Em Outubro passado, durante o intervalo da apresentação do
“Requiem” de Brahms pela Saint Louis Symphony, vinte e três manifestantes
sentados em várias partes do auditório levantaram-se e cantaram "Requiem
para Mike Brown" (o jovem negro desarmado que foi baleado por um polícia
em Ferguson). Algumas pessoas ficaram chocadas, outras aplaudiram, o mesmo
aconteceu com os músicos no palco. Ninguém interrompeu os manifestantes,
ninguém chamou a polícia. Talvez porque o que aconteceu fez sentido, naquele
lugar, naquele tempo, naquele contexto específico. Sendo que a música era parte
integrante dos protesto em Ferguson, esta, de acordo com um dos organizadores,
foi uma tentativa de "falar com um segmento da população que tem o luxo de
estar confortável. Temos que fazer uma escolha de apenas ficarmos na nossa zona
de conforto ou falarmos de algo que é importante. Não está certo simplesmente
ignorá-lo" (leia o artigo completo).
As recentes mortes de negros pela polícia em diferentes cidades dos Estados Unidos provocaram uma intensa reflexão entre as instituições culturais no país sobre o seu papel. Num recente comunicado de bloggers de museus e de outros profissionais da cultura em relação a Ferguson e outros eventos relacionados, lê-se:
"Os recentes acontecimentos, desde Ferguson a Cleveland
e Nova Iorque, criaram um momento de transição. As coisas precisam de mudar.
Novas leis e políticas irão ajudar, mas qualquer movimento em direcção a uma
maior compreensão e comunicação cultural e racial deve ser apoiado pela
infra-estrutura cultural e educativa do nosso país. Os museus fazem parte desta
rede educativa e cultural. Qual deve ser o nosso papel (papéis)? (...) Onde é
que os museus se encaixam? Alguns poderiam dizer que só os museus com colecções
específicas afro-americanas têm um papel, ou talvez apenas museus situados nas
comunidades onde estes eventos ocorreram. Como mediadores culturais, todos os
museus devem comprometer-se em identificar de que forma podem relacionar-se com
questões contemporâneas relevantes, independentemente da sua colecção, foco ou
missão. (...) Até agora, apenas a Association of African
American Museums emitiu uma declaração formal sobre as questões mais
amplas relacionadas com Ferguson, Cleveland e Staten Island. Acreditamos que o
silêncio de outros museus envia uma mensagem de que estas questões são uma
preocupação apenas para os afro-americanos e os museus afro-americanos. Sabemos
que este não é o caso."
Em Agosto passado, uma séria controvérsia envolveu a decisão
do Tricycle Theatre de não receber o UK Jewish Film Festival, pela primeira vez
em oito anos. O motivo foi que o festival tinha o apoio da Embaixada de Israel
em Londres e, dado que naquele momento estava em desenvolvimento a ofensiva em
Gaza, o Conselho Consultivo considerou que “não seria apropriado aceitar o
apoio financeiro de qualquer agência governamental envolvida". O Teatro
ofereceu-se para fornecer financiamento alternativo, mas o Festival não aceitou
(leia o artigo completo). O conflito em Gaza foi também a razão pela qual artistas participantes na
Bienal de São Paulo este ano apelaram aos organizadores (apoiados
posteriormente pelos curadores da Bienal) para devolver o financiamento do
Consulado Israelita. As negociações mais tarde resultaram na remoção do
logótipo do Consulado dos principais patrocinadores e na sua associação apenas
aos artistas israelitas que receberam este apoio financeiro específico (leia o
relatório completo).
Podemos
concordar ou discordar com as decisões tomadas por estas organizações. Mas o
questionamento em relação ao papel das instituições culturais na sociedade de
hoje, especialmente o seu papel educativo, deve ser permanente, constante. Tal
como Rebecca Herz, acredito que estas não devem agir independentemente da sua
missão (como é sugerido no acima referido comunicado dos bloggers de museus
norte-americanos), mas qualquer colecção de museu ou temporada de teatro /
orquestra / festival pode ter uma ligação à vida contemporânea e ajudar a
moldar o tipo de sociedade que precisamos ou sonhamos. Como o trabalho de
muitos artistas contemporâneos é uma resposta a assuntos da vida contemporânea, é comum
encontrarmos este género de ligações, assim como uma fértil reflexão à volta deles, na programação de teatros, companhias e galerias (o
Teatro Maria Matos, o Programa Gulbenkian Próximo Futuro ou o alkantara festival são os
primeiros que me ocorrem entre as entidades cuja programação acompanho em Portugal, mas há outros). Os museus ou as orquestras que apresentam obras que não são contemporâneas não estão muito
habituados a procurar ligações entre as suas colecções ou concertos e a vida
contemporânea ou, se o fazem, não se torna perceptível para mim. Muitas vezes
pergunto-me “Qual o propósito desta exposição ou deste concerto?”, “Porque é relevante?”, “Como é
que isto se relaciona com a sociedade portuguesa contemporânea e com a sua
diversidade?” (penso mais uma vez no trabalho inspirador da Orchestra of the Age of the Enlightenment...)
Isto leva-me mais uma vez para uma questão recorrente neste
blog: “accountability” e responsabilidade. Não vejo as instituições culturais
como ilhas, distantes do que está a acontecer no seu redor. Acredito que devem
tornar claro para as pessoas de que forma o que têm a dizer ou mostrar pode ser
relevante para elas; devem partilhar publicamente a sua visão e objectivos e
assumir a responsabilidade pelo seu cumprimento; devem ser um fórum público,
onde as pessoas podem encontrar conforto, mas também o desconforto necessário.
Têm claramente um papel educativo (no sentido de fornecer o que os gregos
antigos chamavam "paideia"), um papel que eu não faria
necessariamente depender do que acontece (ou não acontece) na escola ou em casa
e um papel que não depende, em primeiro lugar, do serviço educativo, mas sim,
do/a director/a.
Dois directores de museus e um curador estarão connosco na
próxima terça-feira, 16 de Dezembro, na conferência da Fundação Gulbenkian
"Que lugares para a educação? A dimensão educativa de instituições
culturais" (mais informações). Charles Esche
(Director do Van Abbemuseum e um dos curadores da Bienal de São Paulo deste
ano), David Fleming (Director dos National Museums Liverpool e Presidente da
Federação Internacional de Museus de Direitos Humanos) e Delfim Sardo (Curador,
Professor Universitário e Ensaísta) irão desafiar-nos a pensar sobre as nossas
responsabilidades e práticas no actual contexto social e político.
Nota: Para
quem não puder estar em Lisboa, a conferência será transmitida em livestreaming. Há uma série de
artigos, posts, textos de opinião e entrevistas na página da conferência (em
“Oradores”, “+Reflexão” e “+Info”).
Mais leituras:
Jean-François Chougnet, Le MuCEM ne doit pas devenir un musée pour touristes
Laura C. Mallonee, A scramble to save protest art, from Ferguson to Hong Kong
Maddy Costa, Can a relationship with theatre change people’s relationship to society?
Maddy Costa, Can a relationship with theatre change people’s relationship to society?
Sunny
Hundal and Nock Cohen, Was the Tricycle Theatre right to ask the UK Jewish Film Festival to ‘reconsider’ its funding?
Mais neste blog:
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