Estou de regresso de
Washington, no avião de Paris para Lisboa. Estou no lugar do meio, por isso,
peço ao homem que está no lugar de corredor para me deixar passar. Não olho bem
para ele; um homem moreno, poderia ser português.
Começo a ler o meu livro. Pouco
tempo depois, sinto que o homem ao meu lado está um pouco nervoso. Olho para as
suas mãos: tem um boné, o seu telemóvel e algumas páginas enroladas com um
texto em inglês. Tento olhar melhor para ele, discretamente. Não é português, é
de origem árabe. Olho novamente para as suas mãos. O seu telemóvel está ligado
e está constantemente a verificá-lo. O texto nas páginas enroladas é um texto
científico, mas não consigo perceber de que área exactamente.
As assistentes de bordo passam e
oferecem bebidas. Não aceita. “Ramadão”, penso para mim. Continua a olhar para
o seu telemóvel e faz-me sentir nervosa também. Olho novamente para ele, está
de olhos fechados e os seus lábios estão a mexer. Está a rezar? Estou ainda mais nervosa. Tento dizer a mim própria
que tem ar de um homem perfeitamente normal, mas há uma outra voz interior que
me diz “Não têm todos ar de um homem normal?”.
Pouso o meu livro na mesa, é de um
autor Árabe (estarei a tentar mandar um recado?). Muitos pensamentos passam
pela minha cabeça. Um deles é levantar-me e ir avisar o pessoal de cabine que
tenho um Árabe nervoso sentado ao meu lado com o seu telemóvel ligado…
Obrigo-me a mim própria a ficar onde estou, sentindo-me ridícula. E então ele
diz:
-
O que está a ler?
-
É um autor marroquino.
-
É o que me pareceu.
-
É também marroquino?
-
Sim, sou.
Pede para dar uma vista de olhos.
Pega no livro e lê a sinopse. Depois começamos a falar sobre política. Religião
também. Pergunta-me sobre a Grécia, falamos muito sobre o Egipto e depois
também sobre Marrocos. Está a caminho de Portugal para participar numa
conferência sobre matemática aplicada. Estou a gostar muito da nossa conversa,
tem uma voz calma e parece um homem meigo, mas não consigo deixar de me sentir
nervosa. Sempre que haja um momento de silêncio, olha para o seu telemóvel.
“Não têm todos ar de um homem normal?”, insiste a voz interior.
Assim que aterramos em Lisboa, ele
diz-me: “Sabe que as probabilidades de um avião se despenhar são muito menores
do que de dois comboios colidirem?”. Não está nervoso, não estou nervosa.
Sinto-me aliviada. E sinto vergonha.
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Há duas entradas para a
exposição do Museum of Tolerance em Los Angeles, uma com a indicação
“Preconceituoso”, a outra “Não preconceituoso”. Aqueles que tentam entrar pela
segunda porta encontram-na fechada, não conseguem abri-la. O
incidente no avião continuou a assombrar os meus pensamentos. Sentia-me
realmente envergonhada. Se o homem ao meu lado não parecesse Árabe, teria
reagido de outra forma ao seu nervosismo.
Organizações e pessoas que
trabalham na área do racismo e da discriminação lembram-nos constantemente que
não nascemos racistas, tornamo-nos racistas. E, depois de nos tornarmos, parece
ser preciso lutar mesmo muito, conscientemente e com determinação, para evitar
discriminar o Outro. Depois de conversar com algumas pessoas sobre o incidente
no avião e de ouvir as suas opiniões sobre o que devia ter feito, apercebi-me
que esta luta é mesmo difícil. Porque, para lutarmos, é necessário primeiro
estarmos conscientes dos nossos actos discriminatórios, estarmos conscientes
das nossas próprias atitudes. Muito frequentemente não estamos. Nunca pensamos
em nós próprios como racistas e uma série de desculpas servem-nos perfeitamente
para justificarmos os nossos pensamentos e acções: a necessidade de sentirmos
segurança, a necessidade de protegermos as pessoas que amamos e as nossas
comunidades, a necessidade de preservarmos a nossa cultura e tradições, a
necessidade de defendermos o nosso território, a necessidade de garantirmos a
nossa sobrevivência… Por isso, se necessário e ‘just in case’, o Outro poderá
ter que pagar o preço. E “não há mal nisto, é compreensível, somos boas
pessoas, preocupadas com os nossos”…
Esse ‘just in case’ tem servido de
desculpa para muitas pessoas nas suas decisões do dia-a-dia, assim como para
muitas e importantes decisões políticas. A América pós-9/11 vem-me
inevitavelmente à cabeça. Mas mesmo aí – como me apercebi lendo o livro de
Leila Ahmed A Quiet Revolution – The Veil´s Resurgence, from the Middle East to America
-, no meio da destruição, da dor, do medo, da raiva, da violência, houve
pessoas de todas as origens e religiões que foram capazes de olhar bem para
elas próprias e de ser solidárias para com outras, determinadas em preservar as
suas comunidades multiculturais, manter e proteger as suas relações com amigos
e vizinhos, continuar a ser e a sentir-se humanas. A linha entre o civilizado e
o bárbaro é tão ténue; requer um esforço tão grande para se ser o primeiro e
não o segundo.
Setembro assinala um ‘ano novo’
para mim mais que Janeiro; vem do tempo da escola. É o momento em que olho para
a frente e penso “E agora?” ou “A seguir?”. Neste preciso momento, tendo o ‘ano
novo’ pela frente, a minha cabeça está cheia de perguntas. Penso novamente no
meu tempo no Kennedy Center, onde Egípcios falam com Israelitas; Paquistaneses
e Indianos trocam piadas sobre os seus países; um Sérvio, uma Croata e um
Bósnio tiram fotos juntos; uma Grega e uma Turca partilham uma refeição. Será
este um ambiente ‘seguro’, ‘civilizado’? Teria sido diferente se o contexto
fosse diferente? Haverá espaços onde as pessoas são civilizadas e outros
espaços onde essas mesmas pessoas se tornam bárbaros? Terá mesmo a cultura um
papel em manter-nos civilizados ou os seus ‘efeitos’ são facilmente
neutralizados por outras forças e factores? Poderá ajudar a criar um espaço
comum, onde as pessoas possam coexistir e manter boas relações, não
simplesmente tolerando uns os outros, mas ficando a conhecer-se melhor;
dispostas a conversar, a entender, a aceitar? Não foi o livro de Fouad Laroui
que ajudou a iniciar a conversa naquele avião, que ajudou a controlar o medo?
As minhas resoluções para o ‘ano novo’ encontram-se algures entre todas estas
questões.
Ler também:
Can Culture make it?
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