Saturday 4 August 2018

Quão fácil é pôr os teus filhos num barco?

Incêndio em Mati (Grécia, 2018; imagem retirada do Facebook)

“Vês como é fácil pôr os teus filhos num barco quando em desespero ou em perigo?”, escreveu alguém no Twitter a 26 de Julho, quando a Grécia se encontrava em estado de choque após o trágico incêndio que causou tantas mortes. No momento em que estavam a emergir as histórias pessoais daqueles que pereceram e daqueles que sobreviveram, que tentaram salvar os seus entes queridos ou pessoas que não conheciam, transformando a tragédia em algo cada vez menos abstrato, alguém fez essa ligação entre as pessoas que colocaram os seus filhos em barcos para ficarem a salvo durante o incêndio e os refugiados que tentam a perigosa, muitas vezes mortal, travessia do mar. Quantas pessoas fizeram essa ligação? Que tipo de pessoas fez essa ligação? Essa ligação ocorreria a alguém com uma atitude negativa em relação aos refugiados e migrantes? Este tweet seria suficiente para fazer alguém reconsiderar?
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Muitas vezes penso sobre isso: ligações, lições da história. Em 2015, os americanos ficaram chocados ao descobrir que tinha sido negado o asilo nos EUA à família de Anne Frank (embora um estudo mais recente indique que o pedido nunca foi processado devido à burocracia). Será que os americanos fizeram a ligação quando, por exemplo, os refugiados sírios foram impedidos de entrar no seu país? Os judeus israelitas vêem a ligação entre a forma como os palestínios são tratados por Israel e o apartheid daÁfrica do Sul? Vêem uma ligação entre a nova "lei do estado-nação" e as Leis da Raça de Nuremberga? Os americanos, os israelitas e pessoas de todos os outros países são capazes de identificar as afinidades quando pessoas de outras etnias, religiões, etc. se tornam, em certos momentos na história, o inimigo, uma ameaça, vermes, parasitas, baratas...? Apercebem-se quando a história se repete? O que os faz avaliar de forma diferente esses momentos?

As coisas tornam-se ainda mais complexas para mim quando as pessoas parecem não saber ou esquecer a sua própria história, vivida há pouco tempo. O primeiro grupo étnico/migrante a sofrer violência no Reino Unido após a votação do Brexit em 2016 foram os polacos. Ao mesmo tempo, o governo polaco questionava a presença ou aceitação de migrantes e refugiados no seu próprio país, assim como fez o governo húngaro (os próprios húngaros encontraram refúgio noutros países após a invasão soviética em 1956). Os cidadãos que apoiam esses governos sabem (ou desejam saber)?

Poderíamos facilmente pensar que é falta de conhecimento; ou que é assim que a história é ensinada: como uma “história” que aconteceu há muito, e não como eventos reais, que envolveram seres humanos reais, como nós, as suas decisões, acções ou infortúnios. Isso é provavelmente verdade. Mas a questão permanece: se alguém fizesse essas ligações para as pessoas que não sabem ou não percebem, elas estariam dispostas a pensar nisso? Algumas delas reconsiderariam?



Em Fevereiro de 2017, após a proibição de entrada de cidadãos de sete países maioritarimente muçulmaons decretada pelo presidente dos EUA, o National Museum of American History publicou no Instagram a imagem de um panfleto, chamando a atenção para “70.000 refugiados americanos criados nos EUA”. O panfleto referia-se ao encarceramento de japoneses-americanos em campos na Segunda Guerra Mundial, por ordem do presidente Franklin Roosevelt. O museu informava que muitos cidadãos norte-americanos consideraram essa decisão injusta e “chegaram a questionar a ideologia democrática do governo dos EUA”. Uma afirmação subtil, com o objectivo de criar uma ligação, mas, de qualquer forma, uma afirmação. As pessoas foram também capazes de fazer a ligação? Quem viu esse post? De que forma o NMAH construiu sobre aquela informação, levou essa reflexão mais longe? Como é que isso foi recebido por pessoas que apoiaram a proibição de entrada? 

