Monday 9 May 2011

A viagem ao 'fim do mundo'

Argentina é um país imenso e diverso. Um país muito rico e muito pobre. Um país que nos surpreende, nos emociona, nos entusiasma, nos impressiona, nos entristece e nos assusta.

Argentina é um país muito orgulhoso do seu passado, com particular referência às lutas que conduziram à sua independência no início do século XIX. Os seus militares, primeiros presidentes e governadores (San Martín, Belgrano, Sarmiento, Mitre, Dorrega), assim como as datas mais marcantes dessa história (25 de Mayo, 9 de Julio, 3 de Febrero), dão o nome a ruas e avenidas em todas as suas cidades e vilas (breve história da Argentina aqui). A bandeira nacional é uma presença quase permanente. Os políticos continuam a ser venerados. Este ano é ano de eleições a vários níveis, incluindo presidenciais. Espera-se que a ‘Presidenta’ Cristina Kirchner seja reeleita.

Cartaz do casal Kirchner entre as fotografias de Perón e Evita na Avª de Mayo.
Argentina é ainda um país determinado em lidar com o seu passado mais recente; um passado de violência, tortura, desaparecimentos. Um país (neste caso concreto, uma cidade-metrópole, Buenos Aires) que se manifesta na rua por uma ou outra causa quase diariamente.

Todas as quintas, às 15h30 em ponto, tem lugar na Plaza de Mayo a manifestação da associação Madres de Plaza de Mayo. A primeira teve lugar em 1977.
O povo Qom tinha acampado na Avª 9 de Julio revendicando os seus direitos às suas terras ancestrais e denunciando perseguições e maus tratos. Houve encontros com os dirigentes da Nação, mas no dia 6 de Maio foram colocados em autocarros e mandados para trás. A despedida dos seus apoiantes foi muito emocionante.
Ao chegarmos ao aeroporto de Buenos Aires, deparamo-nos com uma extensa campanha que pretende sensibilizar relativamente à protecção do património cultural e contra o tráfego ilícito de antiguidades. Algo que se repete em muitos outros aeroportos. Uma série de cartazes chama a atenção dos residentes e dos turistas relativamente a esta causa. Já passei por vários países que sofrem do tráfego ilícito de antiguidades e nunca tinha visto uma campanha destas. E está bem feita, do ponto de vista do impacto visual e da passagem da mensagem. Falta saber se resulta.


Visitei museus de todos os tipos e tamanhos, antigos e muito recentemente inaugurados. Nos séculos XIX e XX, os museus tiveram neste país um papel fundamental, juntamente com as escolas, na ‘formação’ do cidadão argentino, incluindo os milhares de imigrantes que aqui chegaram, no que diz respeito aos valores da recém-nascida nação, ao respeito pelas personalidades que realizaram a revolução e travaram a guerra pela independência (os chamados ‘próceres’) e ao conhecimento do passado nacional. É o que se lê num dos dois painéis na entrada do Museu Histórico Nacional, aquele que pretende partilhar com o visitante a visão por trás da (re)interpretação das colecções, algo que aconteceu muito recentemente, a propósito do bicentenário da revolução (1810 – 2010). O segundo painel da entrada coloca a questão “Que museu queremos?”, explicando que reabrir o museu ao público não significou apenas re-interpretar e ampliar as suas colecções, mas também dar lugar aos interesses e às vozes dos visitantes. É raro um museu procurar ‘posicionar-se’ no início de uma visita e partilhar esta visão com o visitante. Portanto, criou-se-me uma certa expectativa, que acabou por ser defraudada. Este museu nacional de história, tal como a grande maioria de outros que tenho visitado (ilustre excepção o de Washington), acaba por não contar a história. Uma série de quadros, documentos originais e outros objectos são simplesmente identificados, mas não contam a história da construção da nação, que se iniciou no século XIX e continua, como é natural, até hoje.

De um ponto de vista geral, a interpretação é um grande ponto fraco dos museus argentinos, algo que os estrangeiros curiosos sentem sempre mais que os locais. Em muitos casos, a escassez de meios é óbvia e explica, até um certo ponto, a falha. Um outro ponto fraco, no caso específico dos museus de Buenos Aires, é o horário. A grande maioria abre apenas às 12.00.

