Devo admitir que é com grande emoção e admiração que vejo as
organizações culturais americanas a tomar posição e a criticar as políticas de
seu Presidente. Alguns reagem de forma mais suave, outros assumem um tom bastante
mais afirmativo e franco (vejam aqui). É uma
grande lição para todos nós e, muito provavelmente, a prova de que as
organizações culturais são tudo menos neutras, são, na verdade, inevitavelmente
políticas.
As primeiras reações vieram no fim-de-semana logo após as eleições, com museus como o Brooklyn Museum e o National Museum of Women in the Arts a reafirmar os seus princípios e valores (ver nosso post de Novembro passado). Foi, no entanto, após a tomada de posse do novo Presidente e depois de ele assinar as suas primeiras ordens executivas, que as reações se intensificaram e se tornaram mais institucionais.
A acção que mais chamou a atenção dos meios de comunicação foi
a do MoMA, que protestou contra a proibição de entrada de cidadãos de sete
países maioritariamente muçulmanos substituiindo algumas das obras nas suas salas
por outras, criadas por artistas originários desses sete países (ler no The
New York Times). O gesto foi recebido com grande entusiasmo
por muitas pessoas, com algumas delas a afirmar que é exactamente por isso que
apoiam o museu, outras a decidir renovar a sua assinatura, etc. Houve,
naturalmente, algumas acusações de que o museu está a servir uma agenda
política em vez de ser sobre arte, mas estas foram contrariadas por pessoas que
diziam que a arte é precisamente sobre isto (ver a discussão na página de Facebook
do MoMA e imagem no Twitter).
Mas houve mais. Além das declarações oficiais de várias
associações de profissionais do sector cultural (ver no blog Museums
and Migration), houve há dois dias um concerto de protesto
da Seattle Symphony, Music
Beyond Borders: Voices from the Seven, que apresentou música por e com músicos dos sete países afectados
pela proibição. Foi um apelo muito determinado e emocional, ao qual a
comunidade respondeu entusiasticamente. Alguns dias antes, uma outra orquestra,
a Budapest Festival Orchestra, teve que defender um dos seus músicos com dupla
nacionalidade, quando houve dúvidas se a entrada nos EUA lhe ia ser permitida.
O maestro de orquestra, Ivan Fischer, "uma voz pela tolerância e a inclusão
à medida que o seu país tem adoptado políticas nacionalistas e firmemente
anti-imigrantes", afirmou que "nunca permitirei que alguém discrimine
um músico na minha orquestra por causa da sua origem, cor da pele, religião ou
qualquer outro factor." (ler no The
New York Times).
Concerto da Seattle Symphony (imagem retirada do Twitter da orquestra) |
Outro gesto muito significativo foi o de cinco teatros
americanos terem reagido rapidamente para incluir na sua programação a peça
"Building the Wall", escrita no espaço de uma semana pelo premiado
dramaturgo Robert Schenkkan. "Não vivemos mais num mundo em que é business as usual- Trump deixou isso
muito claro", disse Schenkkan, "e para o teatro continuar a ser relevante,
temos que nos tornar mais rápidos na nossa resposta. Não podemos esperar ser
úteis se não temos capacidade de reagir até 18 meses após os factos". O
director artístico do Fountain Theatre, Stephen Sachs, explicou a sua decisão:
"Tínhamos a nossa temporada pronta, tínhamos planeado uma outra produção,
mas, assim que li o guião, percebi que tinhamos que ser rápidos. É um grito de
alerta cru e apaixonado, e eu sabia que tínhamos que ser ousados e fazer essa
declaração." (ler no The
New York Times)
Enquanto acompanho com entusiasmo estes desenvolvimentos
que têm lugar numa Democracia do outro lado do Atlântico, há uma pergunta
constante no fundo do meu pensamento: E nós? Quando partilhei no Facebook um
artigo sobre How
museums can stand up to Trump and discriminatory policies,
escrito por Robin Clarke da Universidade de Leicester, um colega perguntou-me:
"Em Portugal sabemos fazer isso?". É verdade, sabemos? Estamos a
fazer isso? Em Portugal, na Grécia, na Hungria e em toda a Europa?
Foi precisamente nesse momento que Nicole Deufel publicou Heritage
Resistance no seu blog. E começa assim: "É óptimo ver museus,
organizações ligadas ao património e organizações de profissionais a montar uma
resistência contra as políticas divisivas e perigosas da nova administração
Trump. E é óptimo que museus e profissionais do património, bem como
instituições noutros lugares, discutam essas mesmas questões e mostrem
solidariedade. No entanto, devemos garantir que, para aqueles de nós fora dos
Estados Unidos, isso não se torne meramente simbólico. A proibição de imigração
de Trump não se deve tornar numa outra Cruz de Lampedusa. É muito fácil fazer
grandes gestos atravessando o oceano, ignorando o que está a acontecer na nossa
própria porta."
Imagem retirada do website Museums and Heritage. |
É este exactamente o problema. O nosso interesse pelas
políticas dos EUA e pela maneira como os nossos colegas estão a lidar com elas
neste momento pode ser compreensivelmente justificado pelo facto da política
americana afectar a vida de todos nós. Mas a proibição de entrada a refugiados
e imigrantes não é algo inédito, não é verdade? Já o vimos na fronteira húngara
em Setembro de 2015; vimo-lo quando a UE assinou o seu acordo com o governo
turco em Março de 2016; vimo-lo no anúncio de que o governo do Reino Unido ia
construir um muro em Calais para bloquear os refugiados, em Setembro de 2016; vimo-lo
no desmantelamento de The Jungle em Calais em Outubro de 2016; agora estamos a
vê-lo de novo no anúncio do governo britânico que não vai acolher mais crianças
refugiadas e no do governo austríaco que está a planear enviar tropas para
deter o fluxo de refugiados. Vemo-lo ainda na decisão do parlamento britânico
de rejeitar uma alteração que teria protegido o direito de 3,3 milhões de
cidadãos da UE de permanecer no país depois de sua saída da União Europeia (e
esta é provavelmente a única coisa que nós ou os nossos parentes ou amigos
sentiremos na própria pele).
O que é diferente na proibição do governo americano? Nada
realmente. O título deste post pergunta "E se fosse aqui?", mas a
verdade é que ESTÁ aqui. Está em todo o lado à nossa volta. Como reagimos? O
que é que fazemos? Não quero dizer que nada está a acontecer na Europa e que
todo o mundo está a dormir o sono dos inocentes. Se há algo que aprendi com o
blog Museums
and Migration é o quanto está a ser feito por muitos
indivíduos e instituições no sector cultural. Mas é altura de o fazermos
institucionalmente. O que é diferente na proibição do governo americano é que
os nossos colegas nesse país não têm dúvidas sobre o seu papel perante esta
situação e estão a assumir abertamente
as suas responsabilidades. Isso é o que é diferente.
Mais leituras:
Mais neste blog:
No comments:
Post a Comment