Grada Kilomba, The Kosmos 2 (Detail) © Esra Rotthoff, courtesy of Maxim Gorki Theatre. (imagem retirada do website Contemporary And) |
Há umas semanas, apareceu no Público um artigo intitulado Grada Kilomba é a artista que Portugal precisa de ouvir. Até lá, nunca tinha ouvido falar de Grada Kilomba. Na semana que passou, foram inauguradas duas exposições da artista em Lisboa, aparentemente as primeiras na sua terra natal, apesar de Grada Kilomba já ter uma carreira intensa no estrangeiro. Um facto “perversamente coerente”, como dizia o Público, porque “entrar no trabalho de Grada Kilomba – nas suas instalações de vídeo e som, nas suas performances, nas suas leituras encenadas, nos seus textos – é ter de lidar com a história violenta do colonialismo e pós-colonialismo, história na qual Portugal está profundamente entranhado mas que teima em fingir que não é nada com ele.”
Lembro-me ainda do choque
e de alguma dor que senti quando fui pela primeira vez confrontada com uma
versão “outra” da história do meu país, diferente daquela que me tinha sido
ensinada na escola ou que partilhávamos em casa (escrevi sobre isso no post As histórias que contamos a nós próprios). Hoje, quando isto acontece, não fico
chocada, mas ainda, de vez em quando, sinto dor. E também algum prazer
intelectual, por me sentir desafiada e por continuar a aprender e a descobrir
outras versões e, em última análise, outras pessoas.
Lisboa – Capital Ibero-Americana de Cultura 2017 colocou firmemente as questões da
escavatura, do colonialismo, do pós-colonialismo e do racismo no centro da
nossa reflexão. As várias entidades culturais e outras que aceitaram o desafio
têm respondido com menor ou maior eficácia – e talvez também honestidade, quanto
à intenção de discutir estes temas. Uma das primeiras exposições que vi, por
exemplo, foi a do Museu Nacional de Arqueologia, com o título curioso Um Museu. Tantas coleções. O
Museu afirma no seu website que o
projecto da Câmara Municipal de Lisboa Testemunhos da Escravatura – Memória Africana foi um “Projecto motivador que conduziu à
revisão e reapreciação de Coleções menos conhecidas deste Museu”. Como
visitante, não consegui identificar ou apreciar os resultados desse trabalho,
dado que as legendas da exposição limitavam-se a uma simples descrição dos
objectos expostos. Podemos, realmente, reflectir sobre e debater a escravatura
– a deshumanização e a dor que causou e continua a causar - através de textos
como o da imagem que se
apresenta em baixo?
Legenda digital da exposição do Museu Nacional de Arqueologia (clicar na imagem para aumentar) |
Voltando agora à Grada Kilomba, no passado Sábado visitei a
exposição Secrets to Tell no MAAT. Uma
exposição pequena e rica, uma boa introdução, para mim que não conhecia o seu
trabalho, ao universo da artista, ao seu pensamento, às suas formas de se
exprimir, às questões que procura debater connosco. No entanto, quando o
visitante entra na exposição (seguindo o percurso mais habitual, que é descendo
a rampa ou a escadaria da Galeria Oval) não encontra o texto introdutório da
exposição, como faria sentido (e como acontece, aliás, se a entrada for outra,
no entanto, contrária ao sentido habitual da visita). Primeiro, portanto, temos
os vídeos da leitura encenada de Plantation
Memories, depois encontramos a peça Table
of Goods e só depois vemos, no fundo, o texto introdutório da exposição.
Nessa altura, já alguns visitantes passaram ao lado de Table of Goods, peça sobre a qual o museu pouco tem a dizer ao
visitante (ver tabela em baixo), e já exclamaram “Isto é que é arte?”. Se a
intenção do museu, de qualquer museu, é envolver na reflexão pessoas que já
estudaram em casa antes de vir, nada do que disse aqui é particularmente
relevante. Mas se não é – e penso que não é – a forma de expor e o que se diz
sobre as peças expostas deve ser repensado. Devo também dizer que considerei o
texto introdutório do MAAT muito bom - para mim, com trabalho de casa feito -,
mas, para poder envolver mais pessoas, a sua linguagem, extensão e apresentação
gráfica teriam também que ser repensadas (ver imagem em baixo).
