Antes de falar da notícia que vem do outro lado do Atlântico, volto a afirmar a minha convicção que as entradas gratuitas podem multiplicar as visitas (o que também é desejável), mas não podem, só por si, diversificar o público das instituições culturais, nomeadamente museus e salas de espectáculos. Não me parece realista continuarmos a usar a gratuitidade como um argumento em prol da democracia e da igualdade. Para a maioria das pessoas que não vai aos museus, não é o preço do bilhete (em Portugal, entre €2 e €5 com descontos nos museus nacionais) que constitui a barreira. Da mesma forma, há espectáculos de excelente qualidade com bilhetes a €5 e com pouco público e outros, muito mais caros, que esgotam. O que faz a diferença? A relevância e importância de uma determinada oferta na vida das pessoas. Também o terem ou não conhecimento dessa oferta.
Dito isto, não podemos ignorar o facto de existirem pessoas que desejam participar em actividades culturais, mas que têm que fazer contas à vida. Considerar esta necessidade é uma obrigação para as instituições culturais, em particular aquelas financiadas com dinheiros públicos. Espectáculos de entrada livre ao longo da temporada, preços especiais para todos em certos dias da semana ou entradas gratuitas aos museus em certos dias da semana e do ano, promoções conjuntas entre instituições – tudo devidamente e amplamente divulgado - são uma possível resposta a esta necessidade. Não significa acesso a toda e qualquer oferta? É verdade, mas tudo tem um preço e cada um de nós faz contas e decide em que é que é importante investir e para que é que vale a pena poupar.
Já quando se fala em diversificar o público, o trabalho que as instituições culturais têm que desenvolver é mais complexo. E o primeiro factor a considerar não é o preço. É necessário desenvolver um programa extenso de outreach. Conhecer melhor os hábitos, necessidades e gostos das pessoas com as quais pretendemos estabelecer uma relação é algo que não passa, em primeiro lugar, por oferecer uma entrada gratuita. E se se considerar que é isto que temos que fazer, entre outras coisas, que seja oferecida entrada gratuita a essas pessoas. Porquê estendê-la a todos, até àqueles dispostos e com capacidade de pagar?
Apresentei os meus argumentos contra a gratuitidade em dois posts no ano passado, um sobre museus e outro sobre teatros, aos quais gostava agora de acrescentar dois pontos. Primeiro, mesmo quando a entrada é gratuita, visitar um museu ou assistir a um espectáculo nunca é totalmente gratuito: os transportes (colectivos ou privados) não são gratuitos, o estacionamento em muitos casos também não, a refeição antes ou depois, a necessidade de contratar uma babysitter… São vários os custos associados e podem ser significativos e determinantes na decisão de ir ao museu / teatro ou não. O segundo ponto é que as instituições culturais deverão ter um cuidado particular na forma como defendem e oferecem a gratuitidade. Quando o ser artista é considerado um hobby e não uma profissão, quando grande parte da sociedade vê os artistas como uns subsídio-dependentes que vivem à custa de todos os outros, que mensagem é que as próprias instituições passam quando oferecem este trabalho (feito por profissionais que, muitas vezes, desenvolvem a sua actividade com grandes sacrifícios) gratuitamente?
Passando agora para a notícia transatlântica: o Mixed Blood Theatre na cidade de Minneapolis nos EUA anunciou no mês passado que nas próximas três temporadas os espectáculos serão gratuitos para todos (ler notícia aqui). A iniciativa intitula-se Radical Hospitality (hospitalidade radical). No entanto, o teatro continuará a cobrar para as assinaturas anuais e a disponibilizar bilhetes no valor de $15 a quem quiser comprar antecipadamente e garantir lugar num determinado espectáculo. O director artístico afirmou que esta é "uma forma de cumprir a missão igualitária do teatro, que é ser totalmente inclusivo”. Uma rádio local colocou a questão ao público: Qual a importância do preço na vossa decisão sobre uma opção de entretenimento? Vale a pena ler as respostas das pessoas (ver aqui). Sobretudo porque, ao lado daqueles que afirmam que o preço dos bilhetes é proibitivo (e existem casos que devem ser considerados com atenção, como, por exemplo, os custos para uma família), há outros tantos a dizer que os custos associados a uma saída de casa são demasiado altos; que não conhecem a programação ou a localização; que a oferta cultural é muito variada e existem opções e preços para todos os bolsos.
Gostava, entretanto, de transcrever uma das respostas: “A prioridade de assistir a teatro e música ao vivo é uma questão de qualidade de vida de grande importância para mim e para o meu marido. (…) As pessoas precisam de escolher com atenção, mas devem estar preparadas a pagar pelo empenho e talento incrível que é preciso para produzir eventos culturais ao vivo de qualidade. Estamos dispostos a ter a nossa caderneta de cheques mais leve, para que as nossas vidas não sejam mais pobres”. Quem deu esta resposta não deve ser uma pessoa pobre. Mas penso tratar-se de uma questão de escala e que a maioria das pessoas, dentro das suas possibilidades económicas, diria o mesmo se achasse que aquilo que as instituições culturais lhes oferecem é relevante e importante para as suas vidas. É este o grande desafio para quem trabalha na área da cultura.
Nesta altura de crise e de cortes, os museus nacionais no Reino Unido estão a reconsiderar a aplicação de entradas pagas (ver relatórios sobre o impacto das entradas gratuitas no meu post sobre museus). O Metropolitan Museum of Art - de entrada livre, mas recomendando aos visitantes uma contribuição de $20 – irá aumentar o preço recomendado para $25 a partir de 1 de Julho (ler a notícia aqui; no fim da mesma, apresenta-se um quadro com os preços de entrada em vários museus de arte americanos). Ao mesmo tempo, e dado o sucesso da exposição de Alexander Mc Queen, o museu irá abrir excepcionalmente às segundas-feiras, para receber visitantes dispostos a pagar $50 para visitar a mesma (ler notícia aqui). Há também teatros nos EUA que convidam o público a pagar o que puder para assistir a um espectáculo.
A necessidade de gerar receitas e de trabalhar para a auto-sustentabilidade é real. A preocupação relativamente ao acesso a uma oferta que todos têm o direito de fruir também. No entanto, quando é do acesso que queremos falar, diria que a entrada gratuita é uma medida fácil. E que, mesmo assim, não produz os resultados desejados de diversificação dos públicos. Para isto acontecer, é preciso um esforço muito maior e, em muitos casos, uma mentalidade bastante diferente na forma de fazer a abordagem. A acessibilidade começa na linguagem que usamos.
Mais algumas sugestões de leitura
Museus gratuitos (textos de Gabriela Canavilhas, Luís Raposo e João Neto, DN, 18.04.2011)
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