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Sophia Linospori e Konstantina Mauropoulou em "A máquina de lavar roupa" de Thanasis Triaridis |
No mês passado, tive a oportunidade de ver a peça de Thanasis Triaridis “A máquina de lavar roupa”. Duas mães encontram-se três vezes numa lavandaria pública. No primeiro encontro, a mãe A parece perturbada, chocada, profundamente triste: no dia anterior, o seu filho teve a “honra” de realizar a decapitação pública de uma rapariga. A mãe B parece feliz e satisfeita, felicita a mãe A pelo filho e responde à sua preocupação dizendo-lhe que o seu filho fez algo nobre, obedeceu à lei e a lei cuida de todos. A lei diz que as raparigas não são úteis e, por isso, têm de ser eliminadas.
No segundo encontro, algum tempo depois, a mãe A está
sobretudo preocupada com a falta de raparigas. O que isto significará para o
futuro do seu filho como decapitador? Ambas as mães parecem estar à vontade, ambas habituadas à
ideia de que a lei existe para o bem geral.
Terceiro encontro: a mãe B está perturbada, em desespero,
em agonia. O seu filho é o próximo a ser decapitado publicamente. Não é
inteligente, tem algum tipo de deficiência intelectual (?), não é útil. A Mãe A
acredita firmemente que isto é a coisa certa a fazer, é a lei. Diz que
compreende como a mãe B se está a sentir, mas, é para o bem comum e, afinal,
pode tentar ter outro filho e ter mais sorte da segunda vez.
A peça de Triaridis, bem como o livro de Paul Lynch “Prophet
song” (um conto sobre a Irlanda a cair no totalitarismo – Booker Prize
2023), fizeram-me sentir claustrofóbica, ansiosa, transmitiram-me um sentimento
de impotência. Assim como as primeiras semanas da presidência de Donald Trump e
a avalanche de ordens executivas, algumas das quais constituem um ataque direto
aos direitos humanos e à humanidade da sociedade. Estamos a observar um homem
numa grande democracia a ver-se como rei e a governar como um tirano. Os Republicanos
no Congresso parecem ter-se habituado rapidamente a isso. Como
escreveu Jason Linkins em The New Republic, “a retirada total do governo do
Partido Republicano está quase completa, e estão cada vez mais determinados a
empurrar todo o poder legislativo para a irrelevância funcional”. Eles
habituaram-se; nós não devemos habituar-nos.
Enquanto somos bombardeados por notícias sobre tudo o que
Trump e os seus comparsas dizem ou fazem, sentindo-nos ansiosos, impotentes,
negativos, cansados e a pensar que não vale a pena lutar, estamos a ignorar
os sinais e as atitudes de esperança. Esta situação não está a passar sem contestação.
Rebecca Solnit, autora de “Hope
in the Dark”, dá-nos doses de esperança todos os dias através das suas
redes sociais. Atos de resistência menores ou maiores, aos quais acredito que
os media deveriam prestar mais atenção, caso quisessem ser algo mais do que o altifalante
do tirano.
Confesso que fiquei surpreendida com a rápido cumprimento por
organizações como a National
Gallery of Art ou a Smithsonian
Institution da ordem executiva de Trump que exigia o fim imediato dos
programas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) em todas as agências e
entidades federais, referindo-se a eles como "programas de discriminação
ilegal e imoral" e ameaçando retirar o financiamento federal. Não percebi
por que razão obedeceram tão rápido. Sim, é uma ordem e recebem financiamento
federal. A governadora de Maine, Janet Mills, por
exemplo, respondeu ao presidente que apenas cumpre as leis estaduais e federais
e que o levará a tribunal.
Alguns dias depois das primeiras notícias sobre os museus, tentando
reflectir sobre a sua actuação, pensei que fizeram o que foram mandados, mas
eliminar algumas palavras “perigosas” como “diversidade, equidade, inclusão”
dos seus sites não significa que não vão continuar com o trabalho que estão a
fazer. Depois,
chegou a notícia de que o Stonewell National Monument apagou as referências a
pessoas transgénero ou queer do seu website, eliminando, assim, as pessoas
que realmente tiveram algo a ver com a existência deste monumento nacional nos
dias de hoje.
Neste momento, continuando a reflectir sobre estes casos, espero,
por um lado, que ao longo dos anos as políticas e programas DEIA (vamos incluir
‘acesso’, é importante) tenham trazido alguma mudança sistémica nas
organizações – de modo a que não seja necessário mencionar algumas palavras. Mas,
pergunto-me também porque é que as organizações culturais que recebem
financiamento federal não pediram alguns esclarecimentos ao Presidente antes de
implementar a ordem executiva. O que é a “ideologia de género”, por exemplo?
Jon Jarvis, antigo diretor do Serviço Nacional de Parques dos EUA, fez
exactamente isso e duvido que tenha obtido resposta.
