"Uma menina perdida no seu século à procura do pai", Teatro Crinabel (Foto: Paulo Pimenta; imagem gentilmente cedida pelo Teatro Nacional D. Maria II) |
Há dois anos, questionava
aqui o propósito dos festivais que apresentam a arte de grupos específicos de
pessoas (gays, negros, pessoas com deficiência, etc). Era Setembro de 2014, e estava
a decorrer a segunda edição do festival Unlimited no Southbank em Londres. “Pergunto-me”, escrevia na altura, "quem é que assiste a
estes festivais, exposições, actividades e o que é que acontece depois? Será
que atraem apenas os já ‘convertidos’ ou um público mais amplo? Serão os
artistas gay ou negros ou com deficiência mais reconhecidos como artistas pelo
sector e pelo público? Estaremos a seguir em direcção a uma representação
inclusiva, onde serão vistos em primeiro ligar como artistas, ou os curadores e
o público vão, na mesma, para assistir a algo “especial”, circunscrito num
tempo e espaço específico, um tempo e um espaço ‘próprio’? Ajudam-nos estes
festivais a aprender a preocupar-nos mais e mais com a arte e menos e menos com
o ‘resto’?
Dois anos mais tarde, em
Setembro de 2016, tive a oportunidade de assistir ao festival Unlimited na sua
primeira apresentação fora de Londres, em Glasgow. Levava comigo todas as
minhas perguntas anteriores, só que desta vez iria ter a oportunidade de as
discutir com as pessoas envolvidas: qual é o propósito de um festival de artes
da deficiência (disability arts) num país como o Reino Unido, bastante avançado,
comparando aos nossos, no que diz respeito aos direitos das pessoas com
deficiência? Existe algo nele para os artistas com deficiência? Existe algo nele para o público?
Quando Jo Verrent, Unlimited
Senior Producer, falou numa das nossas reuniões sobre a "opressão
sistémica das pessoas com deficiência", percebi que o caso está longe de estar
resolvido mesmo no Reino Unido e que eu tenho muito ainda para aprender. As
palavras de Jo foram posteriormente reforçadas pela performer Claire Cunningham, que se auto-define como artista com deficiência. Claire é hoje uma artista
internacionalmente conhecida, cujo trabalho pode ser visto fora dos disability arts festivals. Mesmo assim,
a deficiência continua a ser central no seu trabalho. No seu site lê-se que
"o [seu] trabalho está muitas vezes enraizado no estudo e uso/abuso das
suas muletas e na exploração do potencial do seu próprio físico específico com
uma rejeição consciente de técnicas de dança tradicional (desenvolvidas para corpos
sem deficiência) ou da tentativa de mover-se com a pretensão de um corpo ou de
uma estética diferente da sua própria". Para Claire, identificar-se como
deficiente e abordar a deficiência no seu trabalho é uma escolha política, é a
afirmação de uma activista. Ela empurra constantemente as coisas para a frente,
para si e para outros artistas com deficiência - e para pessoas com deficiência
em geral.
Nesses encontros,
tornou-se claro para mim que programas como o Unlimited (ou seja, programas de
encomendas) são ainda muito necessários para que os criadores e artistas com
deficiência possam ter a oportunidade e as condições para serem artistas, para
trabalharem na sua arte. Mas em relação ao festival? Não deve o Unlimited
evitar tais apresentções "especiais" e "exclusivas" do
trabalho de artistas com deficiência? Será que o festival promove esta arte junto
de um público mais amplo, permitindo que estes artistas sejam vistos, em
primeiro lugar, como artistas?
Claramente sim, a começar
pelos programadores. Tim Nunn, programador do Tramway, o teatro que acolheu o Unlimited em Glasgow, falou da necessidade de
influenciar mais directores artísticos em ver com olhar crítico e programar
essas obras. A tendência de olhar para esta arte como algo "especial"
- mas provavelmente menos profissional, de menor qualidade -, algo que um director
artístico pode considerar programar talvez uma vez numa temporada, como um acto
de "responsabilidade social", para, a seguir, preencher a caixinha na
checklist, é algo que vemos na
maioria dos países, e é, aparentemente, ainda o caso também no Reino Unido.