Li recentemente o livro Why don’t we learn from History? de B.H. Liddell Hart. No início, o autor discute sentimentos e emoções. “Os japoneses acreditam que o assento da coragem se localiza no estômago (…) A fonte das paixões também foi localizada naquela zona. Tudo isso indica o ponto até ao qual a mente e a moral dependem do físico, na vida normal dos homens. E de tudo isso, o historiador é levado a perceber o quanto a causalidade de eventos dos quais depende o destino das nações é governada não por uma reflexão equilibrada, mas por correntes momentâneas de sentimentos, bem como considerações pessoais inferiores. ”(p. 12) Liddell Hart afirma que aprendemos com a história que “nada ajudou mais a persistência da falsidade, e os males resultantes dela, do que a falta de vontade de pessoas boas em admitir a verdade quando isso era perturbador para a sua confortável segurança” (p. 17) Continua, questionando se existe uma maneira prática de combinar o progresso em direcção à obtenção da verdade com o progresso em direcção à sua aceitação e sugere que devemos evitar um ataque frontal a uma condição estabelecida há muito tempo. “Olhando em retrospectiva as fases pelas quais várias ideias novas ganharam aceitação, pode-se ver que o processo foi facilitado quando essas puderam ser apresentadas não como algo radicalmente novo, mas como o reavivamento em termos modernos de um princípio ou prática consagrados pelo tempo, mas que tinha sido esquecido. Isso não implicaria enganar as pessoas, mas seria importante traçar a ligação - já que "não há nada novo debaixo do sol" (p.58).

Isto é o que um historiador aprendeu com a história. “Dissonância cognitiva” e “confirmação de preconceitos” são termos que se tornaram parte do meu vocabulário apenas depois da eleição de 2016 nos Estados Unidos (Why facts don’t change our mind, de Elizabeth Kolbert, foi um bom começo para mim). Desde então, as minhas questões sobre o envolvimento de pessoas com visões opostas e/ou pouco conhecimento de factos num diálogo, bem como sobre o papel das organizações culturais nisso, intensificaram-se. Como podemos criar um ambiente não ameaçador para promover essas discussões tão necessárias? De tudo o que li e vi nos últimos dois anos, as minhas conclusões neste momento são as seguintes:
  • É fundamental transformar o abstrato em algo concreto, as características muitas vezes estereotipadas de um grupo em histórias individuais. As pessoas podem facilmente e confortavelmente expressar visões preconceituosas e menos informadas contra outros quando não os vêem como seres humanos individuais. Conversas cara-a-cara com o objecto do seu medo ou ódio podem ser mais eficientes.
  • Existe a necessidade de um espaço onde as pessoas possam encontrar-se cara-a-cara; um lugar para ouvir os “opositores”, mas onde uma pessoa sabe que ela também também será ouvida. Neste espaço, ninguém deve ser atacado pelos seus pontos de vista, ninguém será chamado nomes. A ideia não é pôr fim à discussão, mandando as pessoas de volta para os seus casulos, mas fazê-la acontecer.
  • Pode haver raiva e desconforto, mas também tem que haver paciência e tolerância. É necessário convidar um moderador menos apaixonado, mais distanciado, mas empático na mesma, que seja capaz de lidar com as emoções dos participantes e criar espaço para a análise crítica dos factos e das verdades de diferentes pessoas.
  • Este espaço deve servir para fazer ligações, convidar as pessoas a reflectir sobre situações semelhantes que ocorreram no passado e sobre o que podemos aprender com elas hoje. Lembrá-las dos princípios de longa data, comumente aceites para a nossa convivência na sociedade e como elas podem e devem afectar o nosso comportamento quotidiano em relação aos outros. Princípios como os direitos humanos universais, que dizemos que abraçamos, mas raramente pensamos sobre a sua implementação concreta e o seu impacto nas nossas vidas, decisões, comportamento. A experiência “free2choose” no Anne Frank House Museum costumava ser um momento impactante quando os visitantes saíam do anexo secreto, onde se questionavam os limites dos direitos humanos básicos, como a liberdade de expressão, confrontando-os com situações em que esses direitos entravam em confronto, às vezes ameaçando a segurança numa sociedade democrática (leia aqui)
  • Valeria a pena acompanhar alguns participantes, tentar entender o impacto de certas discussões (seja em painéis de exposições, num palco, num concerto, num livro, numa série de TV ou mesmo em debates ) sobre a sua maneira de estar e de pensar o mundo.

free2choose, Anne Frank House Museum (image taken from the website of Ars Longa)

Porquê a Cultura? Porque não é o espaço homogêneo em que a maioria de nós vive confortavelmente; porque permite experiências que podem desafiar a nossa visão estritamente pessoal do mundo, baseada no meio que nos é conhecido, e dá-nos a oportunidade de conhecer a visão de outras pessoas; acima de tudo, porque é o lugar onde a imaginação floresce, o tipo de imaginação que nos permite projetar um futuro diferente.

Em “Como curar um fanático?”, Amos Oz escreve: “… há algo na natureza do fanático que é essencialmente muito sentimental e ao mesmo tempo carece de imaginação. E isso, às vezes, dá-me esperança, embora uma esperança muito limitada, de que injectar um pouco de imaginação nas pessoas pode ajudar a causar desconforto no fanático. ”

Fez-me pensar…


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