações humanas do que decidir quem tem um lugar à mesa - e nada é mais essencial à nossa ideia de humanismo do que expandir essa mesa, simbolicamente e literalmente, adicionando cadeiras extra e lugares e configurações como podemos. (...) A administração Trump é - de uma forma que é específica das tiranias incipientes - um ataque à civilidade. Na medida em que Trump tem alguma ideologia, é um ódio à civilidade - uma crença de que a decência normal, dolorosamente desenvolvida ao longo dos séculos, é sinal de fraqueza que oculta a ordem natural de dominação e submissão. É por isso que Trump admira ditadores. Os seus valores são os dele; essa é a festa dele. E, para acabar com o discurso normal da democracia, a administração Trump deve tornar as mentiras respeitáveis ​​- mentir não tacticamente, mas o tempo todo, sobre tudo, de uma forma que não apenas degrada, mas destrói precisamente a mesa comum do debate democrático. Esse é o papel escolhido por Sarah Huckabee Sanders na vida - promover essas mentiras, tratar delas como se fossem verdade e torná-las aceitáveis. (...) o princípio da reciprocidade é fundamental e gere a prática da civilidade: o teu lugar à minha mesa implica o meu lugar na tua. (…) Essa pessoa pediu-nos antecipadamente para ser excluída da nossa refeição comum. Uma pessoa não pode cuspir nos pratos e depois pedir o seu jantar. A melhor maneira de receber civilidade à noite é não a atacar o dia todo. É a simples sabedoria da mesa.”

Concerto dos Pink Floyd em S. Petersburgo, Rússia, 30 de Agosto de 2018 (imagem retirada do Facebook)

O meu ponto final é sobre essa “mesa comum do debate democrático”, como diz Gopnik. Como podemos explicar a nossa insistente teimosia em sermos ingénuos e defender o direito “democrático” à liberdade de expressão para os que promovem o ódio, para os racistas e para aqueles que usam as regras democráticas para enfraquecer a democracia uma vez no poder? Porquê estamos dispostos a tolerar o intolerante? Não aprendemos nada com a história?

Em Porque é que não aprendemos com a História?, B.H. Liddell Hart desenha de uma forma clara o padrão da ditadura:

“Aprendemos com a história que os tiranos que se fizeram por si próprios seguem um padrão.

Para ganhar poder:

• Exploram, consciente ou inconscientemente, um estado de insatisfação popular com o regime existente ou de hostilidade entre diferentes sectores da população.
• Atacam violentamente o regime existente e combinam o seu apelo ao descontentamento com promessas ilimitadas (as quais, se bem-sucedidos, cumprem apenas de forma limitada).
• Alegam que querem poder absoluto por pouco tempo (mas "descobrem" subsequentemente que a hora de desistir nunca chega).
• Excitam a simpatia popular ao apresentarem a imagem de uma conspiração contra eles e usam isso como uma alavanca para ganhar um apoio mais firme numa fase crucial.

Ao ganharem o poder:

• Começam logo a livrar-se dos seus principais assistentes, “descobrindo” que aqueles que provocaram a nova ordem de repente se tornaram traidores.
• Reprimem as críticas com um pretexto ou outro e punem qualquer pessoa que mencione factos que, por mais verdade que sejam, são desfavoráveis ​​à sua política.
• Têm a religião do seu lado, se possível, ou, se os seus líderes não estiverem em conformidade, promovem um novo tipo de religião subserviente aos seus fins.
• Gastam de forma abundante dinheiro público em obras materiais impressionantes, em compensação pela liberdade de espírito e pensamento que roubaram ao público.
• Manipulam a moeda para fazer a posição económica do estado parecer melhor do que é na realidade.
• Acabam por fazer guerra com um outro estado como um meio para desviar a atenção das condições internas e permitir que o descontentamento exploda para fora.
• Usam o grito do patriotismo como um meio para tornar firmes as correntes da sua autoridade pessoal sobre o povo.
• Expandem a super-estrutura do estado, enquanto minam as suas fundações – alimentando sicofantas à custa de colaboradores que se respeitam, apelando ao gosto popular por valores grandiosos e sensacionais em vez de verdadeiros, e promovendo uma visão romântica em vez de realista, garantindo assim o colapso final, sob os seus sucessores, se não forem eles próprios, do que eles criaram”.

Imagem retirada do Facebook

Trump, Putin, Erdogan, Orbán, Kaczýnski, Le Pen, Farage, Bolsonaro...
A lista pode ser longa... Podemos fingir ser ingénuos em 2018? Stephanie Wilkinson, proprietária do restaurante Red Hen, disse que “este parece ser o momento na nossa democracia em que as pessoas têm que tomar medidas e decisões desconfortáveis ​​para sustentar a sua moral”. A académica e jornalista britânica-indiana Ash Sarkar escreveu recentemente no The Guardian que esta “não é apenas uma guerra cultural” e pediu um movimento anti-fascista radical “agora mesmo”. Disse: “Precisamos de uma rede anti-racista realmente radical que seja capaz de mobilizar a oposição maciça quando a extrema direita marcha, além de poder inserir-se nas comunidades para frustrar a capacidade da extrema direita de se apresentar como o defensor da oprimida classe operária. (...) É importante perceber que a oposição ao racismo não envolve apenas a apresentação de um conjunto alternativo de valores; trata-se de ver como a extrema-direita joga com as dificuldades das pessoas para alimentar um sentimento de inimizade entre os brancos e os que são racializados como migrantes. (…) Ao abordarem as condições económicas imediatas dos bairros ao seu redor, os activistas anti-racistas podem juntar comunidades aparentemente em conflito e fechar as rachas onde a extrema direita é capaz de se organizar”.

Ainda assim, para mim é também sobre Cultura. Preparando-me para o Warsaw Forum - onde vamos discutir "Envolvimento dos públicos, políticas culturais e democracia" – os meus pensamentos são exactamente sobre o nosso papel como profissionais da cultura em fazer espaço à mesa para aqueles que se sentem excluídos, ameaçados, sem esperança e esquecidos; em ajudar as pessoas a se sentirem fortalecidas e capazes de imaginar; em fazê-las perceber o que elas podem fazer, individual e colectivamente, mesmo numa escala pequena, a fim de construir melhores comunidades, uma melhor democracia. Livres do medo.

Não podemos fingir ser ingénuos em 2018.


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