Mas a produtora
independente Nadja Dias acrescentou algo mais a esta discussão. Ela falou do
público, das pessoas que frequentam o Unlimited. Pessoas com deficiência e pessoas
em geral "diferentes" de diversas formas. Não podemos subestimar a
importância do facto de que um festival como o Unlimited ocorre em teatros
acessíveis e que os espectáculos incluem os serviços necessários para pessoas
com deficiências visuais e auditivas (como a audiodescrição e a língua gestual).
Isto não é "especial", é o que é normal e esperado nestes festivais (da
forma como devia ser em qualquer outro festival, especialmente quando
financiado com dinheiros públicos). Este é um lugar onde as pessoas se sentem
bem-vindas, onde não há olhares estranhos e sentimentos de embaraço ou
desconforto. Este é um lugar onde as pessoas se sentem aceites, um lugar onde as
pessoas se encontram, conversam, assistem juntas a um espectáculo; com
naturalidade. Muitas não teriam saído das suas casas se não fosse assim.
Festivais como o Unlimited fazem isso acontecer.
"The Way you Look (at me) Tonight", Claire Cunningham (Image: MJDA Films) |
Foram as palavras de Nadja
Dias que me fizeram perceber o que tinha visto na noite anterior no palco do
Tramway, na performance de Claire Cunningham "The Way You Look (at me)
Tonight"* (trailer). Os membros do público foram convidados a sentar-se no palco, mas eu preferi
sentar-me na bancada. Alguns minutos após o início do espectáculo, mudei-me
para uma fila mais acima, para ter uma visão desimpedida do palco. E quando
olhei para baixo... vi o mundo. Vi cada uma das pessoas que compõe o mundo. Vi a
Claire Cunningham e o Jess Curtis, mas vi também as duas senhoras cegas a
sorrir com a audiodescrição; vi os olhos de algumas pessoas a seguir a intérprete
de língua gestual, que se deslocava no palco com a Claire e o Jess; vi uma
jovem rapariga numa cadeira de rodas eléctrica (a razão porque me mudei para
uma fila mais acima) sentada ao lado de seus amigos; vi pessoas de todas as
formas diferentes e iguais. Esta era uma visão de um mundo em paz, livre, contente, pleno,
aberto, tolerante, solidário, humano. Não por causa do espectáculo, mas ainda
assim ... por causa dele. Isto é o que o Unlimited me deu. E é por isso que o Unlimited
é necessário.
Estou a escrever estas
palavras e a pensar na companhia de teatro portuguesa, com actores com
deficiência física e intelectual, a Crinabel, que se estreou ontem no palco
principal do Teatro Nacional D. Maria II em Lisboa. No palco principal... No Domingo,
depois da última apresentação do seu espectáculo, vamos todos juntos comemorar os
seus 30 anos. Vamos celebrar essa visão do mundo que eles generosamente partilham
connosco.
Sinceros agradecimentos ao
British Council que convidou a Acesso Cultura (da qual sou a Directora
Executiva) para assistir ao Unlimited. Os meus agradecimentos também à Nadja
Dias pela imagem retirada do "The Way You Look (at me) Tonight".
*The Way You Look (at me) Tonight
Created and performed by Claire Cunningham and Jess Curtis
Created and performed by Claire Cunningham and Jess Curtis
Philosophical Consultation by Alva Noë
Composed by Matthias Herrmann
Costume Design by Michiel Keuper
Dramaturgy by Luke Pell
Video Design by Yoann Trellu
Lighting Design by Chris Copland
Image: MJDA films
Image: MJDA films
Mais neste blog:
No comments:
Post a Comment