Sunday, 9 February 2020

À procura da felicidade: o Trump em nós

Foto: Tasos Katopodis / Getty Images


No verão passado, li o artigo Why science needs the humanities to solve climate change (Porque é que a ciência precisa das humanidades para resolver as mudanças climáticas). Observando o (habitual) ataque às humanidades da parte de vários líderes autoritários e democraticamente eleitos, este artigo lembrava-nos o motivo pelo qual o fazem:

“Os estudiosos das humanidades interpretam a história, a literatura e as imagens humanas para descobrir como as pessoas entendem o seu mundo. Os humanistas desafiam outros a considerar o que faz uma vida boa e colocam perguntas desconfortáveis ​​- por exemplo, 'Boa para quem?' e 'À custa de quem?'”.

Os autores - Steven D. Allison, professor de Ecology & Evolutionary Biology and Earth System Science, e Tyrus Miller, reitor da School of Humanities, ambos da Universidade de Califórnia - afirmavam que “Estudiosos e filósofos culturais podem injectar princípios éticos na formulação de políticas" e que "Os humanistas também podem ajudar os decisores a ver como a história e a cultura afectam as opções políticas ".

Os humanistas podem realmente fazer isso. Mas os decisores, estarão interessados?

Observando o agravamento e o fortalecimento do fenómeno Trump – a sua falta de humanismo, a sua arrogância aliada à orgulhosa ignorância, o seu desprezo pelas críticas e pela busca da verdade –, os meus pensamentos vão além daquele homem, para o seu partido. Um grande grupo de cidadãos eleitos, com maioria no Senado, que continua a justificar o injustificável, a relativizar e a normalizar a barbárie ou... que mantém o silêncio. No episódio mais recente, no julgamento de destituição, apenas um senador republicano votou para condenar o presidente dos EUA por abuso de poder; apenas quatro senadores republicanos tentaram convencer o presidente a não demitir funcionários que testemunharam perante o Congresso. No julgamento, um dos advogados do presidente, o respeitado constitucionalista Alan Dershowitz, argumentou que "todos os políticos que eu conheço acreditam que a sua eleição é do interesse público" e que "se um presidente fizer algo que acredita que o ajudará a ser eleito no interesse público, esse não pode ser o género de quid pro quo que resulta numa destituição".

Mais uma vez, as humanidades tocam o alarme e traçam paralelos reveladores. No artigo This is how ancient Rome’s republic died – a classicist sees troubling parallels at Trump’s impeachment trial (Foi assim que a república da Roma antiga morreu - um classicista vê paralelos preocupantes no julgamento de destituição de Trump), o Professor Timothy Joseph lembra-nos que a noção de que a posição pessoal de um presidente é inseparável da posição da nação é semelhante à noção que se manteve durante a ascensão do homem conhecido como primeiro imperador de Roma, Augusto. “Essa incapacidade de separar os interesses pessoais de um líder dos interesses do país que ele lidera tem ecos poderosos em Roma antiga. Lá, nunca ocorreu qualquer mudança formal do sistema republicano para um sistema autocrático. Em vez disso, houve uma erosão das instituições republicanas, uma constante infiltração ao longo de décadas de autoritarismo na tomada de decisões e a consolidação do poder dentro de um indivíduo - tudo mantendo o nome ‘República’."

Assim, para além das responsabilidades do líder autoritário, o que mais me preocupa é o papel da sua “entourage” e da responsabilidade individual. Nas nossas democracias imperfeitas, estamos rodeados por todo o tipo de pequenos ditadores que, uma vez conquistado algum poder, de qualquer tipo, pretendem ditar o que pode ser feito e em que termos, além de silenciar debates saudáveis ​​e, principalmente, críticas às suas acções. Mas não estão sozinhos nisso, não poderiam fazer isso sozinhos. Estão rodeados de pessoas ansiosas por apoiar o autoritarismo que baptizam de "convicção" ou de "visão", comprometendo de livre vontade a sua honestidade intelectual ao serviço de uma "causa digna" (os humanistas perguntariam 'Digna para quem?' e 'À custa de quem?').

Um colega partilhou recentemente no Facebook um excerto de “Sobre as escolhas” de Agostinho da Silva: “Ora, se estamos todos muito bem preparados para reclamar liberdade para nós próprios, menos dispostos parecemos para reclamar sobretudo liberdade para os outros ou para lhes conceder a liberdade que está em nosso poder; se conhecêssemos melhor a máquina do mundo, talvez descobríssemos que muita tirania se estabelece fora de nós como se fosse a projecção ou como sendo realmente a projecção das linhas autocráticas que temos dentro de nós; primeiro oprimimos, depois nos oprimem; no fundo, quase sempre nos queixamos dos ditadores que nós mesmos somos para os outros."

Segundo Aristóteles, o verdadeiro político é aquele que pode tornar as pessoas melhores. Mas cada um de nós é (pode ser; deveria ser) um político, e não apenas aqueles poucos que estão no parlamento. Somos todos verdadeiros políticos, sendo verdadeiros companheiros de vida, verdadeiros pais, verdadeiros colegas, verdadeiros professores, verdadeiros juízes, verdadeiros médicos, verdadeiros policias, verdadeiros jornalistas... Essa é também a verdade que devemos esperar, reconhecer e esforçarmo-nos para apoiar em outros. As coisas não acontecem apesar de nós, mas por causa de nós. Ajudemo-nos uns aos outros para sermos o melhor que pudermos.

Aristóteles também dizia que a felicidade perfeita está na activação da parte mais alta da alma humana, da lógica. Não devíamos procurar ser felizes? Qual o preço que estamos dispostos a pagar para comprometer a nossa honestidade intelectual? E para quê?

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