Monday, 14 March 2011

O poder e a magia do objecto 'real'

Um centro de ciência é um museu interactivo, cujas exposições são compostas por módulos especialmente fabricados para o visitante poder explorar vários fenómenos e conceitos científicos e outras aplicações tecnológicas. Trabalhei durante cinco anos no Pavilhão do Conhecimento. Presenciei inúmeras vezes a curiosidade, o espanto, a alegria da descoberta, o entusiasmo, o divertimento que resulta da interacção das pessoas com os módulos. Mas lembro-me de uma vez em especial em que fui testemunha do fascínio. Provocado não por um módulo, mas por um objecto real, histórico: o fato do astronauta Neil Armstrong. O Pavilhão ia receber a visita do último astronauta a pisar a lua, Eugene Cernan, e, a propósito desse acontecimento, iria ser exposto o fato de Neil Armstrong. Uma fila interminável de pessoas de todas as idades à espera para serem fotografadas ao lado do fato. Nunca tinha visto nada assim. Este é o poder do objecto real.

Pavilhão do Conhecimento, Outubro 2001. Foto: Maria Vlachou
Tenho estado a pensar nisso nos últimos tempos, no objecto real, na experiência ao vivo. Na altura que estava a tirar o meu mestrado, no início dos anos 90, os museus em todo o mundo estavam a testar as potencialidades de um novo meio, da Internet. Começaram a ser criados sites, as colecções ficaram disponíveis online, foram criadas as primeiras visitas virtuais. Levantaram-se, ao mesmo tempo, as primeiras questões relativamente ao perigo que este meio representava, no sentido de manter as pessoas, possíveis visitantes, longe dos museus, uma vez que permitia o acesso remoto, e gratuito, aos mesmos.

Os medos não foram confirmados. Pessoalmente, sempre partilhei a convicção daqueles que acreditam que nada pode substituir o fascínio pelo objecto real (“the real thing”); a emoção que provoca, a ligação que cria. A minha convicção não estava baseada numa investigação científica, mas na minha própria experiência. Nunca foi o mesmo ver uma pintura preferida num livro e estar à frente dela num museu, perceber a sua dimensão, a sua profundidade, a intensidade das suas cores; ver a assinatura do pintor no canto. O recentemente apresentado Google Art Project cria um nível de acesso nunca antes visto a milhares de obras de arte em vários museus, permite descobrir detalhes que antes não teriam sido observadas a olho nu. Mas, mesmo assim, o género de emoção que cria é diferente daquele que experienciamos quando nos colocamos à frente da obra. Penso que o Google Art Project contribuirá também para a criação de um maior desejo de um dia se poder ver o objecto real.

Quanto aos espectáculos, não há dúvida que entre não ver de todo e ver na TV, mesmo gravado, ou agora num DVD, sempre foi bom poder ver. Mas também, sempre foi ainda mais emocionante ver uma transmissão ao vivo do que um programa gravado. E claro que nada se compara com o poder assistir mesmo, sentado numa sala de espectáculos, sentindo uma ligação muito especial com os intérpretes no palco e com os restantes espectadores que connosco partilham a experiência. A expectativa que parece aumentar quando as luzes baixam, o silêncio, os momentos inesquecíveis e irrepetíveis de um espectáculo ao vivo, o permanecer no exterior do teatro para falarmos sobre o que acabámos de ver. Quase vinte anos depois, lembro-me da ansiedade com a qual me levantei às 7 da manhã do dia 12 de Julho de 1992 para ver o último acto de Tosca, transmitido ao vivo a partir do Castel Sant´Angelo em Roma, o local preciso onde decorria a história. No dia anterior, tinha acompanhado à tarde o primeiro acto, transmitido da igreja Sant´ Andrea della Valle e o segundo à noite, a partir do Palazzo Farnese (ler notícia aqui). Mas indo ainda mais para trás, quase que consigo ainda sentir a emoção, misturada com algum medo, de ter visto um dos ‘monstros’ do teatro grego, Alexis Minotis, a interpretar Prometeu Agrilhoado num anfiteatro do século IV A.C. Tinha ele 81 anos; tinha eu 9. Anos mais tarde, vi aquele espectáculo na TV. Não houve magia. Não estava no meio do campo, rodeada da escuridão, cheia de frio, a ouvir o estridular dos grilos e a partilhar o sofrimento do pobre Prometeu.

Prometeu Agrilhoado, 1979. Foto: Arquivo do Teatro Nacional da Grécia.
Há uns dias atrás, li no Guardian um artigo intitulado Can a filmed stage show be as good as the real thing?. O crítico de teatro Mark Shenton defendia que não; Hermione Hoby, que escreve no Observer sobre arte, dizia que sim. Fiquei particularmente curiosa, e desconfiada, quando Hoby referiu que um estudo do National Endowement for Science, Technology and the Arts sobre a transmissão ao vivo em salas de cinema das produções do National Theatre tinha revelado que o público nos cinemas estava mais envolvido emocionalmente do que os espectadores que assistiam ao vivo no próprio teatro. Procurei o relatório, que se intitula Beyond live: digital innovation in the performing arts e encontrei a resposta. Para avaliar o envolvimento dos espectadores, é primeiro necessário identificar as razões pela opção de ver ao vivo ou no cinema e as expectativas das pessoas. A principal razão dos inquiridos que tinham assistido ao vivo a Fedra foi ver a actriz Helen Mirren e a sua principal expectativa, ver um espectáculo emocionante ou inspirador; quanto aos espectadores nos cinemas, a maioria tinha principalmente procurado a experiência de ver a transmissão de uma peça de teatro num cinema, sendo que a sua maior expectativa era experienciar uma nova forma de apresentação teatral. Estas diferenças poderão explicar o impacto sentido por cada tipo de espectador e o seu envolvimento.


De qualquer forma, o que é importante realçar é que, desde 2009, graças às transmissões ao vivo das produções do National Theatre, milhares de pessoas em vários países têm acesso às mesmas, pessoas essas que, devido à distância geográfica, ao preço do bilhete ou até ao facto dos bilhetes estarem esgotados, não teriam tido a oportunidade de ver o espectáculo. Igualmente significativo é o facto destas transmissões terem criado o desejo em 34% dos inquiridos nos cinemas de ir ao National Theatre, em particular entre pessoas com rendimentos baixos. Um terço dos espectadores de cinema estariam dispostos a gastar no máximo entre 21 e 30 libras para assistir ao espectáculo ao vivo, enquanto o preço máximo que gastariam para o bilhete de cinema seria entre 11 e 15 libras.

O impacto de um espectáculo ao vivo na vida das pessoas é algo frequentemente discutido quando se fala no valor da cultura e das artes. Será que se pode avaliar? Parece difícil. Mas parece também que não é impossível. Mais notícias (e provas…) em breve.

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