Rebecca
Solnit comentou recentemente que “O que eles pensam ser o poder investido
neles não está neles; na verdade, é a disposição das pessoas para obedecer às
suas ordens. Até agora o tribunal mandou foder-se muitas das suas ordens. Sem
obediência são indefesos.”
Há muitas formas de resistir. Está a acontecer e todos nós
devemos dar uma projeção maior a isto, precisamos disto. Conforme
noticiou The New Republic, “Não obedeçam antecipadamente” (o conselho que o
historiador Timothy Snyder deu aos cidadãos consternados após a primeira
eleição de Trump) voltou, faz parte das manifestações de funcionários de
universidades ou hospitais.
The
Playwrights’ Center em Minneapolis, que recebeu ordens do National
Endowment for the Arts para cessar a operação de "quaisquer programas que
promovam 'diversidade, equidade e inclusão'", anunciou que recusará
financiamento federal e acrescentou: "Retórica de ódio e políticas como
estas não têm lugar nas nossas comunidades artísticas; o que eles chamam de
'DEI' é o que chamamos de nossos valores. Identificamos e elevamos artistas que
foram historicamente marginalizados e apoiamos materialmente a sua capacidade
de criar o seu trabalho transformador do mundo, ponto final."
A Alfred Street Baptist Church, uma histórica igreja negra em
Alexandria (Washington DC), cancelou o seu concerto no Kennedy Center (que foi tomado
por Trump), afirmando
que "Acreditamos que a oposição da nova liderança, em relação à longa
tradição do Kennedy Center de honrar a expressão artística de todas as origens,
está desalinhada com a nossa inabalável missão de proclamar e praticar o amor
transformador e redentor de Jesus, de procurar a justiça, de promover a
igualdade, de abraçar o dom da diversidade e de cuidar de toda a criação. Muitos
outros cancelamentos ocorreram, ao mesmo tempo que a
nova liderança do Kennedy Center programou um concerto do coro J6 Prison Choir,
formado por homens que foram presos pelo seu envolvimento no ataque ao
Capitólio a 6 de janeiro de 2021, rapidamente perdoados assim que Trump tomou
posse.
No seu discurso sobre o Estado do Estado, o
Governador de Illinois, JB Pritzker, lembrou a sua
audiência que “a tirania exige medo, silêncio e obediência. A democracia exige
coragem.” (se não quiser ver tudo, veja a partir dos 29:40). Judith Butler lembra-nos
que
Trump (e outros), em alguns casos, fazem declarações para testar as coisas e,
muitas vezes, dão um passo atrás. Mas ela diz também que “noutros casos, a
afirmação ultrajante é a sua própria realização. Desafia a vergonha e as
restrições legais para mostrar a sua capacidade para o fazer, o que demonstra
ao mundo um sadismo descarado.” E tal como Butler afirma que “Acumular poder
autoritário depende em parte da vontade do povo em acreditar no poder
exercido”, Ezra Klein, num artigo para o The New York Times, diz-nos “Don’t believe him”
(Não
acreditem nele): “Trump está a agir como um rei porque é demasiado fraco para
governar como um presidente. Está a tentar substituir a percepção pela
realidade. Ele espera que essa percepção se torne realidade. Isso só pode
acontecer se acreditarmos nele.”
Muitas vezes presto muita atenção ao que acontece nos EUA,
no campo cultural e não só. Porque sei que, mais cedo ou mais tarde, algumas
coisas vão chegar ao nosso lado. Também porque, da forma como o nosso mundo funciona, o voto de alguém no Texas afecta-nos a todos. Jane Fonda, ao
aceitar o prémio Screen Actors Guild pela sua carreira, perguntou aos
seus colegas: “Alguém de vós já assistiu a um documentário sobre um dos
grandes movimentos sociais, como o Apartheid, ou o Movimento dos Direitos Civis
ou Stonewell, e se perguntou se teria sido suficientemente corajoso para
caminhar sobre a ponte? Teria conseguido enfrentar as mangueiras, os bastões e
os cães? Já não precisamos de nos perguntar, porque estamos no nosso momento
documental.”
Sentimo-nos (eu também) irritados, indignados, ansiosos e
também tristes e impotentes. Acho que está tudo bem, mas também precisamos de
nos organizar. Não nos devemos habituar à lavagem da nossa humanidade. Isto é
sobre comunidade e sobre escala. Isto tem a ver com o poder de nos unirmos por
uma causa comum e de fazermos o melhor que podemos, mesmo que o nosso alcance
não exceda a nossa casa ou o nosso bairro. Trata-se de amor, cuidado e
esperança. Trata-se de solidariedade, no seu sentido mais pleno.
Outras leituras
How
far does your tolerance go? – Keynote speech na conferência
do ICOM Georgia | ICOM MPR em Tbilisi (Geórgia), 6.12.2024
The
age-old paradox of democracy – Intervenção da
conferência anual de NEMO em Sibiu (Roménia), 12.11.2024
À
procura da felicidade: o Trump em nós, Musing on Culture, 2.2.2020
E se
fosse aqui?, Musing on Culture, 10.2.2017
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