Tabela da obra "Table of Goods", MAAT ((clicar na imagem para aumentar) |
Texto introdutório da exposição "Secrets to Tell", MAAT (clicar na imagem para aumentar) |
Logo a seguir à exposição, fui assistir à conversa de Grada Kilomba com Carla Fernandes (activista, jornalista e responsável pelo
radio-blog Afrolis) no Teatro Maria
Matos. Com
esta conversa, encerra o ciclo Descolonização, promovido por este teatro. Um ciclo que procurou abordar, conforme explica na
brochura a curadora Liliana Coutinho, duas libertações: a das terras ocupadas
por Portugal, há mais de 40 anos, e a do pensamento e do comportamento, que
alimentaram a cultura colonial e as relações de desigualdade e de exploração, e
que persistem.
A primeira impressão, enquanto estava ainda à espera para
entrar na sala, é que nunca tinha visto tanta gente negra no Maria Matos. Mesmo
quando foi o espectáculo Libertação,
há pouco tempo, e mesmo quando foi o Moçambique,
no ano passado. Fiquei, por isso, a pensar se o facto de estes serem trabalhos
de artistas brancos, e apesar de envolverem intérpretes negros, significa que
não são suficientemente convidativos ou interessantes para os negros ou se não
se sentem sequer bem-vindos. E o que é que terá feito a diferença neste caso? A
Grada Kilomba, que, até há pouco tempo, poucos conhecíamos? Talvez a comunidade
negra a conhecesse há mais tempo? Ou terá sido o facto da conversa ser moderada
por uma jornalista e activista negra, que trouxe o seu público? Penso que
valeria a pena tentar perceber melhor porque é que a comunidade negra aceitou
este convite e não outros, por muito que se possa pensar que a temática lhes
fosse relevante.
Li mais tarde que Mamadou Ba também comentou sobre esta
presença negra na sua página no Facebook: “A
questão do lugar é das mais centrais no debate sobre o racismo em sociedades
onde a colonialidade assume relevância cultural. Por ela e através dela passam
muitas disputas epistemológicas, teóricas, doutrinárias e ideológicas que
ultrapassam o debate da mera formulação teórica da descolonização. E, hoje na
conversa entre a Carla Fernandes e a Grada Kilomba, sem menosprezar as várias
possibilidades de debate que daí surgiram e são muitas, ficou-me na retina a
presença significativa do corpo negro num espaço
tradicionalmente de privilégio branco. (...) Ficou claro que não faltam Negras
e Negros que querem e podem falar de si, sobre si, sobre e com a sociedade e o
seu olhar sobre eles/as. Os sujeitos racializados Negros afirmam assim, com a
escolha do momento, da força e da circunstâncias do seu aparecimento no espaço
público, uma posição política clara. Mais do que objectos históricos de uma
condição histórica determinada, são sujeitos políticos que lutam pela sua
afirmação.” Aqui temos uma primeira resposta, que foi, para mim, reveladora, mas
que não responde a todas as perguntas acima colocadas. Por isso, repito que
valeria a pena tentar perceber melhor.
Em relação à conversa em si, durou cerca de duas horas, mas
confesso que a primeira parte (até o público começar a intervir) teve pouco
interesse para mim. Em vez de se falar de Grada Kilomba (pessoa – mulher –
negra – académica – artista), falou-se demasiado, na minha opinião, de obras
concretas presentes nas duas exposições em Lisboa, que, por terem sido
inauguradas dois dias antes, não tinham sido ainda vistas por muitos dos
presentes. Esta parte da conversa trouxe-nos pouco. Tivemos a oportunidade de
conhecer melhor Grada Kilomba, o seu pensamento e forma de estar na vida,
graças também às perguntas /partilhas de alguns membros do público, “perguntas
– poemas”. Fiquei, sinceramente, impressionada: pela sua forma de estar, a voz,
a expressão contida mas não, por isso, menos emocionante, e sobretudo pela
escolha de palavras e a forma como as proferia. Um pensamento claro, sólido,
sensível, informado, realista e honesto.
