Monday 20 June 2011

Casa com telhado mas sem alicerces?

No portal brasileiro Cultura e Mercado anunciava-se na semana passada que a Câmara de Deputados irá criar uma comissão especial para analisar a Proposta de Emenda à Constituição, que inclui entre os direitos sociais o acesso à cultura. Na mesma notícia falava-se do projecto-lei Vale Cultura, conforme o qual será concedido um subsídio mensal de R$50 (aproximadamente €22) a trabalhadores que ganham até cinco salários mínimos, a fim de permitir o acesso a produtos e serviços de artes visuais, artes cénicas, audiovisual, literatura, música e património cultural.

Fiquei muito curiosa relativamente ao projecto. Pensei em questões práticas (será um cartão do qual se desconta o valor dos produtos, uma caderneta com vales, poderá ser trocado apenas em estabelecimentos que aderem à iniciativa, os trabalhadores deverão apresentar recibos…?), mas pensei sobretudo nos objectivos da iniciativa e nas expectativas.

Encontrei algumas respostas no texto de redacção final do Projecto-Lei:

“Art. 1º Fica instituído, sob a gestão do Ministério da Cultura, o Programa de Cultura do Trabalhador, destinado a fornecer aos trabalhadores meios para o exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura.

Art. 2º O Programa de Cultura do Trabalhador tem os seguintes objetivos:

I – possibilitar o acesso e a fruição dos produtos e serviços culturais;

II – estimular a visitação a estabelecimentos que proporcionem a integração entre os temas de ciência, educação e cultura; e

III – incentivar o acesso a eventos e espetáculos culturais e artísticos.”

Num outro artigo no portal Cultura e Mercado, intitulado Democratização do acesso à cultura, fazia-se uma análise desta iniciativa. O autor, Roberto Baungartner, apresentava estatísticas como: apenas 13% dos Brasileiros vão ao cinema pelo menos uma vez por ano; mais de 92% nunca foram a um museu ou exposição de arte; 78% nunca assistiram a um espectáculo de dança. Alguns destes dados são também referidos no vídeo oficial do Vale Cultura.

Roberto Baungartner acredita que esta iniciativa, para além de beneficiar propriamente a cultura, criará mais emprego e receita, reduzirá a violência e incrementará, pelo lado da procura, as cadeias produtivas envolvidas. Acredita ainda que tornará as empresas brasileiras mais competitivas no cenário internacional.

Considero, mais uma vez, os objectivos traçados e as expectativas criadas pouco realistas e pouco estruturados. Tenho sempre sérias dúvidas que a democratização do acesso à cultura passe, em primeiro lugar, por medidas como esta, que parecem continuar a ignorar aquelas que são as principais questões no que diz respeito ao acesso.

No artigo de Baungartner podemos ainda ler que mais de 90% dos municípios brasileiros não têm salas de cinema, teatro, museus, espaços culturais em geral (refere concretamente que as 6000 salas de cinema que Brasil tinha antigamente limitam-se agora a 200). Portanto, as questões que coloco são as seguintes:

- Sem espaços e sem hábitos culturais relacionados com a oferta que estes normalmente apresentam, podemos realmente pensar que o subsídio de R$50 é o que falta para se criar acesso?

- É muito promissor ver que um governo pretende reconhecer o direito social à cultura (que consta, aliás, entre os direitos humanos) e considerá-lo na emenda da Constituição. No entanto, será necessário ao mesmo tempo ficar claro para todos o que é ‘cultura’, como se produz, por quem, onde, o que é necessário para se proporcionar acesso a ela (do ponto de vista da produção e do consumo). Digo isto, porque o vídeo oficial do Vale Cultura, bastante bem feito, apresenta, no entanto, uma visão do que é cultura bastante centrada na chamada ‘alta cultura’, o acesso à qual - para a maioria daquelas pessoas que nunca vão ao cinema, museu, teatro - não passa, em primeiro lugar, pela atribuição de um subsídio mensal de R$50.

Numa altura em que se procura cada vez mais encontrar formas de partilhar a responsabilidade de gestão / programação das instituições culturais com os destinatários da sua oferta - actuais e, sobretudo, potenciais –, através do reconhecimento das várias formas de fruição cultural e da criação das condições que facilitarão o acesso a ela, a iniciativa brasileira parece ignorar os últimos desenvolvimentos e tendências e limitar-se a questões que, do meu ponto de vista, são importantes mas secundárias no âmbito desta discussão. Trata-se no entanto, de uma iniciativa interessante, provavelmente inovadora, que tem gerido grande consenso entre os vários agentes que irá envolver e da qual muitas pessoas irão, com certeza, poder beneficiar. Será bom poder acompanhar o desenvolvimento da mesma e poder comparar os resultados em relação aos objectivos inicialmente traçados.

2 comments:

Luiza Barbosa said...

Maria, acho que sobre esta publicação posso ousar fazer alguns apontamentos. Sou brasileira, e apesar de morar no Rio de Janeiro e fazer parte da chamada "elite intelectual" - já que apenas 10% da população jovem brasileira possui nível superior segundo a OCDE em 2009 - conheço um pouco da realidade da maior parte da população ou ao menos estou mais perto da mesma. É verdade sim que, a iniciativa do Vale Cultura está longe de ser uma solução afirmativa e isolada de se tentar reduzir os índices de violência, atos de vandalismo e democratizar o acesso aos equipamentos culturais diversos existentes no país. Porém analisando o fato de que somos um país em desenvolvimento, de dimensões continentais, com uma herança histórica de exploração ainda presente na política e, consequentemente na economia do país e uma população que não possui acesso à uma educação pública de qualidade, achei louvável a iniciativa do Ministério da Cultura Brasileiro. Reconheço que o valor estabelecido está longe de ser o ideal porém ratifico que as consequências serão vistas a longo prazo.

Maria Vlachou said...

Cara Luiza, obrigada por partilhar a sua opiniao. Tem razao, a iniciativa tem muito merito e eu pessoalmente estou muito curiosa em acompanhar o seu desenvolvimento e resultados. Mas confesso que fico sempre desconfiada quando iniciativas como esta sao apresentadas como a solucao ao problema de acesso a cultura e como um "medicamento" que ira tratar todos os males do mundo (sociais sobretudo). Nao acho realista e parece-me ate um pouco populista. Vamos ver como corre, sim.