Mas, houve pequenas surpresas e descobertas que ficarão na minha memória:

Museo de Arqueología de Alta Montaña, Salta (noroeste argentino)


Um pequeno tesouro, muito bem-feito. Neste museu encontramos a história do culto pré-colombiano da natureza e dos rituais realizados pelos Inca em pontos altos dos Andes, que envolviam o ‘casamento’ e o sacrifício de crianças aos deuses. A colecção (objectos em miniatura que acompanhavam as crianças, roupa e sapatos) é lindíssima e o nosso encontro com ‘el niño’, a múmia do rapaz de 7 anos que foi encontrada intacta na montanha, particularmente emocionante. Neste museu aprendemos ainda sobre o impressionante sistema de estradas pré-hispánicas, que tanto impressionou os conquistadores, e o esforço conjunto de Argentina, Bolívia, Chile, Perú, Colómbia e Equador em designá-lo junto da UNESCO como Património Mundial.


Museu Provincial de Bellas Artes Rosa Galisteo de Rodriguez, Santa Fe (centro)
Visitei a exposição temporária do pintor santa-fesino Lucero Hagelstange Mito: Ángeles en el Paraiso. Um estilo que faz lembrar Gauguin, pinturas de anjos que têm a cara de mulheres indígenas. Cores fortes que contrastam com as caras cinzentas, mas igualmente expressivas, dos anjos. Estes anjos ‘crioulos’ fizeram-me logo pensar noutros, que tinha visto três dias antes, na igreja da pequena localidade Uquía, no noroeste argentino. A igreja contem as pinturas de anjos executadas pelos Índios em Cuzco, Perú, no século XVII. Quando os Índios perguntaram aos Espanhóis como eram os anjos, eles responderam “São como nós, mas têm asas”.


Museo de Arte Popular José Hernández, Buenos Aires
Um museu pequeno, com uma colecção também pequena (pelo menos, a parte em exposição), mas muito interessante, e com óbvia falta de meios. No entanto, numa das duas exposições temporárias descobri a história de Hermógenes Cayo, o artesão e músico que participou em 1946 na marcha que levou de Jujuy, no noroeste, à capital 174 indígenas que reclamavam os títulos de propriedade das suas terras ancestrais. Depois de serem recebidos pelo Governo e de terem começado as conversações, um dia foram colocados todos num comboio e mandados para trás. A história repete-se… Hermógenes Cayo foi o cronista dessa marcha.



Museo Etnográfico, Santa Fe (centro)


O único museu dos que visitei neste país ‘híbrido’ que procurou abordar a questão dos escravos / imigrantes. Uma pequena e interessantíssima exposição sobre a presença africana em Santa Fe, que questiona desde o princípio as ideias dos visitantes locais, cuja maioria pensa que não houve pretos em Santa Fe. Um relato directo e aparentemente, para quem não sabe muito, objectivo, que aborda todas as vertentes da vida dessas pessoas na cidade de Santa Fe e que oferece possíveis explicações pela sua ‘invisibilidade’.

Por último, uma nota sobre a minha visita ao Teatro Cólon, o teatro que foi construído para mostrar que Buenos Aires poderia competir com Paris (uma comparação que os Argentinos continuam a fazer quando querem falar da intensa oferta cultural da sua capital). Este era o teatro da elite de Buenos Aires, que tinha pago pela sua construção. Juan Perón abriu-o ao povo, não só para assistir a ópera, mas também para reuniões sindicais, enfurecendo os seus ‘guardiões’. O teatro é gerido pelo governo nacional e voltou a ser um espaço reservado às elites. A guia disse-nos que não há muitas pessoas em Buenos Aires a ver ópera e bailado. Ela própria, que mostrou sentir um grande carinho pelo edifício (falou sempre na primeira pessoa enquanto nos contou a sua história), não assiste a espectáculos. Também parece não existir um interesse por parte dos dirigentes em dar a conhecer estas artes a mais pessoas. O teatro não tem serviço educativo, não existem descontos ou outras ofertas de última hora e as transmissões pela rádio, que outrora se fizeram, também acabaram.

Argentina é um país imenso e diverso. E as suas ‘diversidades’ estão bem separadas, tal como acontece em muitos outros países em todo o mundo. Uma viagem que começou pelos parques nacionais da Terra do Fogo - Fim do Mundo e da Patagónia, seguiu-se no noroeste ‘dos Índios’, passou por um casamento na Santa Fe, para acabar em Buenos Aires, que parece reunir todos estes mundos: da Plaza de Mayo a La Boca, dos bairros ricos da Recoleta e de Puerto Madero à estação do Retiro e à Villa 31 (nesta última não entrei, mas vi as suas cores intensas – um claro indicador, parece, de pobreza - da autopista que nos leva ao aeroporto).

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