O terceira impressão que me ficou dessa conversa tem a ver
com a escuta e o silenciamento, de que tanto se falou naquelas duas horas. Tem
a ver, nas palavras de Grada Kilomba na brochura do teatro, com o “quem pode
efectivamente falar, o que acontece quando se fala e de que é que se pode
falar”. A última intervenção do público, muito próximo do encerramento, veio da
parte de uma senhora que afirmou “não ter percebido” se a Grada Kilomba
considerou que não podia ser professora universitária em Portugal por ser
negra. Muito rapidamente se percebeu que se tratava de uma pergunta retórica. O
que a senhora quis partilhar foi a sua ideia de que Portugal não está assim tão
mal, porque há uma professora negra na Facudade de Letras, porque houve o
espectáculo Libertação no Maria Matos
e Os Negros no Teatro São Luiz. De
imediato, surgiram vozes na sala a contrariar a senhora. Pediu para a deixarem
falar, disse: “Deixem-me falar, por favor, porque quando o ‘outro’ começa a falar...”.
Foi interropida mais duas ou três vezes. A moderadora não interveio, a não ser
para lhe pedir para ser mais breve.
Ficou-me o pomenor de ela se ter colocado no lugar de
‘outro’. Sabia, claro, que o que estava a dizer não reuniria consenso. Quis provocar?
Estava a partilhar uma opinião sincera? De qualquer das formas, as repetidas
tentativas de interrupção deixaram-me incomodada. E talvez não tanto a reacção
de pessoas que estão fartas de ouvir certas coisas, mas a não intervenção da
moderadora no sentido de defender, perante a maioria - que se sentiu forte,
como todas as maiorias-, o direito de falar.
Uma das principais preocupações das entidades culturais que
querem fazer parte do debate público sobre uma série de questões que dividem as
sociedades é como envolver quem tem uma opinião contrária. Se o objectivo é
promover um diálogo que possa fazer as pessoas repensar algumas das suas
ideias, perante outros factos, conhecendo de perto outras pessoas, não se pode
desejar conversas de consenso. Por muito pouco interessantes ou inteligentes
que as opiniões contrárias possam parecer. Sentimo-nos todos mais confortáveis
no meio de pessoas que pensam como nós, que reforçam as nossas convicções. Mas
pouco ou nada vamos conseguir mudar se não permitirmos ao ‘outro’ falar e ser
ouvido. Se a senhora que colocou a questão nos deu rapidamente a conhecer o seu
ponto de vista, deu-nos também a entender que passou duas horas exposta a
opiniões que contrariam a sua visão. Mas ficou para ouvir e não interrompeu
ninguém. Aliás, teve a coragem de ir assistir a uma conversa que se sabia a priori que não ia ao encontro do seu
ponto de vista, da sua visão do mundo. Mas foi; e já tinha visitado as
exposições; e disse ainda que, depois de ter ouvido a Grada Kilomba, voltaria a
visitá-las. Não é isso que se pretende? Não será esta também uma pessoa que
precisamos de ouvir? Por muito que nos custe? Por muito que nos irrite?
Acredito que esteja a olhar para tudo isto da forma fria
(ou serena) como quem não vive o racismo na pele possa ter. No entanto, acredito
na Cultura como um espaço de encontro. Não para conversas neutras ou de
consenso, como a maioria dos espaços culturais nos tem habituado, mas para
conversas de confronto, apaixonadas, intensas, onde o direito de falar seja defendido
e respeitado e onde haja capacidade de gerir uma pequena ou grande provocação
ou uma honesta opinião contrária. Acredito que a resposta da Grada Kilomba,
assim como as suas Plantation Memories,
terão abalado um pouco a visão da senhora que colocou a pergunta. Mais, muito
mais, do que as vozes que tentaram silenciá-la.
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